a intervenção do Dr. Vasco Pereira da Costa, no Congresso da Lusofonia,

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Para quem esteja interessado e com tempo, fica a intervenção do Dr. Vasco Pereira da Costa, no Congresso da Lusofonia, que decorreu no município da Ribeira Grande, no Arquipélago – Centro de Arte Contemporânea, na Sessão de Homenagem, pelos 40 Anos de atividade Editorial e Livreira, deste vosso amigo.
“O início dos anos setenta do século passado era propício a uma formação a que faltava preparação à escola, pouco aberta aos choques ideológicos, o confronto dos gostos, as altercações sobre a Guerra Colonial competiam e digladiavam-se no seio de uma sociedade politicamente vigiada e silenciada. Ousava-se querer uma sociedade mais remexida, mais europeia onde brilhava aquela “pequenina luz” de Jorge de Sena.
“Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exatidão como a firmeza
Como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui no meio de nós.
Brilha!”.
Por essa altura surgiam Guevaras efémeros de boina às três pancadas e pensamento a escorrer pelas orelhas. E, quando Paulo VI recebeu no Vaticano os líderes da emancipação das colónias portuguesas, os senhores padres proviam novenas pedindo a conversão do Papa.
A emigração era avassaladora, mas ouvia-se:
“Ei los que partem/ novos e velhos/ buscar a sorte/ noutras paragens/ virão um dia/ ricos ou não/ virão um dia/ ou não (Manuel Freire)”.
Entretanto, Mafra fazia descer o gume da guilhotina sobre as cabeças da juventude. E o Zeca cantava:
“Menina dos olhos tristes/ o que tanto te faz chorar/ vem numa caixa de pinho/ do outro lado do mar/ desta vez o soldadinho/ nunca mais se faz ao mar”.
A escola institucionalizada era percorrida sibilinamente por um frémito de mudança. Fanhais cantava Sophia:
“Vemos/ Ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar”
E nos corredores escolares percebia-se que os alunos mais espigadotes almejavam ser cidadãos do burgo, comparsas da polis, habitantes do planeta, acreditando nas suas capacidades de promoverem uma mudança.
É neste contexto sociopolítico, deixando as traquinices infantis de Francisco Madruga, encontrando-o no começo desses anos setenta como aluno do Liceu Nacional de Vila Nova de Gaia.
Anos antes, Francisco apercebera-se da queda física e simbólica do Manholas de Santa Comba, que será a alcunha mais simpática para a figura sinistra de António Oliveira Salazar, responsável pela longa ditadura que estrangulava o desenvolvimento do país.
Marcelo Caetano tomara as rédeas do governo apenas matizando as medidas ditatoriais, continuando Portugal a sustentar uma sangrenta guerra colonial com consequências desastrosas:
A emigração, como já disse, a persistência no chavão de “orgulhosamente sós” com a comunidade internacional a fustigar as políticas governativas que escamoteavam um avultado analfabetismo e cerceava a liberdade de imprensa com um regime de censura prévia.
Foi-lhe possível, então encontrar no Porto burguês e republicano, um ambiente inconformado com a conjuntura caquética do Estado Novo numa agonia que a custo estrebuchava.
Nas cidades universitárias – Lisboa, Porto e Coimbra – os movimentos estudantis ousavam contestar as políticas de clausura e o empenho numa guerra que cerceava as vidas da sua juventude. Esses movimentos de contestação, e de afronta, contaminava também os alunos do ensino secundário que, no ciclo complementar já encaravam o seu futuro de pelo menos quatro anos, pelo menos, de guerra e, provavelmente, num destino de carne-para-canhão.
Ora, aos 17 anos, no dealbar da Revolução de 1974, Francisco Madruga já estava contaminado pelo vírus do reviralho pondo em causa as proclamações isolacionistas, as catequeses das sotainas reverentes, enfim, o regime castrador e devasso. E, no dia 26 de Abril apercebeu-se de uma algazarra só semelhante a uma visita do Benfica ao estádio das Antas: o povo estava nas ruas saudando a liberdade suspirada.
Não será de todo despiciendo notar que Francisco Madruga é transmontano, carregando, no fundo e na forma, cromossomas que Miguel Torga sintetizou: “Homens de uma só peça, inteiriços, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão(…). Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma resposta
– Entre quem é!
Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade inteira. O que é preciso, agora, é merecer a magnificência da dádiva”.
Deste modo, transplantado para uma cidade orgulhosamente burguesa e britanicamente pragmática, vai encontrar uma atmosfera cultural que lhe talha o fato à medida. Não esqueçamos que o Porto tinha e ainda tem uma atmosfera sociocultural nunca radicalmente subjugada pelo execrando salazarismo: uma profunda criatividade jornalística, uma dinâmica “Associação de Jornalistas e Homens de Letras”, a residência de velhos resistentes ao regime -Helder Ribeiro, Cal Brandão, Emidio Guerreiro, Virgínia Moura, entre outros – ; escritores como Sophia, Eugénio, Agustina, Pina, Cláudio; edição de revistas de literatura e arte marcantes na história cultural do país.
Eis, pois, por que, imediatamente após o 25 de Abril, Francisco Madruga já amadurecera ideologicamente, envolvendo-se, comprometido, no Movimento Estudantil quer ainda no termo do ensino secundário quer, depois, no universitário, tornando-se dirigente comunista, militando nas associações estudantis, passando para as atividades mais abrangentes, organizando a estrutura da UEC e JCP em Trás-os-Montes e Alto Douro.
Buliçosamente empreendedor, participou no Movimento Preparatório da Conferência pela Paz em Helsínquia e participou na organização do Acampamento Internacional da Juventude pela Paz em Portugal.
Para quem afirma ter chegado ao livro por mero acaso, cumpre indagar por que, logo após o 25 de Abril, organizava bancas de venda de livros no liceu e na Cooperativa Árvore, a primeira feira do livro Universitário.
Creio ter uma achega para a resposta, socorrendo-me do que Joseph Brodsky escreveu no seu discurso de imposição do Prémio Nobel:
“Não defendo a substituição do Estado por uma biblioteca, embora este pensamento me tenha visitado repetidas vezes, mas não tenho dúvidas de que, se escolhêssemos os nossos governantes com base na sua experiência de leitura e não com base nos seus programas políticos, haveria menos sofrimento na Terra”.
Não será por mero acaso a chegada aos livros. Já Ramalho Ortigão avisara:
“Em Portugal há apenas 20% de pessoas que compram livros e 80% os que pedem emprestados e, em geral, não os restituem”.
Esse mero acaso só poderá ter raízes na militância imaginada de Brodsky; Francisco Madruga é um editor militante. Aliás, em Portugal, só a militância explica o editor.
Senão, vejamos, sinteticamente, o acaso (mero?):
– Sócio fundador da ECL – Empresa de Comércio Livreiro – diretor e administrador.
– Sócio fundador das editoras Campo das Letras, Campo da Comunicação, Primeira Edição e Calendário de Letras, sendo diretor e administrador das duas últimas.
– Sócio fundador da edição portuguesa de Le Monde Diplomatique.
– Sócio fundador do Fórum Terras de Mogadouro.
– Diretor da revista Terras de Mogadouro.
– Colaborador dos jornais Voz do Nordeste, Informativo, Cardo, Mensageiro e Norte Popular.
– Membro da Comissão Organizadora da mostra cultural do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro.
– Membro da direção da APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, durante dois mandatos.
– Organizador da Feira do Livro do Porto.
– Responsável por dezenas de Feiras, Mercados e Festas do Livro no Porto, Viana do Castelo, Braga, Matosinhos, Espinho, Vila Real, Bragança, Lisboa, Viseu, Aveiro, Serpa, Coimbra, Figueira da Foz, Barreiro, Portimão, Vila Real de Santo António e Faial.
– Carregador de livros de língua portuguesa para Macau, Brasil e Galiza.
– Participante, colaborador e orador em diversos Colóquios da Lusofonia.
Para além de editor, Francisco Madruga é, também, autor, contrariando assim, o percurso normal dos editores que começaram por ser autores – Nelson de Matos, Manuel Alberto Valente, por exemplo.
É certo que não é despicienda a sua colaboração em jornais e revistas para um enquadramento de uma prosa mais elaborada de talhe literário. Daí que tenha surgido e edição de dois livros de cariz memorialista “Novos Tempos, Velhas Culturas” e “Histórias (de) Vidas”, ficando nós à espera de dois títulos que está preparando que, pelos títulos, acentuarão o caráter memorialista das suas obras “À Volta dos Livros, com alfaiates, barbeiros e outros ofícios” e “O tio sargento, um militar de abril”. A função de escrita do autor deverá ter presidido à elaboração de textos, sobre tudo no esboço de uma classe militar escamoteada pelo protagonismo dos capitães.
Eu tive a oportunidade de assistir, no Porto, ao lançamento das “Histórias (de)Vidas” e pude, então, testemunhar quanto o Francisco Madruga é estimado e admirado por uma larga esteira de leitores – amigos, companheiros e camaradas que encheram com esfusiante alegria o átrio do Mercado do Bom Sucesso. Talvez, em Francisco Madruga possa reconhecer-se o esboço de Sá de Miranda:
“Homem de um só parecer,
D’um só rosto, uma só fé,
D’ antes quebrar, que torcer,
Ele tudo pode ser,
Mas de corte homem não é.
Para que possa aguçar a vossa vontade de leitura, deixo aqui o texto de apresentação da contracapa.
“Um percurso com amigos reais e imaginários, homens e mulheres que tiveram o sonho, a coragem, a inteligência e a convicção de que era possível libertar um país amordaçado. Insistem, com alguma veemência, que seja radical. Tentou ir à física, à matemática e ao adjetivo. Ficou sem saber o que pensar. Ele que bebendo do pipo do avô em tenra idade, que adorou o Senhor e até fez birra para a mãe alugar um fato para a Comunhão Solene, fez gato-sapato na escola, adotou o desporto em geral e o futebol em particular por modo de existência, mudou o nome por idolatria, apontou à Morgadinha dos Canaviais, chegou ao Bonifácio através do Eça e bebeu princípios em livros novos. Chegou à Utopia pela imagem de que para transformar era necessário participar. Houve os que lutaram e os que estiveram calados! Ele optou e, quando se opta, fica o registo histórico! Agora, radical e marginalizado, não! Pode ter sido tudo, cidadão castrado, não!”.
Eis o autorretrato de Francisco Madruga: mogadouramente frontal, ironicamente inteligente, torguianamente humilde e orgulhoso do seu passado. What you see it’s what you buy?
Perguntais, agora, com toda a legitimidade, por que carga de água é que estou aqui a falar petulantemente sobre Francisco Madruga. Tentarei explicar, se bem que seja fácil.
Quando era diretor do Departamento de Cultura (que englobava também o serviço das bibliotecas), fui certo dia, visitado pelo livreiro de Coimbra Adelino Castro do nunca nomeado, Francisco Madruga. Com Castro a Câmara tinha uma relação de proximidade posto que, com frequência colaborava em algumas iniciativas, no âmbito da promoção do livro e da leitura. Dessa vez, propunha o livreiro a Festa/Mercado do Livro, pretendia as instalações da Casa Municipal da Cultura e queria saber o preço do aluguer do espaço. Sei que lhe respondi que a cedência rea gratuita, mas que haveria a compensação da oferta de livros e jogos num montante que não me lembro. O negócio foi fechado, a iniciativa acolheu, durante vários dias, centenas de visitantes e de compradores. E assim decorreu durante vários anos com o mesmo contrato.
Quando cheguei aos Açores como diretor Regional da Cultura, a minha primeira preocupação foi visitar os organismos dependentes de todas as ilhas. E, assim, chegado ao Faial, verifiquei que a atividade da Casa da Cultura da Ilha que justificava a sua existência com a organização da Feira do Livro da Horta ocupando uma intrincada, minuciosa e burocráticas correspondências com editoras – envio, reenvio, contabilização, embalagem, venda, etc. Aí lembrei-me do Adelino Castro e na Festa/Mercado do Livro em Coimbra. E eis por que a iniciativa chegou aos Açores e as Casas da Cultura são extintas. , passando os seus objetivos de promoção e difusão da cultura para a alçada dos Museus e Bibliotecas Públicas e Arquivos Regionais.
Eis senão quando, sou informado por Adelino Castro que seria o seu parceiro a ir aos Açores representando a empresa. Ora, esse parceiro era o Francisco Madruga.
Devo esclarecer que nutro por Adelino Castro a maior estima e consideração com quem sempre converso simpaticamente sempre que nos encontramos, mantendo gratas recordações por muita coisa bonita que fizemos, sendo a mais marcante a presença do recém premiado Saramago nos Paços o Concelho. Porventura, nesse dia, tenha sido apresentado ao Francisco Madruga.
Porém, o que é facto, é que para mim, a fórmula de tratamento que uso para Adelino Castro é, sempre, senhor Castro. Na chegada de Francisco Madruga aos Açores, instantaneamente, como velhos amigos que se reencontram, adotamos o “tu”.
Ora, a amizade nada mais é do que a perceção de semelhança e de verosimilhança que permite partilhar e desenvolver tarefas e iniciativas em conjunto com empenho e com compromisso. Daí que não se enquadre nos likes das redes sociais onde surgem amigos muito aspados sem rosto nem carater nem no círculo fortuito do inconsequente porreirismo convivial.
Sou amigo do Francisco Madruga e, no fundo, sinto que essa amizade é recíproca e gosto de estar com ele, com a sua bonomia, com a sua tolerância, com o seu indefetível benfiquismo, (águia voadora em terreno de dragões)., com a sua plácida ironia do seu sentido realista de enfrentar cada dia, e da sua família de matriarcas – mãe – mulher – duas filhas a apaparicá-lo, onde no meio deste género apareceu agora o outro Francisco. Por isso, talvez, Francisco Madruga, caldeia a gentileza genuína com a granítica feição transmontana e com a céltica bravura que lhe tingiu o cabelo.
Por tudo isto, que é muito pouco do que poderia ser dito, escolhi para terminar, um poema que sintetiza o que é, entre nós Francisco Madruga.
Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra “Amigo”
“Amigo” é um sorriso
De boca a boca
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração a pulsar na nossa mão!
“Amigo” (recordam-se vocês aí, escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de inimigo!
“Amigo” é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
“Amigo” é a solidão derrotada!
“Amigo” é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!
(Alexandre O’ Neill – in “No Reino da Dinamarca”.
Senhor Presidente da AICL, posso constatar que tem sido de uma grande atualidade na promoção de homenagens a muitas personalidades lusófonas e lusófilas. Saúdo essa atitude promocional, algumas vezes lisonjeira e complacente, como por mal disfarçada humildade, posso testemunhar.
Contudo, neste dia, pelo trabalho desenvolvido no seio da sua instituição, pelo labor editorial que emanou destes Colóquios, pela devoção que emprestou às iniciativas dos “Colóquios”, apenas posso dizer que não fez mais que a sua obrigação.
Escrevo este texto com um prazer imenso, testemunhando a amizade a admiração por um Homem Grande!
May be an image of text that says "COLOQUIOS DA LUSOF LUSOFONIA ONIA AICL 2023 AGEADO EDITORIAL EMADRUGA ADRUGA"
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Manuel Borges

Obrigado pela partilha…
Grande abraço
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Francisco Madruga

Manuel Borges obrigado eu pela tua presença nos Colóquios. Abraço
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Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
Esta entrada foi publicada em 39º XXXIX Colóquio da lusofonia. ligação permanente.