a nova censura nos EUA

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Segundo revelações recentemente tornadas públicas, por fonte da editora portuguesa de Afonso Reis Cabral, dois dos seus livros foram rejeitados por uma editora norte-americana, com base em “critérios” que nada têm a ver com a qualidade da escrita ou com a pertinência dos temas abordados.
A tal editora (não se sabe qual) reconhece que “o escritor é claramente muito talentoso”, uma concessão em que se caldeiam paternalismo (ou maternalismo: honni soit…) com má consciência. De resto, já sabíamos que Afonso Reis Cabral é “muito talentoso”, desde que lemos os dois títulos em causa, ou seja, O Meu Irmão (2014) e Pão de Açúcar (2018), ambos contemplados com importantes prémios da nossa cena literária. Mas mesmo que isso não tivesse acontecido (porque os prémios nem sempre acertam), aqueles livros seriam suficientes para afirmar uma voz literária de grande qualidade, abrindo um trajeto que, sendo ainda curto, dará lugar à obra sólida e coerente que há de vir. Os próximos anos, estou certo, confirmarão o que digo.
O que agora me interessa não são os reconhecidos méritos de Afonso Reis Cabral. Menos ainda desejo pôr em causa a liberdade de uma editora para aceitar ou para negar a publicação de um livro, seja ele qual for. Aliás, todos sabemos de casos de quem, vindo a ser Prémio Nobel da Literatura, enfrentou, nalgum momento da carreira, rejeições como aquelas de que aqui falo, embora eventualmente por razões (ou sem-razões) diferentes. É coisa que faz parte das lógicas da produção cultural, dos respetivos juízos de gosto e também dos mecanismos de mercado com que ela tem de lidar. Mas a liberdade de não editar é também aquilo que para mim reivindico, quando afirmo que os motivos invocados para não publicar são altamente discutíveis e mesmo inquietantes, tendo em atenção os argumentos apresentados.
Vejamos (e fazendo fé no que se conhece): “Sinto”, diz o editor misterioso, “que a franqueza de ‘O Meu Irmão’ pode ser problemática para o mercado dos EUA onde estes temas são levados muito a sério pelos media”. Dito assim, parece que a literatura é incapaz de levar “muito a sério” a questão central do livro, plasmada numa personagem com Síndrome de Down. Ora, importa lembrar que é precisamente a literatura que tem a capacidade e até, de certa forma, a incumbência ética de levar “muito a sério” temas que alguns calam e que a outros incomodam. Dito de outro modo e em interrogação retórica: não tem sido a literatura (e a arte em geral, evidentemente) a levar muito a sério a opressão sobre os fracos e os arbítrios de poderes ilegítimos, a ânsia de liberdade e os sofrimentos que a sua conquista exige, o amor e o ódio, a exaltação do belo e a denúncia da vileza, o sofrimento e o júbilo, a aniquilação de minorias, a luta pela justiça, as frustrações a que a sua falta conduz, o medo da morte e a transitoriedade da existência humana? Assim tem acontecido ao longo de muitos séculos, desde a Antiguidade até aos nossos dias; assim continuará a acontecer com as práticas artísticas que, partindo do contingente, forem capazes de renovar, para quem vier depois, sentidos que transcendem aquela dimensão de contingência.
O editor assustadiço declara-se também preocupado com o poder dos media, com “a franqueza de ‘O Meu Irmão’” e com o mercado dos EUA, tudo assim misturado. Compreende-se esta preocupação. Numa sociedade em que a apetência pelo lucro convive com a hipocrisia do puritanismo, empurra-se para debaixo do tapete temas delicados (o sexo, a doença, a fragilidade humana), cujo tratamento franco ofende a sagrada trilogia “God, my country and my family”. A mesma, afinal, que recentemente determinou a demissão de uma professora norte-americana, por se ter atrevido a mostrar a adolescentes a nudez do David, de Miguel Ângelo.
(Extrato de “A experiência da caça e a voz do outro”, Jornal de Letras, Artes e ideias, 1371, 19 de abril de 2023)
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