URBANO B, DANIEL DE SÁ, MARTISN GARCIA

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MARTINS GARCIA e DANIEL DE SÁ:
diálogos com Gaspar Frutuoso
Por razões que me escapam, o original deste texto não entrou no meu último livro de ensaios.
O que abaixo fica é a versão reduzida de um ensaio mais longo, resultante da comunicação que apresentei nos Encontros Daniel de Sá, em 2016.
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Para ser mais rigoroso, o subtítulo do meu texto devia substituir Gaspar Frutuoso por «os discursos da história». Isto permitiria dar melhor conta da amplitude do objeco desse diálogo, que em José Martins Garcia não se limita ao cronista quinhentista. Seja como for, o mais relevante será realçar aquilo que sumariamente aí se enuncia: o texto de Gaspar Frutuoso como propiciador da aproximação de dois escritores tão distanciados entre si, em termos de escrita, de visão do mundo e também dos modos de representá-lo. No primeiro deles, uma visão pessimista anula a possibilidade de um qualquer amanhã e até o passado só existe enquanto matéria que a memória revolve de forma exacerbada no seu desespero e na sua angústia. Em Daniel de Sá, uma visão finalística (teleológica) da história, sujeita, portanto, a um progressivo aperfeiçoamento, proporciona o traço de esperança que, em regra, lança um rasto de luz sobre as ruínas da humanidade e dá sentido ao percurso individual.
Nisso residirá, estou em crer, uma parte da explicação para o diferente modo como cada um dos dois autores do século XX se aproxima do texto de Gaspar Frutuoso, o convoca e reescreve, para lá de aspetos que traduzem um comum ponto de partida ou de vista.
O romance «A Fome», de Martins Garcia, e a «Crónica do Despovoamento das Ilhas», de Daniel de Sá, constituem o objeto da minha análise, que representa apenas o primeiro e curto passo de uma abordagem mais desenvolvida.
«A Fome» poderá entender-se essencialmente como um romance de personagem, se atendermos a que textualiza o percurso do jovem estudante António Cordeiro, narrador da sua própria experiência, uma experiência de iniciação na vida e nos seus mistérios, seja ela a do “mundo abreviado” da ilha (Pico, Faial), seja a do grande mundo, de que Lisboa é apenas a parte do todo (Guiné, França, Estados Unidos).
Todavia, e a um outro nível, o percurso individual é indissociável de um percurso colectivo, torna-se a concretização particular de um destino que se projecta sobre a personagem como manifestação de uma fatalidade histórica; a viagem marítima que António Cordeiro empreende para Lisboa em 1956 apelará a outras viagens e a um destino colectivo de errância que uma visão apocalíptica propicia: «o fim do mundo já acontecera: e Deus salvara uns, condenara outros, e deixara os restantes a vaguear.»
Mas António Cordeiro é um narrador-protagonista com algumas particularidades, dado que ao longo do seu relato se vai metamorfoseando e assume várias vozes e rostos, em articulação com determinadas «estratégias metatextuais» delineadas desde o início através da citação de excertos de três cronistas açorianos: Gaspar Frutuoso, Frei Diogo das Chagas e António Cordeiro. Incorporados no discurso, por vezes mesmo objeto de apropriação por parte de um outro narrador que os apresenta como seus, os fragmentos selecionados por Martins Garcia, de notória dimensão lendária, veicularão uma perspetiva hoje problematizável da história insular. As citações em causa não se apresentam como simples argumento de autoridade, a caucionar uma afirmação própria e a dar-lhe credibilidade e consistência; nem sequer reclamam o estatuto de fontes documentais ao serviço de uma reconstituição histórica. Na verdade, «A Fome» não é um romance histórico, não se conjuga com o modelo tradicional do género, que se propunha, entre a ficção e os referenciais empíricos, a configuração de uma determinada época, com as suas personagens e ambientes.
Os excertos citados tornam-se funcionais pela interpretação que deles faz o narrador, pela leitura «crítica» a que os submete, confrontando-os uns com os outros e estabelecendo-lhes uma organização hierárquica, pelo menos em relação a alguns conteúdos narrativos (mais válidos uns do que outros), tudo isso num diálogo nem sempre reverencial e acomodatício com esses antecessores.
Numa breve anotação sobre Frutuoso, afirma o narrador em nítido distanciamento irónico: «O doutor Gaspar Frutuoso, ministro de Deus e divulgador de fábulas, cronista e ficcionista por graça da verdade e da mentira». Se a «mentira» se coaduna com o estatuto do autor de ficção que Gaspar também foi, a «verdade» já não parece adequar-se ao «divulgador de fábulas» e estas ainda menos ao estatuto de cronista. E ao comparar António Cordeiro com Frutuoso, escreve que o primeiro «conseguiu, em muitos aspectos, superar em grandeza suspeita o testemunho atribuído a Gaspar Fructuoso…».
A crónica quinhentista (e a posterior) está, deste modo, sob suspeição e Martins Garcia aproveita dela alguns aspetos mais problemáticos do ponto de vista histórico, isto é, fantasiosos ou lendários, para os integrar no discurso narrativo, fazendo-os participar na sua matéria ficcional, lado a lado com as fábulas provenientes da tradição oral.
«A Fome» abre com o relato do episódio vagamente fabuloso de Dona Matilde, a explicadora de francês: «Surgira glorioso o corpo nu da mulher, diante da tripulação embasbacada do barco que rumava a Nova Iorque. Por um caprichoso esquecimento, a fábula não relata todas as consequências de tamanho despudor. Dona Matilde, por graça da cútis fulgurante, deitou-se num sol de lenda, entre as costas americanas e os penedos atlânticos, prostituída e santa como Maria Madalena. E o pai, fidalgo de cepa flamenga, atirou-se borda fora, lavando a desonra no mar sulcado, em primeira mão, por seus antepassados.»
A inscrição histórica da aristocracia flamenga e das viagens para oeste e ainda a dimensão profana do episódio afastam-no do sentido místico e religioso que atravessa o episódio original em Frutuoso (reescrito por António Cordeiro), onde a visão da mulher vestida de branco (afinal, o Demónio disfarçado de Virgem Maria) era também um apelo à descoberta e à viagem (de perdição) entre o Faial e o Pico: «…respondeu [o Ermitão] que da vizinha ilha do Pico lhe aparecia uma mulher vestida de branco, que o chamava de lá, que se fosse para ela, e que por lhe parecer que era a Virgem Senhora, fazia aquele barquinho, de couro por fora, e determinava de passar lá quando a Senhora outra vez o chamasse: os que o ouviram o tiravam disso, e contudo o Ermitão ficou acabando o seu barquinho e se meteu nele ao mar, e nunca mais foi visto nem achado; e assim o demónio com capa de santidade fez morrer aquele Santo Ermitão, sem dele nem do barqueiro se saber mais.»
O romance terminará, em movimento de circularidade e explicitando o próprio processo da escrita, com a recuperação da sua frase inicial e em articulação direta com o fragmento do cronista acabado de transcrever acima, num contexto de diferente significação. Mas, ao longo da narrativa, a «aparição» fora sendo retomada como um elemento da história, «a mulher de branco» surgira a personagens diversas e em circunstâncias distintas umas das outras, tornara-se como que um leitmotiv, estabelecendo uma determinada articulação da narrativa e uma afinidade entre os seres que a povoam.
A opção por um narrador que conta a sua história (António Cordeiro) é uma estratégia que lhe permite transmutar-se ao longo de cinco séculos, assumir diferentes papéis e vozes, ora singulares, ora plurais (o «nós»), condensando em si uma «sobrecarregada memória» de fome, peste e terramotos que é, em síntese, a da condição insular açoriana. Em nome de uma auto-designada «estética da transmigração», o narrador de «A Fome» pode, sem transição, ser o «eu» do Constantino caçador de baleias e do Belarmino preso na Vila da Madalena ou o «nós» dos bravos do Mindelo. E pode ser igualmente a vítima escolhida para o retorno do episódio do dr. Fernão de Pina Marrecos relatado pelo cronista, num processo cíclico que atesta a permanência de mecanismos feudais de dominação e opressão social ainda em meados do século XX.
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Em Daniel de Sá, o diálogo com o cronista quinhentista estabelece-se desde logo, mesmo que de forma indireta, com o título do seu livro, «Crónica do Despovoamento das Ilhas», em que uma inversão semântica contrapõe um sentido de crónica divergente do da obra de Frutuoso, que fez da ocupação, desbravamento e povoamento do espaço insular a matéria da sua narrativa.
O livro de Daniel de Sá chama para título o mesmo da sua última narrativa, «em que se fala das causas que levaram muita gente a sair das ilhas e de como era feita a viagem para a Terra de Vera Cruz», como se pode ver na descrição-síntese que antecede o relato.
Essas causas são de natureza geográfica e geológica (a erupção do Capelo em 1672), mas sobretudo económica, com a degradação da vida social, a substituição da fartura pela pobreza, de que apenas «escapavam os privilegiados por títulos rendosos ou bem providos de cargos públicos». Situando a ação/a viagem nos finais do século XVII (isto é, um século após a redação da crónica de Frutuoso), a narrativa de Daniel de Sá configura já o reverso da história, ou enuncia talvez uma história nova, aquela cuja matéria será predominantemente a fuga e a dispersão. Em todo o caso, não deixa de sentir-se aqui ainda o eco de Frutuoso, que no seu texto registara o suposto aviso do Infante D. Henrique, o qual «dizem que disse que os primeiros povoadores roçariam e os filhos comeriam, os netos venderiam, e os bisnetos fugiriam» (Frutuoso, I: 59).
Por outro lado, graças a um poder de mimetização da prosa de quinhentos, com o seu discurso chão, o gosto pelo contraste e o balanceamento perifrástico, e lançando mão de um léxico e de uma sintaxe arcaizantes, a escrita de Daniel de Sá ganha o tom e o ritmo que, por este lado, a colocam em diálogo direto com a de Gaspar Frutuoso.
Esse diálogo direto pode situar-se ainda a outro nível, com o cronista «moderno» a convocar o texto de Frutuoso e a comentá-lo, num processo de evidente distanciação irónica. Este cronista «moderno» balança-se entre o presente e o passado, chama a si o estatuto de comentador avisado e preocupado em bem formar o leitor, por vezes ostensivamente mais informado que o seu antecessor e discutindo-lhe as explicações e os termos científicos, outras vezes sentencioso e ingenuamente opinativo, o que é ainda uma forma de ironia.
Neste contexto, quer em transcrição direta, quer apresentadas e comentadas por uma voz externa, as cartas facilitam o acesso a acontecimentos pessoais (como a de Inês Cunha), a queixas individuais ou institucionais em que tanto se inscrevem problemas sentimentais como os sinais e a denúncia do desregramento do serviço e dos gastos públicos, num jogo de (dis)simulações em que, por vezes e a partir dos signos do passado e da sua organização narrativa, se podem facilmente detetar as marcas da contemporaneidade do leitor.
Exemplar neste aspeto, enquanto ato de denúncia e exercício de humor, é a «carta supostamente atribuída a Gaspar do Rego Baldaia, e que seria para enviar a El-Rei D. João III, na qual se queixa de um jogo de canas entre cavaleiros de S. Miguel e da Terceira organizado pelo Dr. Manuel Álvares». (pp. 44-49).
Escrita para denunciar os gastos e desperdícios de dinheiro por parte deste último, desta vez a propósito de um jogo de canas programado com o objetivo de assinalar a inauguração de um marcador dos resultados do jogo, a verdade é que os símbolos identificadores de cada uma das equipas contendoras reenviam de forma óbvia para outro desporto e o jogo de canas não é mais do que uma partida de futebol entre o Santa Clara e o Lusitânia, Que através disso se veicule a crítica a uma política da ostentação e do «pão e circo» é facto que resulta apenas da arte do escritor, em que os anacronismos e os comentários do autor da carta proporcionam uma dupla leitura, a do passado e a do presente.
Exemplar também a subversão do sentido da história e da lógica dos comportamentos expectáveis, ao desfazer o jogo do decoro e das aparências sociais, como no episódio das freiras de Vale de Cabaços, hoje Caloura, ameaçadas por um barco de piratas.
Sem hipótese de auxílio institucional, dada a lentidão da burocracia, tendo-se os camponeses posto em fuga, o socorro veio, afinal, de algumas mulheres de Água de Pau «que desceram até às pedras do porto, dispostas a defender a honra das professas sacrificando a sua, se preciso fosse, ainda que, sem confissão declarada, entre si caladamente entendiam que tal perda não lhes seria desgosto… Não eram aqueles homens valentes por serem corsários e galantes por serem franceses?»
É certo que, no final do episódio, Deus encarregar-se-á de proporcionar uma solução conveniente à boa ordem do mundo e das almas, com o mar cada vez mais tempestuoso levando os franceses a tratarem da própria vida. Talvez essa intervenção divina seja o resultado das preces das freiras, pois diz-nos o narrador que elas, «no convento, disfarçavam o seu santo pavor em orações ardentes para que os franceses não alcançassem terra, enquanto, mais abaixo, as voluntárias a salvadoras da sua honra rezavam em silêncio para que o mar amainasse…»
A folha de rosto de «Crónica do Despovoamento das Ilhas » traz em localização subtitular e parentética a seguinte descrição que constitui o desenvolvimento daquela que já constava da capa: e outras cartas de El-Rei, ou a ele dirigidas, e em que se trata também de muitos outros feitos que a propósito se contam. Trata-se de uma descrição que, para lá do mais, comporta uma informação sobre procedimentos internos, especificamente o recurso ao género epistolar como suporte de um conjunto de acontecimentos insulares (ou com estes relacionados, se pensarmos, por exemplo, na carta de D. Manuel em resposta a outra de Inês da Cunha).
Ao contrário do que acontece em Martins Garcia, onde por vezes encontramos comunidades a que a história nem sequer chegara, em Daniel de Sá a história é um processo dinâmico, em que intervêm homens concretos, as suas glórias, pequenas ou grandes, com as suas fraquezas e misérias, mas capazes de redimir-se. Isto poderá explicar o grau de controlado otimismo, talvez antes bonomia, com que a própria história é vista, com base na crença de que há sempre uma réstia de bondade que dá sentido aos factos e aos gestos individuais e coletivos. «Se a Humanidade resiste a tantas coisas más é porque será decerto melhor do que parece» – conclui sentenciosamente um dos narradores de «Crónica do Despovoamento das Ilhas».
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Daniel de Sá (1995), «Crónica do Despovoamento das Ilhas». Lisboa, Edições Salamandra.
José Martins Garcia (2016), «A Fome». Abertura de Luiz Antonio de Assis Brasil. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.
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(Versão abreviada da comunicação apresentada nos Encontros Daniel de Sá. Ponta Delgada, 11 de março de 2016)
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