Views: 4
A fuga dos imigrantes e como nos preparamos para empobrecer
Está em Portugal há 15 anos.
Tem a mercearia na esquina em frente à minha casa e não há vizinho que não o encontre disponível para dois dedos de conversa.
Os mais velhos habituaram-se a que peça a um dos seus trabalhadores para lhes levar a casa as compras quando o peso é muito,
os mais novos sabem que sairão de lá com um rebuçado ou um chupa-chupa.
Vibra com a Seleção Nacional.
Domina o português.
Esta semana, soube que está a pensar ir-se embora.
Não para o Bangladesh, de onde veio, mas para o Reino Unido.
O senhorio não para de aumentar a renda.
Já paga mais de três mil euros pela loja.
As margens são curtas.
E, mais importante do que tudo, deixou de se sentir bem-vindo.
“No Reino Unido, há mayors que vêm do Bangladesh ou de outros países muçulmanos. É normal”,
comentou na loja com um cliente, enquanto ia pesando a fruta.
A ideia de que ele pode estar de saída angustiou-me.
Ele chegou ao bairro muito antes de mim e já faz parte da paisagem.
A mercearia da esquina é um lugar de encontro, um sítio onde as pessoas se sentem bem, onde há pertença.
Não é uma daquelas lojas tradicionais, que apareciam nos filmes a preto e branco,
com um senhor de bigode e lápis atrás da orelha a vender fiado.
É um espaço onde os trabalhadores têm várias cores,
onde às vezes um deles ouve música africana ou outro acompanha, rindo, um vídeo no telefone,
com piadas ditas numa língua que me é incompreensível.
E, no entanto, eles são o bairro.
A forma como tratam quem entra, como ajudam quem precisa, o sorriso que partilham, é comunidade.
E isso é ser do bairro.
Na outra esquina do prédio, há um pequeno cabeleireiro, cheio de trabalhadoras brasileiras.
Esta semana, falavam sobre os amigos que começam a voltar ao Brasil
ou a procurar outros destinos de emigração.
“Isto está a ficar muito duro”, comenta uma delas.
O isto são, claro, as regras mais apertadas na imigração,
mas sobretudo o discurso mais tenso,
o preço da habitação, a conta do supermercado.
Uma das manicures está cá há 20 anos.
Já passou antes por Londres, mas não se adaptou.
“Clima frio, pessoas frias.”
E pela Alemanha.
Mas é aqui que se sente em casa.
Há umas semanas, esteve de férias na Alemanha.
Quando voltou, trazia na bagagem um folheto de supermercado.
“Trouxe para mostrar para elas aqui. É tudo muito mais barato. E os salários, muito mais altos”, comenta,
enquanto outra acena com a cabeça.
“Por enquanto, fico aqui porque é melhor para as minhas filhas estudar em português”, reage a segunda.
Quando os estudos das meninas acabarem, está a ponderar ir para Espanha ou para o Reino Unido.
“Já comecei a estudar inglês.”
Numa tabela com o salário médio anual na Europa em 2024, Portugal tem 17 países acima.
E só é o primeiro entre os dez países que pior pagam.
Abaixo só a Chéquia, a Croácia, a Letónia, a Polónia, a Roménia, a Eslováquia, a Hungria, a Grécia e a Bulgária.
O nosso salário médio anual
– e friso o “médio”, ou seja, há muita gente abaixo porque há alguns acima
é de €24 818.
A média europeia é de €39 800.
No outro lado da escala, estão o Luxemburgo
– que é um dos principais destinos da emigração portuguesa
com €83 000, a Dinamarca com €71 600 e a Irlanda com €61 100.
Cruzar os valores dos salários com os preços dos bens essenciais e da alimentação
dá aquilo a que um amigo alemão chama com graça “a matemática à portuguesa”,
uma espécie de equação impossível, que torna a vida muito difícil,
sobretudo para quem não tem casa própria,
nem heranças nem uma rede familiar de apoio.
No início de outubro, a BBC Brasil fazia notícia com “Os brasileiros que estão deixando Portugal por causa do aumento do custo de vida”.
O texto contava a história de uma tradutora brasileira que começou a fazer contas
e chegou à conclusão de que tem “mais qualidade de vida em Florianópolis do que em Portugal”.
Reação?
Vai para a terra dela.
E, não, não é preciso ninguém a mandar para lá.
Estes relatos deviam ser mais ou menos evidentes.
Os imigrantes vêm quando há trabalho e boas condições económicas
e vão-se embora quando a economia cai.
Ou alguém se lembra de a “imigração descontrolada” ser um grande tema nos anos negros da Troika?
Não era.
E não era por o controlo imigratório ser mais duro,
era mesmo porque Portugal não era um país tão atrativo,
embora – por razões de língua e cultura – continuasse a ser um destino procurado por quem vinha de países ainda mais pobres de África ou do Brasil.
A questão é: se temos uma economia baseada em baixos salários,
uma demografia próxima da rutura
e um custo de vida galopante,
teremos um problema enorme quando mais imigrantes começarem a sair,
seja para irem para as suas terras,
seja em busca de novas oportunidades noutras paragens.
A saída de imigrantes não vai só tornar mais triste a vida do meu bairro,
onde quem está no pequeno comércio local se integrou,
independentemente da cor ou da origem.
A saída de imigrantes vai criar um problema numa economia dependente de um turismo habituado a margens feitas à custa de salários miseráveis.
Como irão aguentar-se restaurantes, hotéis e empresas de limpeza depois de saírem todos estes trabalhadores?
Irão mesmo aumentar os salários que oferecem para dar trabalho aos portugueses?
E os lares de terceira idade, as creches e as escolas?
Vão começar a pagar melhor, à medida que a saída de estrangeiros torne mais difícil a contratação?
É possível que alguns negócios se adaptem, para tentar suprir a falta de mão de obra,
mas é também possível que uma subida nos custos do trabalho tenha um reflexo direto no aumento dos preços.
E é aí que entra o pacote laboral desenhado pelo Governo
e apresentado sem ter ido a votos no programa eleitoral,
numa altura de pleno emprego
e com relatórios internacionais a atestar que o mercado laboral nacional já é suficientemente flexível.
O EYAttractivenessSurvey Portugal 2025 mostra Portugal como o 10º país mais atrativo para o investimento direto estrangeiro
e não faz qualquer menção às dificuldades criadas por leis laborais.
“Apesar da redução dos projetos de IDE em Portugal,
a criação de emprego ligada ao investimento estrangeiro cresceu,
embora ligeiramente (1% em relação ao ano anterior),
o que contrasta com a tendência europeia de diminuição expressiva (-16%).
Em Portugal, a criação média de emprego por projeto aumentou 3% em 2024.”
Com o emprego em alta,
uma escassez de mão de obra que deve acentuar-se por via das políticas de imigração e uma economia de serviços,
tirar direitos aos trabalhadores, deixá-los mais precários e vulneráveis,
acaba por ser a melhor forma de manter os salários baixos.
Ou alguém alguma vez se lembra de ter visto os salários subir
por via da precariedade e das limitações à atividade sindical e à negociação coletiva?
Sabem onde é que os salários são mais altos?
Onde os sindicatos têm um papel relevante, onde os trabalhadores têm poder reivindicativo.
O descanso ao fim de semana, as férias pagas, as licenças de parentalidade, as baixas médicas, não foram dados.
Foram conquistados, através de luta.
Não são o produto de uma sociedade onde despedir era fácil.
São a consequência de um tempo histórico em que os trabalhadores reivindicaram a sua força coletiva.
Margarida Davim.
Revista Visão, 21 de Novembro de 2025.

