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Salazar não era honesto, nunca foi, e se fechava a porta do quarto para comer sopa de legumes, se dormia numa cama estreita que parecia de hospital, se escrevia discursos de contabilidade seca em folhas de papel almaço, isso não significava honestidade nenhuma, significava apenas método e disciplina, o mesmo método com que organizou a mais eficaz rede de favores e corrupção que Portugal conheceu. Um padre laico que rezava com a mão direita e com a esquerda assinava decretos que davam fortunas a uns e arruinavam outros, um sacerdote do poder que se alimentava de cartas, milhares de cartas, cartas que lhe chegavam a São Bento como se chegassem ao confessionário, cartas de ministros a pedir-lhe indulgência, cartas de empresários a pedir-lhe monopólios, cartas de militares a pedirem promoções, cartas de bispos a pedir silêncio para escândalos de alcova, cartas de amigos, de conhecidos, de gente anónima, todos a mendigar, todos de joelhos, todos convencidos de que o ditador não roubava porque não exibia, e no entanto o verdadeiro roubo estava ali, na transformação da cidadania em súplica, na substituição da lei pela cunha, no apodrecimento lento e organizado de um país reduzido à mendicidade moral.
E por trás do silêncio a máquina: a Constituição de 1933 que concentrava tudo num só homem, o Parlamento transformado em marioneta, juízes que recebiam sentenças já escritas, a censura com o lápis azul a cortar notícias, a PIDE a cortar gargantas, o país inteiro de boca fechada, e atrás dessa boca fechada a gargalhada abafada das famílias que enriqueciam à sombra, os Mello com a CUF, uma teia de químicos, bancos, tabacos, seguros, os Espírito Santo com a SACOR, petróleo transformado em monopólio, Champalimaud, o menino de província que casou com Cristina de Mello e de repente, por obra e graça de um despacho, recebeu de Salazar o monopólio dos minérios e outro despacho que o isentava de impostos sobre cimento exportado para Angola, fortunas em duas folhas assinadas com a serenidade de quem abençoa, Cupertino de Miranda no Banco Português do Atlântico, os Borges no Banco Borges & Irmão, os Burnay no Banco Fonsecas & Burnay, sete grupos a controlarem três quartos da economia e um país inteiro a obedecer-lhes como servos, porque era disso que se tratava, Portugal convertido em feudo com decretos de Lisboa como cartas de foral, cada monopólio um presente, cada fortuna uma recompensa, cada recompensa um prego no caixão da concorrência, da inovação, do mérito.
Os escândalos ferviam como água em panela tapada. O Banco Nacional Ultramarino, salvo em 1931, o primeiro resgate financeiro, os prejuízos privados atirados para cima do povo, o “BES de Salazar” antes de haver BES. Em 1943, Caetano, o sucessor, escreveu-lhe aflito, denunciando o escândalo Sain, comissões ilegais nos negócios de petroleiros, denunciando o escândalo Meira, o Banco de Portugal manipulado. Não era propaganda da oposição, não eram comunistas, era o próprio herdeiro a dizer que o regime apodrecia, que a corrupção lhe minava as bases, e Salazar respondia com silêncio, sempre o silêncio, porque o silêncio era a melhor forma de governar. A Ponte Salazar, inaugurada em 1966, custou 2,2 milhões de contos, um país pobre endividado até ao pescoço, e matou homens, muitos homens, quatro admitidos, onze provados, talvez mais, talvez corpos engolidos pelo betão dos pilares, e o regime a apagar nomes para que a inauguração fosse limpa, para que a fotografia tivesse apenas ministros, engenheiros e bandeiras, nenhuma mancha de sangue a estragar a propaganda, a corrupção também é isto: não apenas dinheiro, mas mentira, manipulação, cadáveres escondidos.
E no entanto, quando se fala do regime anterior, há sempre quem repita que ali não havia corrupção, que não se falava dela, como se o silêncio fosse prova de honestidade. Não se falava porque estava proibido falar, não se denunciava porque denunciar era crime, não se investigava porque investigar significava prisão. A corrupção estava lá, fazia parte da engrenagem, era o sangue que fazia o motor girar. Compare-se com o presente: hoje fala-se, expõe-se, há jornais, há televisões, há redes sociais, e o que se descobre não é pouco, mas só não se vai mais longe porque a justiça emperra, arrasta-se, bloqueada por processos intermináveis, por códigos e por interesses cruzados. Porra, até um primeiro-ministro foi acusado e está a ser julgado. A diferença é esta: antes abafava-se e fingia-se que não existia, agora mostra-se, ainda que com freios. O mal, porém, continua a ser o mesmo: uma cultura que aprendeu a viver da cunha e do compadrio.
E depois o Ultramar, o território onde o roubo deixava de fingir. A Diamang em Angola, cinquenta e dois mil quilómetros quadrados de concessão privada, exército próprio, polícia própria, tribunais próprios, a vida de dezenas de milhares de africanos controlada por uma empresa estrangeira com selo português, e a riqueza arrancada à força, homens recrutados como gado, mulheres e crianças usadas como peças descartáveis, trabalho forçado disfarçado de contrato, os brancos no conforto do Dundo, piscinas, clubes, luxos de colónia, os negros em barracões miseráveis, segregação como se fosse lei natural, a corrupção elevada a regime político, soberania entregue a uma companhia de diamantes, lucros que sustentavam a metrópole, diamantes trocados por silêncio, silêncio comprado com sangue. Em Moçambique, Jorge Jardim, engenheiro agrónomo, administrador de empresas do grupo Champalimaud, agente diplomático paralelo, espião, mercenário, senhor feudal com telefone directo a Salazar, enriquecia enquanto organizava milícias, enquanto tratava de alianças com Rodésia e Malawi, enquanto misturava negócios privados com política colonial, um homem só que simbolizava toda a podridão: a fusão absoluta de interesse público e privado, Estado e fortuna, ditadura e negócio.
E como se não bastasse, havia ainda o cortejo grotesco dos ex-ministros reciclados em administradores de bancos, companhias de seguros, empresas coloniais e industriais. Ortins de Bettencourt, Rafael Duque, Mário de Figueiredo, J. Soares da Fonseca, Albino dos Reis, Martinho Nobre de Melo, J. Pires Cardoso, Francisco Leite Pinto, Teixeira Pinto, Daniel Vieira Barbosa, Pedro Teotónio Pereira, Castro Fernandes, Manuel Cavaleiro de Ferreira, Pinto Barbosa, Ulisses Cortês, Ulisses Vaz, Arantes e Oliveira, Frederico Ulrich, Sarmento Rodrigues, Raul Ventura, Lopes Alves, Manuel Lopes de Almeida, Arnaldo Schulz, Correia de Oliveira, Alexandre de Sousa Pinto, Alfredo dos Santos Júnior, José do Canto Moniz, Joaquim da Luz Cunha, Almeida Fernandes, Francisco Neto de Carvalho, Pedro Soares Martinez, Francisco Vieira Machado, Antunes Varela, Supico Pinto, Santos Costa, Gomes de Araújo, Henrique Martins de Carvalho, João Pinto da Costa Leite, Sebastião Garcia Ramires, Vitório Pires, J. de Araújo Correia, Marcelo Matias, Franco Nogueira, uma procissão de nomes que enchia páginas inteiras de conselhos de administração. Cada ministério um degrau, cada decreto um trampolim, cada carreira pública a antecâmara de um banco, de uma companhia de seguros, de uma petrolífera, de uma empresa colonial. O livro de Raul Rego, “Os Políticos e o Poder Económico”, não lista, denuncia: mostra que o poder político foi sempre a antecâmara do poder económico, e que os mesmos homens que governavam eram depois pagos para administrar os monopólios que ajudaram a criar. Que esses mesmo homens, muitos deles listados acima, faziam negócios escusos e promoviam corrupção.
E esta lista, interminável e sufocante, mais parece uma ladainha de corrupção dita em missa negra, um inventário de vícios onde cada nome traz consigo o retrato de um país capturado. Nenhum deles saiu do poder para descansar: todos foram premiados. Era a porta giratória antes do nome, a promiscuidade antes da teoria. A ditadura foi isto: ministros que se tornavam banqueiros, banqueiros que se tornavam ministros, generais que entravam em conselhos de empresas, académicos que trocavam cátedras por lugares em seguradoras. O Estado era apenas a antecâmara do saque, e o saque apenas a continuação natural do Estado. Um círculo fechado, um círculo vicioso, uma engrenagem perfeita para se manterem eternamente os mesmos a mandar e os mesmos a enriquecer.
Chegou Caetano e prometeu Primavera. Mas a Primavera foi apenas mais uma estação de sombras. Liberalizou-se a economia, abriram-se as portas, e o que se seguiu foi a guerra entre plutocratas. Champalimaud, já foragido, a conspirar, Miguel Quina, Jorge de Brito, Cupertino de Miranda a disputarem bancos, jornais, fábricas, cada um a usar o governo como arma contra o outro, a política reduzida a ringue de magnatas. Os tecnocratas, jovens, formados fora, falavam de Europa, de modernidade, mas saltavam entre ministérios e conselhos de administração como se fosse a mesma coisa, confundiam cargos com propriedade, confundiam Estado com carreira pessoal. A corrupção deixou de ser pacto gerido por um árbitro único e tornou-se guerra aberta, mas sempre a mesma guerra: quem fica com o país, quem come a carne e quem rói os ossos.
E se hoje assim somos, é porque a herança ficou, não se limpa uma infecção destas de um dia para o outro. A cunha, o compadrio, a opacidade continuaram entranhados. E o mito do ditador honesto sobreviveu, porque Salazar não exibia, não tinha palácios nem iates, porque a sua cama era estreita e o prato frugal, mas a verdade é outra: Salazar roubava para o regime, não para si, e isso é pior, porque fez da corrupção uma instituição, uma doutrina, uma herança envenenada.
Inventou a corrupção moderna portuguesa, ensinou-a às famílias que ainda hoje a praticam, fez do Estado um balcão de favores, fez do país um quintal, e deixou-nos esta crença resignada de que a corrupção é inevitável, de que só muda de mãos, de que nunca desaparece. Salazar, o homem que alguns ainda chamam honesto, foi apenas o mais frio arquitecto de uma cleptocracia organizada, e o resto, o resto é saudade mal curada, é memória torta, é a incapacidade de olhar de frente o país que fomos e o país que ainda somos.
Outubro/Novembro 2025
Nuno Morna 





