nos Açores (e em Portugal) é moda destruir património

Views: 0

O nosso património está órfão.
+3

De atentado em atentado, até que o Património fique todo eliminado…
Em 2018, foi com estupefacção que recebi a notícia de estarem a ser partidos todos os azulejos da fachada principal e da fachada posterior de um dos raríssimos edifícios do centro histórico de Ponta Delgada que ainda têm este tipo de revestimento remontando ao século XIX. A situação era notoriamente grave. Por um lado, o edifício já havia sido por mim sinalizado numa comunicação sobre as mais antigas fachadas azulejadas da Ilha de São Miguel, publicada numas actas do LNEC em 2015 ( http://www.franciscoqueiroz.com/Azulejaria_de_fachada_na_Ilha_de_S_Miguel.pdf ). Por outro lado, o edifício situa-se dentro da Zona Especial de Protecção da Igreja Matriz de São Sebastião, e a lei prevê que, nestes casos, os municípios não possam emitir licenças de construção sem que dê também o seu parecer a superior autoridade para a área cultural (neste caso, a Direcção Regional da Cultura). Por outro lado ainda, havia sido publicada no ano anterior a lei que impede a remoção de azulejos de fachadas ( como é mencionado aqui https://www.publico.pt/2017/08/21/p3/noticia/agora-esta-na-lei-e-proibido-remover-azulejos-das-fachadas-1828461 ), a qual continua em vigor e só não se aplica se os azulejos não tiverem qualquer valor patrimonial, o que tem de ser previamente justificado através de parecer técnico do próprio município; parecer técnico esse para o qual há muito que existem publicados critérios oficiais de apoio à decisão ( http://www.sosazulejo.com/wp-content/uploads/2018/07/Critérios-orientadores-de-avaliação-de-fachadas-azulejadas-para-aplicação-Lei-79-2017.pdf ).
Relativamente a esse caso junto à igreja matriz de Ponta Delgada, elaborei na altura um pedido de esclarecimentos à Câmara Municipal (publicado aqui https://www.facebook.com/…/pfbid0JbUw7UNrZ8MZxbz6UiG6Vu… ). Sabia perfeitamente ser impossível reverter a perda, pois era notório que os azulejos da fachada em questão haviam sido todos partidos, restando até diversos fragmentos no chão. Porém, era importante alertar as autoridades e consciencializar, além de abrir caminho para que tal perda fosse minorada de algum modo. Efectivamente, foram depois produzidas réplicas e aplicadas na fachada principal. Infelizmente, no caso da fachada posterior, nada foi corrigido.
Isto que acabo de relatar sucedeu em finais de 2018.
E, de quatro, passaram a existir somente três edifícios em Ponta Delgada com revestimentos do século XIX. Alertei na altura para isso mesmo, assinalando, no pedido de esclarecimentos, quais eram os três edifícios sobrantes, que azulejos tinham, qual a sua origem e qual a importância e especificidade das aplicações azulejares, e, sobretudo, alertei para o estado de conservação das respectivas fachadas.
Portanto, desde 2018 que a Câmara Municipal de Ponta Delgada está sobejamente prevenida e informada.
Apesar disso, em 2023, desses três edifícios passamos a ter somente dois.
É mais esta perda patrimonial que me traz aqui: a fachada azulejada da Rua dos Mercadores (nas imagens). Era uma das mais antigas dos Açores e constituía marca importante de uma certa visão burguesa cosmopolita do período romântico, visão essa adaptada à realidade açoriana, ao ponto de o modo de colocar os azulejos não se encontrar em mais lado algum no território nacional.
Pois, esses azulejos foram todos retirados.
Não encontrei evidências de terem sido partidos “in situ” e, portanto, olhando ao caso de 2018 e a tanta informação já disponível ao público sobre o assunto, deduzi que tivessem sido retirados com cuidado para renovar a argamassa e para posterior recolocação.
Puro engano.
Através dos andaimes já se consegue perceber que a fiada de cercadura foi recolocada, mas os azulejos de padrão oitocentistas, de inspiração holandesa, foram substituídos por azulejos monocromáticos completamente fora de contexto e colocados de modo alternado, como se fosse a parede de uma casa-de-banho dos anos 80. E tudo isto acontece para transformar o edifício (e o edifício do lado) num hotel “boutique” – eufemismo para hotel em edifício preservado e com o charme de outros tempos.
Triste ironia: um dos três únicos edifícios de Ponta Delgada que ainda tinha azulejaria oitocentista de revestimento, perde a sua azulejaria original numa obra cujo propósito era corresponder aos desejos de quem precisamente mais valoriza a azulejaria de fachada portuguesa: aqueles que não são portugueses.
É inacreditável!
E assim, de três, passamos a dois edifícios em Ponta Delgada que ainda têm revestimentos azulejares do século XIX na fachada.
Não irei repetir as perguntas que fiz quando redigi o pedido de esclarecimentos de 2018. Teria de me repetir quase inteiramente. Peço apenas que se apurem responsabilidades e que se corrija o erro, minorando-se a perda o melhor possível, enquanto ainda é tempo.
A propósito: o que é feito dos azulejos da fachada posterior deste edifício, voltada ao mar? Tiveram o mesmo destino dos da fachada principal? Não; não é uma pergunta de retórica, mas um pedido de ajuda, pois eles não são visíveis da rua. Obrigado.

All reactions:

2

Like

Comment
Share