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Esta malvada solidão acontece aos melhores de nós!
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POSTAL DO DIA
O silêncio de Joaquim Letria
1.
Não me sai da cabeça o final da conversa com Joaquim Letria, numa das sessões à volta de Ficheiros Secretos, aqui nesta página.
Como se nada fosse, disse-nos que tinha passado muito bons minutos connosco. Minutos que guardará nos próximos dias por não ter assim tantas pessoas com quem falar.
Fiquei com as lágrimas nos olhos.
O homem que foi durante tantos e tantos anos o mais popular jornalista português, o homem que arrebatava audiências com os seus talk-shows que eram tudo o que não estávamos habituados em ditadura.
Toda a gente ia.
Cunhal, Soares, Freitas, Sá Carneiro.
E Joaquim era um entre iguais.
Fazia as perguntas como se estivesse na nossa sala.
E depois na rua…
… na rua lembro-me da primeira vez que o vi.
Era um Deus o Joaquim.
Rodeado de pessoas por todos os lados, autógrafos, beijos e beijinhos.
2.
E quando o ouvi desamparou-me, desamparou-nos, com palavras a que não pareceu oferecer especial enfase.
Falou da solidão sem nunca ter dito que estava só.
Falou do silêncio sem nunca ter falado da ausência de palavras.
Sorriu como um menino abandonado, o menino que talvez ele nunca tenha deixado de ser.
3.
Sabem um bocadinho dele?
Um dia contou-me sem me pedir segredo que houve um tempo em que as duas datas se juntavam. De manhã, vestido de domingo, depositava as flores na campa da mãe e à tarde juntava os colegas da escola à volta do bolo de aniversário. Depois, desapareceu a família mais direta e ficou entregue a si próprio, destino da maioria de nós – o dia dos seus anos continuou tão ou mais ambivalente do que antes, mas agora só ele o deve notar nos seus silêncios, na sua intimidade.
Comovi-me quando mo contou. Veio a propósito de uma fotografia da mãe, violonista na Orquestra Polifónica de Lisboa, uma imagem que ia ao encontro do que Adriano Moreira lhe dissera num encontro há tantos anos atrás: «A sua mãe era uma mulher muito bonita, muito bonita mesmo». E era. Mas Joaquim nunca a pôde ver sem ser em papel. Morreu para que ele pudesse nascer e isso, mesmo nos momentos em que brindou à felicidade, nunca foi um pormenor.
Como poderia sê-lo?
Talvez o desamparo seja apenas agora mais visível.
Talvez, mesmo no auge da popularidade, sempre tenha estado só sem nunca estar sozinho, não sei.
4.
Foi em tudo nisso que pensei, foi tudo isso que recordei quando o ouvi naquela noite de Ficheiros Secretos.
“Sabem, não tenho assim tantas pessoas com quem falar”
E eu respondi, com absoluta sinceridade.
“Mas Joaquim, já viu quantas mensagens recebeu de carinho durante esta emissão”.
Ele tinha-as lido. E com o seu magnífico humor cortou-nos ao meio – a mim e ao António Cunha Vaz.
“Vocês percebem que comigo não têm hipótese?”.
Como poderíamos ter, Joaquim?
Meu querido mestre.
LO
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