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No próximo dia 31 de Julho, encontrarão nas livrarias do Brasil a nova edição dos Evangelhos Apócrifos. O que são estes textos?
Em primeiro lugar: não confundamos os evangelhos apócrifos cristãos com os textos judaicos do Antigo Testamento chamados «apócrifos» na tradição protestante (os tais que existem na Bíblia católica, mas não na protestante).
Permitam-me também esclarecer que «apócrifo» não significa «falso» nem «herético». Até porque alguns dos evangelhos contidos nesta nova edição (Evangelho de Tiago, Evangelho de Pseudo-Mateus, Evangelho de Nicodemos e outros) não se desviam da doutrina ortodoxa.
«Apócrifo» significa «escondido». São textos que, por várias razões, tiveram uma existência escondida. Uns porque, apesar de ortodoxos, foram escritos em época demasiado tardia para poderem entrar no Novo Testamento (é o caso dos evangelhos de Tiago e de Nicodemos – mas também da Narrativa de José de Arimateia, ou da História de José, o Carpinteiro). Outros porque – apesar de antigos e provavelmente da mesma época dos evangelhos canónicos de Mateus, Marcos, Lucas e João – continham aspectos heterodoxos, susceptíveis de ofender a ortodoxia. É o caso dos evangelhos belíssimos de Tomé e de Maria Madalena. Na escala máxima do surpreendente está o fragmento das Grandes Questões de Maria Madalena: trata-se de um parágrafo, apenas; mas é, sem sombra de dúvida, o texto mais chocante alguma vez escrito sobre Jesus Cristo.
Há uma questão que não podemos perder de vista: antes da despenalização do cristianismo no século IV, havia grupos cristãos de pensamento muito diverso. Todos tinham, no entanto, este denominador comum: a dedicação total a Jesus. O modo como eles entendiam a figura de Cristo – na sua qualidade de pessoa humana e divina, na sua qualidade de Filho de Deus – podia variar; mas a mensagem de Amor que Jesus veio trazer era aquilo que ligava o pensamento de todos estes grupos.
No entanto, assim que o cristianismo foi despenalizado e o grupo cristão mais próximo do imperador em Roma recebeu a protecção política para perseguir os outros grupos, assistiu-se ao espectáculo tristíssimo de cristãos (até aí perseguidos por pagãos) a perseguir outros cristãos.
Houve textos (muitos!) que não ficaram a salvo deste programa de censura. Numa carta escrita por altura da Páscoa de 367 e enviada aos cristãos do Egipto, o bispo de Alexandria (chamava-se Atanásio) listou os 27 livros cristãos cuja leitura era permitida: essa lista era constituída pelos 27 livros que compõem o Novo Testamento (de resto, a carta de Atanásio é a primeira explicitação do cânone do Novo Testamento). E Atanásio deixa claro que os cristãos estavam proibidos de ler evangelhos «escondidos»: isto é, apócrifos. Atanásio não refere esses evangelhos individualmente; mas podemos partir do princípio de que seriam aqueles cuja autoria era atribuída a figuras como Tomé, Pedro, Filipe e Maria Madalena.
Estes textos ficaram desaparecidos durante séculos. Os de Pedro e de Maria Madalena só foram redescobertos no século XIX (mas o de Maria Madalena só foi publicado pela primeira vez em 1955). Os evangelhos de Tomé e de Filipe permaneceram desaparecidos até 1945; foram publicados pela primeira vez em 1959.
A reacção a estes textos por parte dos ortodoxos católicos do século XX foi de os desvalorizar, com o argumento de que são «tardios» e de que, seja como for, são «heréticos».
A questão é que não sabemos se alguns (pelo menos) dos apócrifos são tão tardios assim.
Há estudiosos da história do cristianismo para quem os evangelhos de Pedro e de Tomé são contemporâneos dos evangelhos canónicos (Mateus, Marcos, Lucas, João). Por outro lado, ninguém consegue determinar ao certo a data dos evangelhos canónicos: serão do século I? Do século II? É impossível termos a certeza.
Quanto ao Evangelho de Maria Madalena, há um consenso entre os estudiosos de que foi escrito no século II. A atribuição a uma mulher é curiosa, mas não sabemos se a podemos tomar à letra. Provavelmente, o texto foi atribuído a Maria Madalena com motivos semelhantes aos que justificaram a atribuição a Paulo de epístolas como Efésios e Colossenses (textos cuja autoria paulina é posta em dúvida já desde o século XIX).
O que importa, de facto, nos fragmentos que nos chegaram do Evangelho de Maria Madalena é perceber a importância dada a uma mulher, pessoa a quem Jesus confia a sua doutrina. Percebemos também o incómodo que isso causa, no texto, aos discípulos homens. Incómodo que volta sempre à tona ainda hoje, entre católicos, quando se aborda o tema da ordenação de mulheres.
O primeiro nome da religião fundada em nome de Jesus não foi cristianismo, mas sim «Caminho».
Isso vê-se nos Actos dos Apóstolos, livro do Novo Testamento que também nos mostra como (logo na primeira geração de cristãos) houve divergências no modo de entender esse Caminho. Vê-se o mesmo na epistolografia de Paulo, onde percebemos quão ao rubro estava a polémica entre os diferentes cristianismos. O cristianismo nasceu e cresceu na diversidade e no debate de ideias. Porém: graças ao imperador Constantino no século IV, um grupo específico de cristãos pôde arrogar-se o lugar da certeza. E obteve do imperador os meios políticos para suprimir a heterodoxia.
Que alguns textos destes cristianismos alternativos tenham chegado até nós – após quase 1500 anos de ocultação – constitui, à sua maneira, uma espécie de milagre.
Pois estes textos ainda têm coisas importantíssimas para nos dizer. Levantam questões que ainda hoje preocupam os cristãos. Qual é o lugar da mulher na igreja? O sexo heterossexual sem finalidade procriativa é permissível aos cristãos? É possível conciliar cristianismo com homossexualidade?
Interessarmo-nos por estes textos não significa que os estejamos a colocar acima dos insubstituíveis (e inultrapassáveis) evangelhos canónicos. Tomé, Filipe, Maria Madalena e Pedro não substituem Mateus, Marcos, Lucas e João. São – isso sim – um complemento valioso. São um eco da diversidade original do cristianismo primitivo. E, por isso, são textos cuja leitura vos proponho como urgente.
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