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João Barradas
O HOMEM QUE QUER SER TUDO E MAIS ALGUMA COISA
Sagrar-se-á rei ao ser ungido, na discrição de um painel escondendo o trono, com os óleos consagrados pelo Patriarca de Jerusalém, Sua Beatitude Teófilo Terceiro, e o Arcebispo Anglicano de Jerusalém, Hosam Naoum, na Igreja do Santo Sepulcro, e espera, após a coroação, que os súbditos em Westminster e nos seus domínios lhe jurem fidelidade, bem como «aos herdeiros e sucessores, conforme a lei.»
Na investidura do Defensor da Fé da Igreja de Inglaterra ecoará, depois, pela abadia em que o primeiro rei normando, Guilherme, o Conquistador, foi coroado, no dia de Natal de 1066, o voto de «reconhecimento do serviço público» e «celebração» da parte de líderes religiosos muçulmanos, judeus, hindus, sikhs e budistas.
Carlos III e sua rainha querem-se, assim, moderníssimos, tolerantes e abrangentes, personificação de tradições sagradas e valores perenes, garantes de estabilidade e inovação.
Criados no preconceito da excepcionalidade pessoal, familiar e nobiliárquica, os Windsor vivem, no entanto, tão condicionados por sondagens quantos os políticos sujeitos a escrutínio eleitoral.
Por se considerar manifestação de uma forma superior de existência político-religiosa, a realeza teme a hipotética perda de estima da nação, o rancor da plebe, do burguês e do desvalido ante o privilégio da aristocracia.
Quando apenas 14% de inquiridos com menos de 35 anos consideram «muito importante» a preservação da monarquia contra 44% acima dos 55 anos, segundo sondagem da British Social Attitudes, a preocupação agrava-se porque poderá estar em causa uma tendência de fundo.
Ainda assim, os inquéritos de opinião revelam que no Reino Unido a reivindicação republicana, alicerçada no valor de igualdade formal na cidadania e contestando a relevância política da monarquia, se mantém abaixo dos 40%.
UMA OUTRA MONARQUIA
A pompa e circunstância monárquicas poderão, contudo, dissociar-se da eficácia política caso se venham a reforçar pressões secessionistas na Grã-Bretanha.
A eventual independência e integração na República da Irlanda dos seis condados da Irlanda do Norte ou a secessão da Escócia, pondo termo ao Tratado de União com a Inglaterra, em vigor desde 1707, implicariam uma reformulação de poderes do monarca conducente a desacordos políticos irremediáveis.
Se, noutra vertente, a Jamaica, Bahamas e Belize renegarem em breve a monarquia, Carlos manter-se-á como chefe de estado de onze países, assoberbado por polémicas sobre responsabilidades históricas em espoliações coloniais e ante a ameaça de um triunfo de referendo republicano Austrália.
O vínculo que representa a Commonwealth com seus 56 estados — incluindo países sem subordinação colonial ao Reino Unido como Moçambique ou Togo — assumirá outra dimensão a partir do momento em que vingue a eleição de um Head of the Commowealth não britânico.
DE QUE VALE A COROA
A legitimidade da coroa advém historicamente da Bill of Rights de 1689 que, no rescaldo das guerras civis iniciadas em 1642, subordinou o monarca à soberania do povo representado pelo Parlamento.
Desde então, ao vingar o primado da soberania popular, a legitimidade da monarquia constitucional parlamentar e hereditária só será reconhecida se contribuir, por razões de tradição de reconhecida eficácia política, para a estabilidade funcional de um regime democrático.
A dinastia Saxe-Coburg e Gotha, iniciada em 1910 com Jorge V e renomeada Windsor, em 1917, durante a Grande Guerra, para olvidar a ascendência alemã, é exemplar na capacidade de adaptação aristocrática aos realinhamentos políticos a partir do momento em que a «luz do dia» desfez o mistério e os arcanos da realeza, no dizer do constitucionalista inglês novecentista Walter Bagehot.
A mística dinástica hereditária, ou seja, não-electiva ao invés de outros regimes monárquicos, depende, por definição, das características pessoais do soberano e do modo como controle disputas familiares por partilhas de poder e ambições à sucessão.
A crise provocada pela abdicação de Eduardo VII, em 1936, mostrou como o topo decisório do sistema político britânico assenta num equilíbrio entre o funcionalismo público de carreira, a casa real, partidos políticos, com suas representações na Câmara de Representantes e Câmara dos Lordes, cujos poderes de veto foram abrogados em 1911, e tribunais.
MOSTRAR-SE COMO DEVE DE SER
A prescrita não-manifestação pelo monarca de opiniões políticas, religiosas ou culturalmente divisivas, nos termos da ordem corrente de crenças e costumes, tem um contraponto num poder de influência diverso em que as ligações da Coroa às elites do funcionalismo e outros «poderes fácticos», da banca às forças armadas, se fazem sentir.
Carlos, desde a investidura em 1969 como Príncipe de Gales, demonstrou notória dificuldade em compreender e cumprir a lei de recato público real.
Diminui-se como símbolo do consenso mítico nacional ao proclamar opções culturais e preocupações ambientais — por vezes muito estimáveis e que, com o avançar dos anos, cairiam no agrado público — ao mesmo tempo que tentava influenciar nos bastidores os poderes públicos, incluindo sucessivos governos.
Deu-se ao ridículo e escárnio com o atormentado matrimónio com Diana Spencer e adultério com Camila Parker Bowles, evidenciando-se como um dos mais caricatos protagonistas de uma família disfuncional em que da pedofilia do irmão André à monomania de Calimero do filho Harry pouco escapou ao escrutínio público na era da globalização mediática.
Isabel II — zelosa, incansável e discreta guardiã dos deveres e prerrogativas reais, capaz de manter imperturbável a dignidade real na transição do pós-guerra e da dissolução do Império — rendeu-se à evidência de que, segundo relato minimente credível de um dos muitos biógrafos, «para acreditarem em nós temos de ser vistos.»
Mesmo quando, em 70 anos de reinado, lhe falhou a argúcia — nomeadamente em 1966, na catástrofe na cidade mineira de Aberfan, em Gales, ou por ocasião da morte de Diana, em 1997 –, Isabel II conseguiu recuperar o tom apropriado para recentrar a monarquia como instituição de coesão simbólica em consonância com os poderes electivos.
Carlos III, herdeiro aos 74 anos, adapta-se a uma Grã-Bretanha cuja diversidade étnico-religiosa – um primeiro-ministro hindu, em Londres, outro muçulmano, em Edimburgo –, conflitualidade política e social, quando se tenta reposicionar como potência com projecção global, dificilmente se conforma à ilusão aristocrática de que se pode ser tudo, único e insubstituível para todos e mais alguém.
Nos anos que terá no trono, a Carlos III só resta conformar-se à realidade de que são cada vez mais raros os momentos em que um rei, pelo seu comportamento e ideal, possa vir a congregar gentes e nações.
João Carlos Barradas
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