Views: 4
A grande mentira
Para se entender a totalidade do diferendo entre mim e Joel Neto, é necessário estabelecer algumas coordenadas. Para que fique claro que a desavença não foi entre um chefe de gabinete da SREAC censor e ameaçador e um escritor alvo de tentativas de o calar ou de ameaças com a prática de crimes.
Joel Neto foi meu aluno na então Escola Secundária de Angra do Heroísmo. Depois partiu para o continente e nunca mais o vi ou dele ouvi falar.
Quando regressou à ilha Terceira, em 2012, aproximou-se de mim. Para ele, eu era “o amigo e mestre, que, aliás, foi um dos meus primeiros escritores com o seu encantador – ainda entesourado lá em casa – Contos desta e doutras vidas”.
Ligava-me amiúde, sobretudo para tirar dúvidas de terminologia jurídica, para não cometer erros nos seus escritos. Nunca lhe neguei qualquer ajuda.
Quando lançou o Arquipélago, telefonou-me a perguntar-me se não saberia de um grupo musical que abrilhantasse o lançamento, pois o conjunto que contactara pedia-lhe 300 euros, e não tinha esse dinheiro. Telefonei ao Luís Bettencourt, ele disse logo que se me juntava e levava a Maria. Mas não fomos apenas tocar e cantar. O lançamento ocorreu no Salão Nobre da Câmara Municipal de Angra, em plenas Sanjoaninas. Não havia lugar para estacionar a carrinha que transportava a aparelhagem de som, só arranjámos no cimo da Rua do Galo, carregámos mesa, colunas, tripés, cabos e micros às costas para baixo, cantámos e tocámos, levámos aquele peso todo para cima, enquanto o Joel dava autógrafos. De graça.
No lançamento de “A Vida no Campo”, a mesma dança, agora no jardim do QB, numa noite fria. E só entenderá o que é tocar com os dedos gelados quem é músico e já passou por tal tormenta. Outra vez de graça.
Passados poucos anos, perante a ansiedade que a falta de inspiração provoca em quem vive da escrita, novamente lhe vali, dando-lhe a ideia para o Meridiano 28. Mas não me limitei a deixá-lo quase em êxtase, iluminando o túnel todo a quem não conseguia encontrar um único ponto de luz. Ofereci-lhe livros sobre o tempo dos cabos submarinos na Horta, dei-lhe pistas para narrativas, pedi a meu irmão que fosse motorista e cicerone do escritor, quando ele foi para o Faial “cheirar” os espaços sobre os quais iria escrever.
Frequentou a minha casa em aniversários e outras celebrações, as vezes suficientes para eu estranhar agora não se ter queixado pela possibilidade de ser atacado com armas brancas, para além de espingardas e mísseis estatais. Sim, porque facas Joel sabe bem que eu tenho em casa. Foi com elas que cortou a carninha antes de a meter na boca…
Fui desculpando a vaidade crescente. As figuras que fez em sucessivos Outonos Vivos, chegando ao ponto de se armar em Miguel Sousa Tavares para entrevistar… Miguel Sousa Tavares. As suas novas anormalidades na RTP-A. Os trejeitos de borboleta na rádio. Uma cultura de Google, denunciada pela leitura de notas.
Em fevereiro deste ano, o primeiro choque. “Jénifer, ou a princesa da França, as ilhas (realmente) desconhecidas” apresenta um encontro entre Joel, “um homem em busca de uma história” e uma criança “em busca de uma saída”. O livro pinta os Açores como “a região mais pobre de Portugal, terreno fértil para o abuso sexual e o incesto, o alcoolismo e a violência doméstica, a exclusão social, o tráfico de droga, o insucesso escolar, a pobreza persistente ou o suicídio jovem, entre tantos outros sinais de subdesenvolvimento humano”.
Logo na altura entendi que Joel Neto se ia aproveitar da pobreza açoriana para se promover e ao seu livro. Mas nunca me passou pela cabeça que fosse tão longe, ajudando a concentrar as atenções na ilha que o viu nascer, da forma tendenciosa como o fez. Aos que levaram “murros no estômago” com a história de Jénifer, pano de fundo para o “Paraíso esquecido”, algumas perguntas:
Descobriu Joel Neto algo de novo, completamente desconhecido? Para os que vivem nestas ilhas, basta olhar, ler ou estar atento. Para os outros, os dados são públicos, constando das estatísticas do INE, da PorData, do Eurostat, da OCDE ou do PNUD.
Depois, não é estranho que ande sempre a gritar coisas que já existiam quando era criança, adolescente e jovem, nunca lhe tendo chamado a atenção? Em silêncio ficou durante os vinte anos em que viveu em Lisboa. E, tendo regressado à Terceira já adulto, em 2012, portanto há onze anos, não se lhe conhece qualquer escrito ou sequer gesto para ajudar no combate à pobreza. Imaginemos que tinha criado uma fundação, à mesma doando os direitos autorais do seu livro e tentando reunir outros meios para ajudar nem que fosse uma família que passasse dificuldades. Teria o meu total apoio e admiração. Mas não, o que lhe interessa apenas é promover o livro e a sua imagem. Repetindo até à exaustão os seus indicadores, sem apresentar qualquer hipótese de solução. E não se conhece uma única ressurreição à força dos gritos das carpideiras…
Não vos faz qualquer impressão que se tenha virado raivosamente contra um homem que o ajudou e ao qual jurou amizade e admiração “infinitas”? Aproveitando-se de mensagens privadas que lhe mandei para inventar uma enorme mentira? Omitindo as mensagens por ele enviadas, nas quais me insultou, provocou e mostrou uma ingratidão indesculpável? Embora hoje veja, claramente: da parte de um indivíduo que não tem escrúpulos em cantar alegremente o pior que temos nos Açores, depois dirigindo a sua sanha contra a Terceira, de onde é natural, como poderia esperar escrúpulos para me poupar, em honra ao bem que lhe fiz?
Em 2012, Joel Neto escreveu: “O Bulcão convida-me para ir à pesca, de barco, e a minha primeira preocupação é perguntar-lhe: E o que é que eu levo? Como é que eu contribuo? O que é que me deixam pagar? Ele olha-me com condescendência, sorri. “Pois claro, és da geração da retribuição…”. Sim, sou. Mas, sobretudo, estou demasiado estragado por Lisboa. E uma das mais urgentes aprendizagens é essa: a da generosidade gratuita. De saber dar sem receber em troca, de saber receber sem sentir-me obrigado a restituir. De saber dizer obrigado com os olhos. De saber agradecer simplesmente não esquecendo. De voltar a ser um homem inteiro”.
O “homem inteiro” que anda por aí é o que não hesitou em transformar o “amigo e mestre” num chefe de gabinete “cyberbullie”, que lhe enviara unilateralmente mensagens de ódio e o ameaçara com a prática de crimes. Nem quero imaginá-lo “homem partido estragado por Lisboa”.
Post Scriptum: Os escritos de Joel Neto a que faço referência são públicos. Não foram enviados por mensagens privadas, caso em que nunca as usaria.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
6 shares
Like
Comment
Share