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A tampa
As raparigas estavam sentadas e eram “tiradas”.
Nos bailes do amplo salão do Amor da Pátria, nos ringues ao ar livre do Sporting ou do Fayal Sport, a regra era aquela. As moças estavam sentadas, os rapazes dirigiam-se para as mesas onde elas pousavam e “tiravam-nas”, isto é, pediam-lhes para dançar.
Claro que tal norma tinha excepções. Se era o namorado, não precisava “tirar”, como é óbvio. A moçoila estava “comprometida” e só dançava com quem a “comprometera”. Podia, até, manter-se várias músicas sentada, se o namorado demorava a comer uma bifana ou preferia ficar a conversar com amigos. Ficava para ali a mexer com as mãos no colo, enquanto as “desatreladas” eram “tiradas” e já evoluíam na pista.
Outra excepção era se o pretendente avisava com antecedência. Piscando um olho, verbalizando a coisa, “queres dançar comigo a próxima?”. Nestes casos, a desatrelada reagia como se estivesse comprometida e o pobre que a ia tirar sem saber da combinação ficava muito confuso, perguntando-se se teria defeito. Sim, porque era humilhante avançar com ar resoluto pista adiante e ter de fazer um bordo, com ar distraído, perante a recusa expressa num abanar de cabeça.
Chamava-se “tampa”, tal recusa. Nunca consegui entender por quê, mas levar uma “tampa” era muito embaraçoso.
Um adolescente quase jovem à espera da primeira nota vinda do “conjunto” para desapegar em grande velocidade em direção à escolhida, chegar até antes dos outros e levar com um “não” pela cara fora, dava que pensar. Uma coisa era não ser suficientemente lesto, ver-se ultrapassado na corrida por amigos mais rápidos e chegar a uma mesa já vazia, as raparigas levantando voo como pombas alvoraçadas, rumo aos braços de rivais, outra coisa era até chegar primeiro mas levar uma tampa.
Nos bailes de freguesia era ainda pior. Rapazes da cidade eram vistos como inimigos pelos rapazes do campo. Vestindo de outra forma, cheirando a “brut”, os citadinos eram olhados como intrusos perigosos, quando chegavam aos clubes rurais. As raparigas gostavam da diferença, via-se perfeitamente nos sorrisos envergonhados. Mas estavam sob vigia apurada. De uma mãe, de uma avó, de um namorado doido para largar a sua bolacha, de um solteiro crónico mas muito zeloso “das nossas”.
Quando entrávamos, seguros nas nossas calças “boca de sino” a cobrir completamente os sapatos de enfiar, sabíamos o efeito que causávamos. Mas sentíamos também o perigo que se escondia naquela atmosfera densa, naquele ar pesado de espaço pequeno com muitas respirações lá dentro. Rondávamos, mas só tirávamos pela certa, uma colega de liceu da freguesia, uma amiga da cidade que tinha ido ao baile da colega de liceu. Mesmo assim, ficando pelo centro, que dançar pelos lados podia puxar uma rasteira, vinda de um sapato de atacadores…
Aprendi a tocar guitarra e comecei a apresentar-me em conjuntos. Viola ritmo. Solos eram para quem mexia melhor nas cordas, o Paulinho da Colónia, o Eduíno, o Gui Serpa. Ensaiávamos em espaços exíguos, com os volumes dos amplificadores no máximo e quando acabava o ensaio saíamos para a rua e eu só ouvia uma chiadeira tesa em vez do silêncio.
Paga-se sempre a factura, com a idade. Há anos fui fazer um audiograma e o amigo competentíssimo João Martins explicou-me que asneiras desse passado deram-me cabo de alguns cílios. Ouço cada vez pior e certos ruídos nem ouço. Por exemplo grilos. Não ouço grilos. O que se revela uma vantagem em acampamentos. O problema é que não sei quantas coisas mais não ouvirei. Porque os grilos, há sempre alguém que diz “sacana do grilo”…
Mas é só nos ouvidos. Porque às escuras, logo cego, e no maior dos silêncios, logo surdo, revejo e ouço nota por nota cada baile onde dancei, cada palco em que toquei, e cada tampa que levei.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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