universidade, queixas e fim da autonomia

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Este fim de semana estive com uma série de colegas professores universitários, de outras instituições, e o que temia está a generalizar-se: a expropriação da autonomia do professor universitário, como antes do secundário. Os alunos a fazer queixa de professores, incluindo do conteúdo leccionado, e os directores a chamar professores a justificar-se; os casos que ouvi são de deixar qualquer um de olhos esbugalhados.
Um colega meu foi “acusado” pelo aluno de ensinar um antropólogo altamente complexo, o aluno escreveu ao director um resumo ridículo, dizendo que não sabia porque aquilo era ensinado, o director em vez de o mandar tomar um banho gelado aceitou e deu procedência ao email pedindo ao professor para se justificar!; noutro caso um colega meu usou a palavra “miúdas” na turma como só tinha mulheres, seguiu para queixa; e noutro a mãe fez queixa do professor demasiado exigente com o filho com mais de 20 anos, ao que esse meu colega respondeu que iria chamar a mãe, com mais de 70 anos, para responder! Morremos a rir.
Entre conversas concluímos que a uma parte dos alunos e pais, minoritários felizmente, mas o suficiente para criarem problemas, se consideram não alunos mas “clientes” que querem receber um certificado o mais rápido e com a melhor nota possível. Essa é a noção que têm alguns de Universidade.
Recordei-me com orgulho da primeira vez no ISCTE ainda como aluna, há mais de 20 anos que me entregaram um papel anónimo para preencher e “avaliar” os meus professores e eu, em voz alta, perante toda a turma, disse que não avaliava professores, muito menos de forma anónima. As divergências que tinha, os desacordos eram discutidos de forma aberta, em aula. Tive professores excelentes, bons, maus, péssimos, gostei de umas cadeiras e de outras não, o mesmo deles em relação a mim como aluna. O que não tive nem contribui nunca foi para um sistema pidesco de mercantilização do conhecimento. Sou de uma geração em que organizávamos greves contra os exames, em favor, por exemplo, de trabalhos de pesquisa, mas na minha casa queixa, desde que me lembro de ser gente é sinónimo de bufo e cobarde, nunca passou pela cabeça dos meus pais permitir que me queixasse de um professor ou que eles o fizessem por mim! Que vergonha. Directores a prestar favores já sabemos, não faltam no mundo. E se não regressa a democracia às universidades o caminho vai ser dramático. Sairão de lá alunos daqui a uns anos depois de ver 500 vídeos, não ler um livro, prontos para irem para o mercado de trabalho apertar botões e obedecer.
O assédio contra os professores universitários, em tempos de transformação digital e ensino-máquina, está aí. Estão a retirar-nos a liberdade de ensino para “adaptar a Universidade ao mercado de trabalho”.
Não, o mais grave na Universidade não é o poder dos catedráticos, é a destruição em curso da autonomia de ensino, ao ponto de termos alunos e gente nas televisões a debater programas de docência de centros de investigação dos quais não sabem nada, uma tropa de choque a lutar contra a liberdade de cátedra. A mão pesada do mercado.
Um país entregue a medíocres e clientes. Talvez sem catedráticos. Certamente com gestores-directores, a dar procedência a queixas que não são mais do que assédio contra professores, e que usarão estas queixas para chegarem aos lugares de gestão, onde ganham mais. Por “milagre” já se sabe os melhores professores, apaixonados por ensinar, críticos, exigentes, receberão mais queixas, os piores, que odeiam alunos, chegarão rapidamente ao topo da direcção onde exercerão o poder usando as queixas como arma.
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Rita Veloso

Chamei a atenção para isso há muitos, muitos anos, aos primeiros indícios