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O ambiente literário português visto por Saramago, em 1966.
Mudou alguma coisa?
«Deixe lá os nossos intelectuais: tirante morder, o mais que fazem, o futuro julgará, e esta porca sociedade do elogio mútuo ou este permanente ajuste de contas de gangs rivais, não merecem mais do que desprezo. Neste triste país, o sage é o homem calado que não quer conhecer ninguém nem quer que o conheçam. Há dias fui ao jantar da entrega do prémio à Isabel da Nóbrega: é de morrer. Tanta impostura, tanta falsidade, tanto esforço para parecer mais inteligente do que o vizinho, e sobretudo mais célebre. E tudo isto sob a capa da modéstia jesuítica, uma capa cheia de buracos de orgulho e inveja. E esta gente é a nata, e esta gente conduz, orienta, dá entrevistas, pontifica, tem opiniões acerca de tudo e de coisa nenhuma. E todos, seja qual for a cor da epiderme, têm um lema- «Hors de l’église (notre église) pas de salut!» E com medo de não nos salvarmos, lá vamos para a sombra do campanário que mais sólido parece, mas sempre com o olho no campanário do vizinho não vá acontecer que a salvação não esteja afinal onde a supúnhamos. Há excepções, claro, há gente digna, sem dúvida, mas a balbúrdia não deixa que as suas vozes se oiçam, e quando através da confusão, do burburinho, se ouve uma voz honesta, responsável, logo a irmandade se faz, logo os campanários afinam os rebates – e enquanto o intruso não se cala, justos céus, é ver quem mais bate.»
Carta de 20 de Março de 1966 para José Rodrigues Miguéis