CRÓNICA DE ANTº BULCÃO SBRE A MORTE

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António Bulcão
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“Isto está a andar depressa demais”.
Não foi quando criança, nem sequer quando adolescente, que comecei a ouvir meu pai dizer aquilo. Já era jovem, e, no início, não entendi o alcance da coisa.
Demorei algum tempo até perceber que “isto” era a vida e que meu avô concordava com meu pai, com curto e resignado “é verdade”.
Eu ainda num tempo em que tudo me parecia andar muito devagar, sobretudo o tempo, e eles com aquela certeza. Creio que me julgava eterno. Talvez eles também se julgassem eternos, antes de começarem a dizer que a vida andava depressa demais.
Não sei precisar o momento em que comecei a pensar ser eterno. É do tipo de coisa em que não interessa pensar. Não morreu ainda ninguém chegado, os calhaus estão sempre à distância de um salto, mesmo naqueles saltos em que os caniços e o balde do engodo vão parar ao buraco entre pedras e a gente pensa ter sido por pouco, mas já afiando as asas para novo salto.
Da mesma maneira, não sei a hora em que tive a certeza de que era mortal. Talvez no dia em que a primeira pedra já não estava no calhau, mas nos rins. Comigo lívido, a mal poder andar, a caminho do hospital velho, no carro de um amigo. Comigo a gritar com dores, eu, que odeio dar parte de fraco. Cheio de sede. O médico a dizer-me que não podia beber e eu sem perceber a razão.
Mal a bata saiu de vista para ir chamar uma enfermeira, botei-me para a torneira com a boca escancarada e toca de beber. Percebi logo a proibição do médico. Se não podia sair por baixo, entupido que estava, saiu por cima. Mas as convulsões dos vómitos mexeram com a pedra e a dor praticamente se foi. Comigo aliviado mas a pensar que talvez não fosse eterno, enquanto contava os pingos de suor deixados no chão.
Depois veio a primeira morte. Nem sequer foi na família, o pai da namorada morreu novo. E ela enrolada em si, num novelo de água, e eu sem saber o que fazer, a tentar treinar-me, imaginando que era comigo. Sem entender que aquele sofrimento não se treina, só se aprendendo mesmo quando é connosco.
Depois foi a única bisavó que conheci, a seguir avôs e avós, com toda a gente a dizer que era a lei da vida e eu ainda a sentir-me um fora da lei. Até chegar o dia de meu pai, depois da minha mãe, e não vos conto porque ainda não encontrei palavras que fixem aqueles dias, tantos anos passados. Um dia talvez consiga.
Poucos dias depois do dia de meu pai, conheci o José Luís Peixoto e ele ofereceu-me o seu “Morreste-me”. Como se a leitura da morte do pai dele pudesse ajudar-me a ler a morte do meu. E ajudou. Os grandes escritores têm essa magia. Ajudam muito a ler o mundo. Ficámos amigos, até hoje. Os que quiserem leiam o “Morreste-me”. Talvez ajude.
Acabei agora de ler “Gabo e Mercedes, uma despedida”, da autoria de Rodrigo Garcia, livro em que escreve sobre os últimos dias de sua mãe e de seu pai, o escritor que mais me marcou na vida, Gabriel Garcia Márquez. Entrei na sua casa, conheci a sua família, fiquei à beira da cama até o coração desse fantástico homem deixar de bater. Os que quiserem, leiam. Talvez ajude, como ajudou a mim.
Nem todos podemos ser violoncelistas por quem a morte se apaixone, ao ponto de, nesse dia, ninguém morrer. Mas ajuda conhecer “As intermitências da morte”, do Saramago. Sobretudo para aqueles que, como eu, já repetem demasiadas vezes que isto está a andar depressa demais…
Post Scriptum – Dedico esta crónica ao meu amigo Manuel Ferraz Cardoso. Foi-se embora numa semana, este escritor terceirense. Mas, enquanto vivo, não passou uma vez por mim em Angra que não parasse o carro, para trocarmos umas palavras ao vivo, que no Messenger foram milhares. As últimas mensagens, já com fonte num hospital, foram indecifráveis para a maioria. A última um simples M. Que eu interpretei como de Melhor, já sabendo que não era. Ou… sei lá.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
Carlos Noémia Garcia