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O seguinte excerto da trilogia Raiz Comovida de Cristóvão de Aguiar é, para além de ser uma passagem preciosa e genial da nossa literatura, uma sátira sempre pertinente na atualidade, que sai da boca de José Pascoal, personagem inspirada no meu avô José Cabral, em conversa com o narrador, que fazemos coincidir com o autor Luís Cristóvão, ainda jovem.
Esta obra, por razões afetivas e por ser magistral na conceção, na linguagem e nas histórias que tanto dizem de nós, é, para mim, e será sempre uma referência inestimável.
Se não conhecem, fica aqui um estímulo à leitura.
“Estás com certeza alembrado do mestre José Emílio, um home de saber e que não virava a cara a nada. Isto que se passou e te vou contar não é do teu tempo, mas ficas a saber que foi ele juntamente com algumas pessoas de ventas pra diante – teu avô Evaristo também andava metido nisto – que puseram a água e a luz eléctrica na nossa freguesia. Nem sequer podes imaginar, por mais voltas que dês ao miolo, o que aquele home sofreu na cara (…)
Segue-se intance que o povo mais miúdo tomou a peito o encanamento da água. Cada qual dava um ou mais dias de faxina, consoante as posses; os que tinham carroças davam o dia acartando os canos de barro da fábrica do senhor Carreiro da Vila da Lagoa; os outros davam o dia abrindo valas a poder de pá e pique. Em menos de um palito, ficaram as obras acabadas. Os comilães da Câmara da Ribeira Grande, que nem um chaveco velho deram para a ajuda do encanamento, pintando o sete durante os trabalhos – chegaram a pontos de embargarem as obras, porque queriam licenças e outras papeladas – mal, viram o serviço pronto, ficaram de beiça caída. Longe estavam eles de imaginar que o povo da nossa freguesia levasse inté à fim uma obra daquele tamanho. Vai daí, queriam ter eles o proveito, e toca de marcar a data de inauguração, com festa , roqueiras, arraial pelas duas bandas da freguesia e ainda pelas duas da Ribrira Grande, a dos Cães e a dos Gatos, mais os discursos de suas excelências. Convidaram o sr. Barão das Águas Claras e outra gente grada da Vila e da nossa cidade. (…)
Num domingo de Julho, uma calorama de derreter os untos, veio intance toda aquela tropa fandanga para a nossa freguesia. Nessa altura estava o nosso povo desunido, pois o padre António tanto pregou das grades do púlpito, tanto medo meteu, que os mais fracos das canetas e de espírito se puseram da sua banda. Mas o mestre José Emílio e outros da mesma rijeza fizeram-lhe um grande manguito , não arredaram pé das suas ideias e, como presidente da Junta de Freguesia, o mestre José Emílio não compareceu no palanquim das honrarias, preferiu ficar entre o ajuntamento, no Canto da Fonte, acompanhado de mais dois ou três de ventas, observando tudo com ar de escárnio mas sem perder a compostura. O primeiro a botar discurso foi o doutor Calisto, presidente da Câmara, que só disse mentirada pela boca fora, que o Estado Novo assim, que o Estado novo assado, que aquela obra que se estava inaugurando era bem o exemplo da vontade das novas autoridades de darem não sei o quê, já não sei encarreirar o resto da cantilena – uma treta pegada. Na fim da lenga lenga, viva o Estado Novo, viva a Câmara da Ribeira Grande, viva o Barão das das Águas Claras, viva este, viva aquele, e no povo da freguesia nem tocou, o grandessíssimo fideputa. Depois de tanto vivório, o nosso padre vigário, também assentado num cadeiral em riba do palanquim, fez um ameço com a mão para o povo se aquietar. Estava o senhor Barão das Águas Claras preparando-se pra falar, mas andava em cata dos óculos, apalpava as algibeiras e nada. Nesse entrementes, o mestre José Emílio, cego de génio de escutar tanta baboseira junta, aproveitou a acalmia e berrou de rijo: Viva esta canalhada toda!
O povo, que o que queria era vivório , respondeu sem malinar de nada, com um grande vivaaaaa. Os figurães do palanquim ficaram néscios e sem pinga de sangue, amarelinhos de cidra. O sr. Barãozinho, mouco que nem portão de quinta, perguntou ao ouvido do padre António o que houvera assucedido, mas o sacerdote , fino como um cadelo, lá disfarçou como pôde pra não dar moleste a sua excelência.”
Cristóvão de Aguiar, Raiz Comovida, Ed. Caminho, cap. XVII, págs. 88, 89.
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Mário Roberto
Já li a trilogia, e é fantástica
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