ABC da Tradução.

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Tradução de A a Z

A tradução é um território que podemos explorar de várias maneiras. Para o Dia do Tradutor (30 de Setembro), deixo uma viagem de A a Z.

Marco Neves

Sep 30

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Foto de Rita Morais em Unsplash

O texto abaixo foi publicado no livro ABC da Tradução.

A de Arte

O tradutor é um operário das palavras. É também um artífice – e às vezes é um artista. Mais do que reproduzir mecanicamente textos (e só acha que é um processo mecânico quem nunca experimentou traduzir durante mais de dois minutos), especializa-se na arte da aproximação. Aproxima-se do texto de partida, às vezes com temor, outras vezes sem pudor. Há ainda todos os casos em que tem de se afastar, conscientemente, desse texto para que o novo texto, que está a criar, cumpra uma determinada função. E há ainda os momentos em que nos afastamos por erro, por falharmos o alvo, por ser muito difícil, por vezes, perceber qual é o alvo. A Tradução é ofício, com ferramentas e regras. É uma arte, com muito de intuição e de técnicas aprendidas. E é qualquer coisa que se aprende com o tempo, tal como também se aprende com o tempo a aceitar o risco, a aceitar que falhamos, que a tradução não é mesmo matemática. Aliás, um computador consegue lidar bem com problemas de matemática, mas ainda tem algumas dificuldades em lidar com um texto de marketing, por exemplo (e nem vamos falar da tradução literária).

B de Brio

Há uns tempos, li uma crítica a um tradutor que tinha usado a palavra «barco» para traduzir o inglês «boat». Que a palavra «bote» estava mais próxima do som do original e que, assim, mantinha o humor da frase em questão. Tivesse o tradutor optado por «bote», teria outro leitor (ou, quem sabe, o mesmo) exasperado perante tão gritante falso amigo. Se isto é assim com uma palavra, o que dizer de uma frase ou de um texto, em que cada cabeça despeja suas sentenças. O tradutor leva nos ombros o peso da língua e das ideias que os outros têm sobre a língua. O bom tradutor levará também aos ombros, esperamos, o brio de fazer o melhor trabalho possível, com os materiais, as ferramentas e as técnicas ao seu dispor. O resultado não será garantidamente elogiado, por mais que façamos. Aceitá-lo faz parte desta profissão, que tem os seus riscos, mas também os seus prazeres.

C de Cliente

Se um bom tradutor tem o brio de procurar a melhor tradução, os bons clientes de tradução (até um leitor de tradução é, de certa maneira, um cliente de tradução) sabem que têm ao dispor um profissional que o aproxima do texto de partida – ou então do texto de chegada com que sonhou. Nem sempre corre bem. Há conflitos, há expectativas erradas, há projectos que terminam cobertos da famosa matéria que os ingleses atiram à ventoinha. Para ajudar a resolver tudo isto, além do tradutor (e do revisor, já agora), temos também o gestor de projectos, uma profissão ainda mais invisível que a do tradutor, mas que serve como esponja para absorver todos os problemas do mundo (da tradução).

D de Dicionário

Na cabeça de muitos, um tradutor é um dicionário ambulante – e um dicionário de todas as línguas, já agora. Nem desconfiam que os tradutores usam dicionários (e usam muito) – mas que um tradutor tem de ir muito além do dicionário. Pense-se na palavra «apenas», que nos dicionários espanhóis e portugueses tem significados múltiplos, mas semelhantes. E, no entanto, um espanhol usa a palavra, habitualmente, com o significado de «logo que» ou «quase não» e os portugueses usam, em quase todos os textos, a mesma palavra com o significado de «só». Os dicionários não servem para resolver o problema: é mesmo preciso saber ler com atenção e estar atento às armadilhas (e esta é apenas uma das armadilhas mais simples e mais visíveis). Depois, aquilo com que os tradutores trabalham no dia-a-dia não é uma colecção de palavras, mas antes terminologia, ou seja, um conjunto de termos associado à área do texto em particular. Sim, porque os tradutores não andam a substituir palavras numa língua por palavras noutra língua. Andam a recriar frases e textos – e andam sempre à procura do termo certo para aquele cliente e para aquele texto. Um termo, diga-se, é uma palavra ou expressão usada com um sentido particular num contexto particular. Às vezes, o contexto é a área do cliente; outras vezes, o contexto são os hábitos terminológicos daquela empresa em concreto; há ainda casos em que os termos são daquele texto e de mais nenhum.

E de Empresa

A actividade de tradução envolve documentos, papéis, transformações, terminologia, instruções complexas, prazos difíceis, questões jurídicas, especialistas para traduções especializadas. As empresas, quando precisam de tradução com frequência, contratam empresas de tradução, que preparam os documentos, gerem as instruções e a terminologia, organizam os materiais de referência, disponibilizam ferramentas, escolhem os profissionais adequados a cada tarefa, verificam o trabalho, entre todas as outras tarefas habituais de uma empresa de serviços. São, muitas vezes, empresas pequenas, mas ágeis – a trabalhar num pequeno escritório numa cidade portuguesa, enquanto conversam e trabalham com profissionais de todo o mundo. São espaços mais interessantes do que dizem por aí…

F de Ferramentas

Já será difícil encontrar quem julgue que os tradutores trabalham com papel e caneta. Mas ainda haverá muitos que não conhecem outras ferramentas habituais do tradutor: bases de termos; corpora; memórias de tradução; programas de reconhecimento óptico de caracteres; programas de controlo de qualidade; programas de edição gráfica; entre tantas outras ferramentas, das mais simples às mais abstrusas. Às vezes, um tradutor tem de coçar a cabeça longos minutos para encontrar a ferramenta certa – e não é raro encontrar tradutores a criar ferramentas próprias para esta ou aquela tarefa.

G de Gestor de projectos

Entre mensagens do cliente a pedir um orçamento, telefonemas do tradutor perdido nalgum lugar do mundo com problemas de acesso à internet, reuniões com colegas para definir novos procedimentos, o gestor de projectos vai orientando os projectos de tradução do princípio ao fim, descobrindo, na prática, em quem confiar, que ferramentas usar, como levar a que todos leiam as instruções, onde se escondem os erros mais frequentes, entre muitas outras informações difíceis de passar para o papel. Uma actividade para lá de agitada: se alguém gosta de línguas, mas também gosta do perigo, a gestão de projectos é uma aventura.

H de Hábitos

Os portugueses estão habituados a ler legendas. Os espanhóis nem por isso. É apenas um caso particularmente bem conhecido das expectativas que temos em relação às traduções que encontramos. Os hábitos tornam-se leis que ninguém escreve. Há características habituais dos géneros de texto (uma acta em Portugal não se faz da mesma maneira que uma acta em Inglaterra, e as diferenças vão muito para lá da língua), e há expectativas dos utilizadores de texto e hábitos dos tradutores que se cristalizam em normas de tradução, também elas diferentes entre sociedades e entre épocas – basta pensar que já foi comum traduzir os nomes de personagens. Há ainda os hábitos de cada tradutor e os hábitos de cada cliente. Por fim, as próprias línguas são um conjunto complexo de hábitos: regras, excepções, palavras, símbolos… Estes hábitos nem sempre são lógicos ou sistemáticos. Por cá, dizemos «Isabel II», mas referimo-nos ao anterior rei de Espanha por «Juan Carlos I». Os nomes dos monarcas ingleses traduzem-se e os espanhóis nem por isso? Às vezes, as diferenças de hábitos – ou seja, as diferenças culturais – levam a alguma estranheza e, quando calha, algum conflito. Lembro um dia em que um cliente ficou irritadíssimo por receber uma tradução alemã com todos os nomes com inicial maiúscula. E, no entanto, é esse o hábito ortográfico dos alemães… Por outras palavras, é essa a regra ortográfica seguida na Alemanha.

I de Ilusão

Esta é uma palavra que mostra bem a subtil diferença entre as línguas. A «ilusión» castelhana e a «ilusão» portuguesa não têm significados muito diferentes – e, no entanto, a primeira é quase sempre positiva (significa algo como «esperança», «expectativa»), enquanto a nossa ilusão é um engano ou um devaneio. Pois, à volta da tradução também rodam muitas ilusões, no sentido português. Há o engano mais filosófico – e de larga tradição – de imaginar a tradução como uma actividade ilusória, com base na ideia exagerada de que cada língua representa um mundo mental absolutamente separado. Do outro lado do espectro de ilusões, temos a ideia de que a tradução é apenas um jogo de trocas de palavras e uma ou outra regra gramatical, relativamente simples. Ora, não é. É uma actividade complexa, mutável, difícil de agarrar num conjunto de regras ou procedimentos fixos. Mas esta ilusão da facilidade perdura. Há outras ilusões mais subtis: como a ideia de que a cada frase pertence uma só tradução em determinada língua, sendo todas as outras aproximações. Ora, se um texto pode ser traduzido de forma errada de infinitas maneiras, também pode ser traduzido de forma correcta doutras quantas (o que não quer dizer que todas sejam adequadas para todas as situações).

J de Jargão

A palavra «jargão» é, objectivamente, feia. Teria preferido «gíria», mas o G já estava ocupado. Aqui fica, então, tal monstro, que tanto quer dizer «linguagem própria de profissão ou grupo particular» como «linguagem incompreensível» – e, diga-se, a linguagem particular de um grupo é, muitas vezes, incompreensível para quem está de fora. Isto acontece porque, por força do hábito, nem sempre quem usa determinado jargão se apercebe de quão incompreensível ele é para os outros; outras vezes, o uso serve para marcar distâncias, mais ou menos conscientemente. Se entre colegas o jargão facilita a comunicação, quando é usado fora do sítio, é uma barreira ainda mais difícil de ultrapassar do que as diferenças entre as línguas. Pois o tradutor tem de lidar também com estas linguagens dentro da língua, com estas formas particulares. Por fim, o próprio tradutor tem um jargão próprio: «língua de partida», «língua de chegada», «memórias de tradução», «base de termos», «QA», entre muitos outros termos, alguns transparentes para quem está de fora, outros bastante difíceis de decifrar.

K de Know-how

Esta expressão é inglesa, sem dúvida. E, no entanto, quando traduzimos para inglês um texto português onde aparece «know-how», nem sempre a tradução irá incluir tal expressão. A expressão ganhou um sentido subtilmente mais genérico em português, equivalente a «experiência» ou «conhecimento», quando em inglês mantém, em muitos textos, o sentido mais restrito de «conhecimento implícito», «experiência prática». São sentidos muito semelhantes, mas suficientemente distintos para que o tradutor, se souber o que está a fazer, opte por outra palavra, em muitos casos (mas não em todos: ninguém disse que isto era fácil). Há casos ainda mais extremos de palavras inglesas numa outra língua que não correspondem às palavras inglesas num texto inglês. Os alemães, por exemplo, usam «handy» para «telemóvel», um uso da palavra que deixaria um inglês a coçar a cabeça. Já agora, antes de avançarmos para a próxima palavra, gostaria de lembrar: se os tradutores são acusados, muitas vezes, de introduzirem estrangeirismos na língua, andam, na verdade, todos os dias a procurar soluções portuguesas para palavras ou expressões que toda a gente anda a dizer noutra língua (hoje em dia, essa língua é quase sempre o inglês).

L de Língua

Quando os computadores já fazem cálculos que seriam impossíveis na cabeça de um pobre ser humano, ainda não conseguem traduzir como um ser humano (embora a tradução automática demonstre resultados surpreendentes nos últimos anos, principalmente em certo tipo de textos e entre certas línguas). Esta dificuldade de décadas em criar sistemas de tradução automáticas quando os computadores fazem cálculos impensáveis noutras áreas mostra que a tradução não é uma actividade mecânica. Implica o movimento entre duas línguas – ora, as línguas são muito humanas, complexíssimas, orgânicas, cheias de deliciosas imperfeições, sempre a escapar à sistematização que permita ensiná-las a uma máquina. É por isso que são tão interessantes – e é por isso que os tradutores humanos deverão continuar a ser necessários, pelo menos até ao dia em que um computador imite tão bem um ser humano que comece a cansar-se de traduzir ao fim de um dia de trabalho.

M de Mudanças

A tradução muda a língua do texto, e isto implica muito mais mudanças do que pensamos. Há palavras que desaparecem, frases que se multiplicam, divisões de parágrafos que são arranjadas doutra maneira, notas que é necessário incluir, entre outras intervenções que nem sempre se notam – ou que são vistas como erros, quando na verdade fazem parte das instruções do tradutor ou das práticas comuns da actividade. Por exemplo, é comum retirar alguns palavrões das legendas, o que escandaliza algumas mentes menos puritanas, que gostam da força do palavrão nas suas televisões. Muitos tradutores fazem essa mudança ao texto porque o cliente assim lhes pede – ou, na verdade, porque não há espaço na legenda para incluir todos os «fuck» do original, que isto de legendar também implica muito corte e selecção, para que as legendas fiquem o tempo suficiente para que todos as leiam (e, enfim, lá haverá uns quantos tradutores mais puritanos do que a conta). As legendas também são um bom exemplo de alterações mais profundas do que habitualmente admitido por quem pensa sobre tradução de fora: estamos a falar da passagem da linguagem oral para a linguagem escrita. Não é caso único. Há outras mudanças habitualmente realizadas pelos tradutores: textos formais que passam a informais; traduções que implicam a transliteração de nomes próprios de um alfabeto para outro; traduções que exigem adaptações aos números (chegamos lá na letra seguinte); traduções que implicam uma série de adaptações culturais para que funcionem no mercado de destino… Enfim, traduzir é manter alguma coisa (e ninguém se entende muito bem sobre que coisa é essa), mas também é mudar muitas outras coisas, muito para lá da língua (e a língua já é tanto, tanto).

N de Números

Os números, ao contrário das palavras, parecem universais, concretos e definidos como as leis da física. E, no entanto, ao traduzir, temos de traduzir também os números – pelo menos, entre algumas línguas. Por exemplo, «one billion» num texto que venha dos EUA é, em português, «mil milhões». Já o «trillion» será o nosso «bilião». E o que dizer das vírgulas e dos pontos? Em inglês, uma vírgula separa os milhares e o ponto separa as casas decimais («10,000.00»); em português, a vírgula separa as unidades das casas decimais e o espaço separa os milhares («10 000,00»), excepto quando o cliente ou o tipo de texto exige pontos («10.000,00»). Ah, mas o espaço dos milhares não é bem um espaço: é um espaço não separável, ou seja, um espaço que não pode ficar no final da linha. Mais complicações? Em português, separamos os milhares apenas em números com cinco ou mais algarismos. Assim, escrevemos «1000», mas «10 000». Pormenores? Sim, mas pormenores importantes, por mais contraditório que tal possa parecer. Pormenores, aliás, que tiram o sono a um tradutor – então se o texto de partida for uma salgalhada de pontos e vírgulas nos sítios errados, como sói acontecer, o sono do tradutor esfuma-se em suores nocturnos. Mas há pior: se nos calhar em sorte o suaíli como língua de partida ou de chegada, até os relógios têm de ser traduzidos, pois nessa língua, o 6 está em cima e o 12 está em baixo (a meia-noite e o meio-dia, em suaíli, acontecem quando os dois ponteiros do relógio se unem no 6).

O de Original

Quando conversamos sobre tradução no âmbito académico, é habitual referirmo-nos a «texto de partida» (afinal, o texto que estamos a traduzir pode não ser o original ou ser apenas uma das versões possíveis). Mas, no dia-a-dia, um tradutor fala do original sem grande pejo. Mais: fala do original e dos seus problemas. Isto porque, se fora da tradução estamos habituados a falar de problemas de tradução e de todos os erros que por aí se vêem, o tradutor tem de lidar, antes de mais, com os erros do original. As vírgulas e pontos trocados de que falava acima são o menor dos problemas. Temos ficheiros que não abrem; imagens com pouquíssima definição; textos cheios de frases ambíguas; parágrafos incompreensíveis; erros ortográficos em nomes que não sabemos se devemos ou não corrigir; entre muitas outras demonstrações da imperfeição humana. O tradutor lá trabalha contra o vento destas dificuldades, resolvendo problemas, perguntando (discretamente) ao cliente o que aquilo quer dizer, trabalhando para produzir um texto tão bom ou, muitas vezes, melhor do que o original.

P de Problemas

O cliente tem problemas: um concurso público em Espanha em que os documentos devem estar traduzidos em espanhol; um catálogo que gostaria de usar em Itália; um pequeno vídeo para usar numa conferência em França; um livro que gostaria de publicar em inglês; uma aplicação para telemóvel que gostaria de vender na Alemanha… Os tradutores – e todas as profissões da tradução – resolvem estes problemas. Pelo caminho, resolvem muitos outros: um ficheiro que não abre; uma frase difícil de interpretar; um trocadilho que tem de ser recriado; um colega maldisposto; um termo que não se encontra em lado nenhum… É preciso muita criatividade prática para resolver problemas destes, enquanto se dá a volta à frase.

Q de Qualidade

Uma palavra cheia, importante, difícil de definir como poucas. (Tem ainda a simpática característica de começar por Q, o que me ajuda muito neste exercício.) Nas empresas de tradução, a palavra está associada a determinadas normas internacionais que determinam critérios de selecção de profissionais e ainda procedimentos mínimos a seguir em cada projecto de tradução. De forma muito resumida, os tradutores e revisores devem ter formação em tradução ou experiência comprovada de vários anos e os procedimentos devem incluir a revisão da tradução por um segundo profissional, para além da possibilidade de saber quem fez o quê e ainda toda a estrutura necessária para garantir a segurança dos textos dos clientes. A norma de qualidade mais conhecida na área da tradução tem o poético nome de ISO 17100. Uma empresa que se certifique de acordo com esta norma tem de se sujeitar a auditorias regulares para verificar o seu cumprimento. Para lá da norma, o termo «qualidade» aparece-nos quando falamos de ferramentas de garantia de qualidade (que ajudam a fazer algumas verificações automáticas), quando trabalhamos em análises de controlo de qualidade (em que analisamos profundamente excertos de traduções feitas por outras pessoas para criar uma avaliação de qualidade o mais objectiva possível e detectar problemas), quando pensamos na qualidade que queremos oferecer ao cliente… Aqui, o alvo começa a mexer-se. A qualidade tem que ver com as características linguísticas e terminológicas do texto, mas também com o propósito daquele texto em particular, com a satisfação do cliente, que tem expectativas nem sempre fáceis de prever, e com o uso real que o texto terá. O certo é que os tradutores profissionais gostam de melhorar, de encontrar boas formas de trabalhar, de deixar os seus clientes satisfeitos. Nessa vontade de fazer melhor todos os dias residirá a fonte dessa mítica qualidade que todos procuramos.

R de Revisão

Há tantas revisões: a que o tradutor faz ao seu próprio texto; a revisão que o gestor de projectos pede a outro tradutor para fazer; a revisão que o cliente faz à tradução que recebe. Todas estas revisões estão armadilhadas. O tradutor nem sempre tem tempo e raramente consegue ver o texto de fora. O revisor contratado pelo gestor de projectos cai, por vezes, na tentação de mudar a tradução para que esta fique igual à tradução que faria, acabando por fazer uma nova tradução, às vezes com outros erros – ou então cai na tentação de olhar com pouca atenção, deixando passar erros reais. O cliente olha para o texto e imagina o que gostaria de ter escrito, esquecendo o original na análise da tradução. Enfim, a revisão está armadilhada, mas não lhe podemos escapar – e de todas, digo eu, a mais importante é mesmo a primeira, a do tradutor, que faz o esforço de ler o que escreveu como se fosse a primeira vez.

S de Saúde

Oito horas a bater em teclas, à frente do computador. Oito horas com o órgão mais exigente do corpo humano a despender energia sem parar. É claro que a tradução é uma actividade com consequências para a saúde humana. Lá vamos fazendo de tudo para corrigir os problemas: paragens frequentes, bons ecrãs, cadeiras confortáveis, apoios para os pés, sistemas de reconhecimento de voz para dar descanso às mãos…

T de Tempo

A qualidade é aquilo que todos dizem amar, mas é o tempo que ocupa a imaginação febril de todos. O cliente precisa das traduções «para ontem» (uma das expressões mais odiadas pelos tradutores). O tradutor precisa de acalmar o cliente, fazer-lhe ver que a tradução leva tempo, se queremos fazer um trabalho bem-feito. O gestor de projectos lá consegue pôr a batuta a dirigir uma equipa grande. Porquê? Para conseguir encontrar tempo para cumprir aquilo de que o cliente precisa. Afinal, estamos cá para resolver problemas. Depois, ao longo dos projectos, o tempo vai-se escapando devagar e é preciso ir resolvendo os problemas que aparecem, pequenos orifícios no dique que protege as horas que faltam e o prazo sagrado.

U de Universidade

Um tradutor profissional vê passar pelos olhos centenas de páginas por ano. Uma empresa de tradução típica traduz milhões atrás de milhões de palavras por ano. As editoras publicam muitos livros traduzidos, que chegam às livrarias em manadas todas as semanas. Todos os minutos, dezenas de canais debitam séries e filmes traduzidos. Há congressos com interpretação todos os dias, em todas as grandes cidades do mundo. Há empresas dedicadas a criar ferramentas só para tradutores e gestores de projectos. Esta actividade incessante e difícil é objecto de estudo nas universidades e nos centros de investigação, por parte dos professores e investigadores dos Estudos de Tradução, uma disciplina que, na sequência de todas as reflexões práticas e teóricas sobre tradução ao longo de milénios, se tornou autónoma nas últimas décadas, mantendo ligações fortes com outras disciplinas. Os especialistas académicos nesta área fazem perguntas como: Qual é a história das traduções d’Os Lusíadas no mundo? Porque se traduz tanto desta língua para outra e não na direcção contrária? Uma tradução literária deve parecer um texto original, domesticando a obra, ou deve assumir que é uma tradução, permitindo-se construções estranhas? Quais são as técnicas realmente usadas pelos tradutores jurídicos? Que tipo de conflitos surgem com mais frequência entre tradutores e gestores de projectos? Quais as técnicas habituais na tradução de teatro francês do século xviii? Que tipo de análises mentais faz um tradutor ao ler um texto que vai traduzir? Que erros surgem com mais frequência na tradução de medicina? As perguntas não acabam… Os métodos são variadíssimos: desde a comparação de traduções diferentes, passando por investigações históricas ou análises textuais quantitativas, avançando para o registo dos movimentos oculares dos tradutores, para a análise das descrições feitas pelos tradutores dos seus processos cognitivos, para a quantificação do efeito desta ou daquela ferramenta na qualidade da tradução… – os estudos vão surgindo em revistas de tudo o mundo, as perspectivas são múltiplas, os resultados são tantos que é impossível a uma só pessoa acompanhar tudo o que se descobre por esse mundo fora. É verdade: há muito estudo desinteressante para cada estudo que nos deixa de boca aberta. Não é de agora – e é assim em todas as áreas. Por outro lado, nas mesmas universidades onde os Estudos de Tradução olham, com curiosidade intelectual, para o fenómeno da tradução, dezenas de alunos por ano aprendem ferramentas e técnicas para usarem enquanto futuros tradutores profissionais, com todos os medos, hesitações e entusiasmos típicos da idade. É certo e sabido: quando saem da universidade, descobrem que ainda mal começaram a aprender. Também não é de agora – e é assim em todas as áreas…

V de Volúpia

Uma palavra a que poucos associam a tradução – e, no entanto, é volúpia o que sentimos no princípio, quando recebemos os primeiros trabalhos, quando o nosso entusiasmo pelas línguas, pela escrita, pelas palavras se transforma em trabalho real, pago, quando aquilo que sabemos se torna útil para outras pessoas. Nesses momentos, trabalhamos com entusiasmo e tudo é um gosto, desde a criação de orçamentos à escolha da melhor ferramenta. O tempo passa, o cansaço aparece, mas de vez em quando ainda sentimos a volúpia de bem traduzir, de virar as línguas do avesso e olhar para os fios com que se cosem, puxando ali e carregando acolá para criar um novo tecido, com outro material, noutra língua, para outras paragens.

W de Walter Benjamin

O escritor alemão, no ensaio A Tarefa do Tradutor, um texto que os estudantes de tradução conhecem bem, dá o exemplo do Brot alemão e do pain francês: serão mesmo tradução um do outro? Cada um implica uma visão diferente do pão. Um pão não é exactamente o mesmo para um alemão e para um francês… As duas perspectivas diferentes são incompletas. São as línguas no seu conjunto, unidas pela tradução, que nos dão uma visão mais completa do mundo. Estou, claro, a interpretar a tradução que li do texto original, escrito numa língua que não conheço, sobre o próprio fenómeno da tradução. Mas voltemos ao exemplo do pão em duas línguas. Será o mesmo? Gosto de dar outros dois exemplos: a palavra «café» é facilmente traduzível, para inglês, como «coffee». No entanto, um português, ao ouvir «café», pensa logo numa bica; um inglês pensará num copo grande de café francamente aguado; um espanhol não sei bem em que pensa. Ora, dentro de cada língua também acontece isto: eu, quando oiço «praia», imagino o caminho para a escola da minha infância em Peniche; a Zélia, minha mulher, pensa nas férias da infância; pensamos também os dois nas férias de hoje em dia, em que levamos o Simão e o Matias às águas mais quentes do Sul. A tradução é sempre uma escolha, é sempre incompleta, mas isso acontece porque a própria leitura e a própria interpretação do que os outros dizem, em qualquer língua, são sempre incompletas e por vezes uma escolha. E, no entanto, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos, traduzimos sem parar.

X

Chegados ao X, falo do cruzamento: de línguas e culturas, claro. Mas também de hábitos e de distâncias. A trabalhar para empresas e a ensinar numa universidade, sei bem que as culturas diferentes não existem apenas entre países diferentes. No mesmo país, na mesma cidade, na mesma casa – e na mesma cabeça – cruzam-se culturas diferentes, com diferentes linguagens, diferentes preconceitos, diferentes certezas. E, se tudo vai correndo bem, há dias em que as barreiras e os equívocos são mais difíceis de corrigir do que as barreiras e os equívocos entre gente que fala línguas diferentes, mas quer saber o que o outro diz. Também aqui se pede uma alma de tradutor: alguém que lê e tenta perceber, generosamente, o que o outro disse. E também aqui as dificuldades e armadilhas são mais que muitas…

Y

Desconfio muito de todos os que afirmam que a tradução é impossível. Se é impossível, os tradutores são todos feiticeiros. Mas há textos mais difíceis do que outros. Há textos que raiam a intraduzibilidade. Muitos deles são aqueles que chamam a atenção para alguma estrutura da própria língua. Por exemplo, este texto que está a ler neste momento. Está dividido em pequenas secções com base em palavras, dispostas em ordem alfabética. Seria difícil traduzi-lo sem alterar a ordem ou mudar a estrutura ou revelar que estamos perante palavras portuguesas. Há uns anos, num projecto de tradução na empresa que criei, apareceu-nos outro desafio do tipo: tínhamos de traduzir um jogo infantil que incluía as letras do alfabeto, com uma imagem de um objecto que começasse por essa letra. Tivemos de adaptar o jogo, alterar as imagens, adaptar toda a estrutura daquele texto. O grande problema foi o Y: o que usar como objecto que demonstrasse esta letra que é nossa sem o ser verdadeiramente? Alguma coisa tinha de ceder, alguma coisa tinha de se perder… É apenas um exemplo de todos os problemas que os tradutores resolvem quase todos os dias.

Z

Chego ao fim do alfabeto. Deixei as últimas três letras assim, despidas, sem palavras. Concluímos o ABC e o XYZ do tradutor. A verdade, confesso, é que não me lembro, neste momento, de nenhuma palavra para deixar aqui no Z. Podia apostar no Zorro, mas em que sentido? O tradutor de espada e capote? É uma actividade animada – mais do que pensamos (o tradutor raramente traduz a mesma frase duas vezes) – mas não implica máscaras, para lá da máscara que é o ecrã por onde comunicamos. Enfim, opto por voltar ao A, para falar de aproximação. Quem olha para a tradução, vê nela uma barreira. O original parece ficar mais longe com este outro texto entre o texto de partida e o leitor. E, no entanto, se virmos bem, a tradução só nos afasta do original quando conhecemos bem a outra língua – e quando conseguimos ler o original com a mesma atenção do tradutor. Sem tradução, ficaríamos irremediavelmente mais longe das obras em todas as línguas que não conhecemos. Quem não sabe russo, ficaria longe dos grandes romancistas oitocentistas desse país. Quem sabe francês pela rama não conseguiria ler Flaubert. Quem não sabe japonês, ficaria para sempre longe da literatura desse país. Falo da literatura, mas o mesmo é válido para todo o tipo de texto. A tradução é mesmo a arte da aproximação entre culturas para lá das óbvias e deliciosas diferenças – e, mais prosaicamente, entre profissionais de diferentes países, entre empresas e clientes, entre pessoas.

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