somos todos idiotas

Views: 3

Somos todos “os idiotas”
« (…) As redes sociais industrializaram o reflexo idiota. O algoritmo necessita de que estejamos convictos de que o outro é um idiota, pois rentabiliza e monetariza essa certeza. (…)»
[Luís Pedro Nunes, “Expressso”, 16/10/2025]
……………………………………………………
«É evidente, óbvio e indiscutível que o idiota, os idiotas são os outros. Sempre. Estou mais do que absolvido. Aquele ataque de raiva no trânsito que tive ali atrás? Estava com pressa. E tinha razão. Basta o dia horrível que tive.
O outro tipo era um asno. Há neste “reflexo idiota” um instinto automático e um equívoco cognitivo de milissegundos: explicamos os nossos erros pelas circunstâncias, mas os dos outros pelo carácter. Uma economia emocio­nal de autopreservação, pois poupa-nos a chatice de admitir falhas. Só que o preço a pagar é a empatia. Absolvo-me automaticamente mas nem tento perceber o outro.
O exemplo da estrada — a road rage, a fúria no trânsito — serve bem porque está estudado, mesmo a nível neurológico, o motivo que explica como pessoas pacatas passam de repente a “ver tudo a vermelho”. E assenta nesse princípio primevo de sobrevivência e reação, que hoje se resume a atacar o outro ao desconsiderá-lo em termos de carácter: “É um idiota”.
O problema é que essa “certeza moral” passou para a política e para a sociedade e tornou-se na base de toda a polarização: cada um “sabe ver o mundo melhor do que o outro”. O problema são sempre os outros, e o outro é um idiota, logo quero odiá-lo e assim necessito dele para existir.
É aqui, diz Amanda Ripley, autora do livro “High Conflict”, que o conflito passa a ser a nossa própria identidade. E é isso que nos está a acontecer. Ou já aconteceu. Vivemos para estar em conflito com o outro, que tentamos desvalorizar. Somos algo em função daquilo que ofendemos nos outros: os idiotas. Muitos dirão que nada disto é novo, a teoria. De Nietzsche a Sartre, o homem moral sempre precisou de um culpado ou sempre soube que o inferno foram os outros.
Mas há uma alteração crucial que transcende a filosofia e a análise social. É que este mecanismo é um atalho evolutivo do cérebro, em que a amígdala cerebral dispara antes de pensarmos e em que inundamos o corpo de adrenalina — preparando-o para um suposto perigo. O normal seria a via lenta emocional, em que o estímulo passaria por uma rota racional pelo córtex. A raiva é um curto-circuito evolutivo. A amígdala não distingue a ameaça física da ameaça simbólica — reage a ambas com a mesma bioquímica.
E hoje temos humanos viciados num loop de indignação e raiva que proporciona um prazer moral. Essa é a resposta a esses sucessivos estímulos. E é onde o cérebro se vicia nesses estímulos que acaba por construir uma visão do mundo baseada no princípio de “os outros são idiotas”. Nas redes sociais, óbvio.
As redes sociais industrializaram o reflexo idiota. O algoritmo necessita de que estejamos convictos de que o outro é um idiota, pois rentabiliza e monetariza essa certeza — e a raiva é o modelo de negócio. Ripley, por exemplo, diz que as redes, para poderem ter lucro, funcionam como empreendedores de conflito, uma “máquina de indignação” onde se vendem certezas morais, geram cliques e fabricam inimigos.
A idiotia tornou-se relacional: eu sou inteligente porque o outro é estúpido. As redes não criaram o reflexo do idiota — apenas lhe deram megafone e esteroides. Mas a raiva é uma emoção com recompensa neuroquímica — liberta adrenalina e dopamina. E queremos cada vez mais.
As redes sociais industrializaram o reflexo idiota. O algoritmo necessita de que estejamos convictos de que o outro é um idiota, pois rentabiliza e monetariza essa certeza
Esta é verdadeiramente a embrulhada em que estamos. O “reflexo idiota” já não é algo circunscrito à raiva no trânsito. Deixou de ser um lapso cognitivo e tornou-se numa economia de atenção. Da “road rage para a rage scroll”. Em vez de buzinar, comentamos com raiva; em vez de cortar a passagem, bloqueamos; em vez de sair do carro, cancelamos.
É o mesmo mecanismo fisiológico: descarga de adrenalina, necessidade de reafirmar domínio e sensação moral de superioridade (“estou certo, logo o outro é idiota” ou o contrário).
Nas redes, este comportamento é até premiado — cada explosão moral rende atenção, reforçando o ciclo do reflexo idiota. A estrada tem faixas, o Twitter tem timelines: ambos territorializam o ego. Ultrapassar alguém é igual a contradizê-lo publicamente — ambos ameaçam o estatuto.
No “beef”, o território é simbólico: quem responde por último ou mais agressivamente reconquista o espaço social perdido. E a economia de atenção é a economia da raiva, em que o “nós” é moralmente superior ao “eles”, os idiotas. No trânsito, o outro é incompetente; na política, o outro é ignorante; na cultura, o outro é inculto.
O idiota é o motor da civilização digital. Quando falamos de polarização, de tribalismo, de divisão na sociedade, temos de pensar que, no fundo, estamos a ser manipulados através de um mecanismo de autopreservação — a raiva —, que nos serviu para sobreviver (algo chamado “sequestro da amígdala”), mas que agora é usado para odiarmos o outro sem refletirmos. A amígdala não distingue um tigre-dentes-de-sabre de um tuíte, que nos deixa o sangue a ferver.
E temos aqui uma questão grave que não estamos dispostos a aceitar: o problema poderá estar na arrogância do diagnóstico. O idiota é o espelho onde se reflete a nossa própria necessidade de superioridade. É que a solução é complexa. Num cenário destes, ser inimigo de alguém é mais confortável do que ser incerto em relação a algo.
O reflexo do idiota pode ser a lente com que se pode ler o século XXI. A indignação é a droga socialmente aceite, a raiva é o prazer mais estimulado e usado para criar identidade. O moralista é o toxicodependente da dopamina da superioridade.
E sim, estamos todos nisto. Os outros. E nós. E se não percebermos isso, estamos bem lixados. Somos todos idiotas. Eles e nós.»
[Luís Pedro Nunes, “Expressso”, 16/10/2025]

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
Esta entrada foi publicada em sociedade consumidor. ligação permanente.

Deixe um comentário

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.