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POSFÁCIO — O CRONISTA ILUMINADO
Terminada a circum-navegação do leitor pelas Crónicas do Éden, cabe-me o privilégio de acrescentar o que se apraz resumir deste riquíssimo volume. Além de implicar um considerável grau de responsabilidade, colocar um ponto final parágrafo em mais este ChrónicAçores pode até tornar-se intimidante, em especial para um aprendiz de cronista como eu, ainda em busca da contundência das palavras — ferramenta tão magistralmente manuseada pelo autor nos mais variados âmbitos do seu percurso jornalístico e literário.
Além de patrono da mundivivência, Chrys Chrystello é cidadão australiano com raízes brigantinas, tronco timorense, ramagem macaense e folhagem açórica, combinação que confere um tom multicultural às suas poderosas reflexões. Do chá aos sismos, dos cagarros ao império da vaca, das romarias ao Santo Cristo dos Milagres, os temas contextualizam-se numa vasta e intensa geografia que, apesar de centrada nos Açores, revisita variadíssimas latitudes, incluindo a Madeira, Timor, Brasil e a Austrália, por exemplo. Recorrendo a um vocabulário rico e muitas vezes romântico, o autor transverte os relatos de estilo diarístico-jornalístico em quase poesia.
No decorrer da sua leitura, este tomo de viagens pedagógicas terá certamente provocado ao leitor sensações imprevistas de redenção sedutora à vida ilhática. O pré-aviso de alumbramento está bem patente no título, mas haverá também lugar para outros efeitos secundários, sendo o mais comum as vertigens da clarividência. Para Chrys Chrystello, experiente jornalista que nesta e noutras rubricas assume uma voz pungente, as ilhas dos Açores são o Jardim do Éden e o fruto proibido é a desinformação que paira sobre o seu passado, tal nevoeiro pardo. Não existe receio de questionar a pré-história arquipelágica, até porque o debate continua — e continuará — em ebulição.
Se existiu a Atlântida ou se (e quando) os Açores foram visitados por outros povos antes dos Descobrimentos, das questões provinciais aos eternos dilemas da pseudoautonomia, do peso da religião às crises socioeconómicas, do custo da insularidade à vida extraterrestre, Chrys Chrystello emprega o sarcasmo na dose certa para abastecer o leitor de uma visão abrangente, de ângulos nunca antes considerados.
Este homem “ilhanizado ou açorianizado”, como ele próprio se define, revela também a sua ligação a outros escritores e curiosas trocas de correspondência, que facilmente alimentariam novas narrativas. Por outro lado, nas suas intensas divagações aqui reunidas, permite que o leitor percorra contextos sociais contrastantes, períodos históricos controversos e visões filosóficas revolucionárias.
Alumbramento pode definir-se como uma espécie de iluminação do fascínio, o que muito bem servirá de definição às Crónicas do Éden, mas pela coragem de fazer emergir assuntos relevantes, enquanto a maioria dos opinantes aguarda pelas primeiras manifestações para se fazerem ouvir, atrever-me-ia a considerá-lo um cronista iluminado.
Ponta Delgada, dezembro 2020
Pedro Almeida Maia
PREFÁCIO – A MITOLOGIA DO CRONISTA
A crónica é dos géneros mais difíceis, mas dos mais estimulantes.
Há quem diga que está na fronteira entre o jornalismo e a literatura, mas passou por muitas transformações desde o seu aparecimento no início da era cristã.
Popularizou-se em Portugal com os relatos apaixonados do início da expansão marítima e transformou-se num misto de narração e ficção com as célebres “Crónicas das Índias“.
O género autonomizou-se através do jornalismo, quando surge pela primeira vez na imprensa escrita, já lá vão mais de 200 anos, nascendo então cronistas celebrizados que iam da cobertura da frente das guerras até ao mais invulgar acontecimento mundano.
A crónica, hoje, não possui tipologia própria, variando consoante a inspiração e talento do respetivo autor, deixando de se assemelhar a história para passar a narrativa do tempo presente.
Do latim Chronica e do grego Kronos (tempo), talvez esteja hoje mais atraente, na forma e no tempo, do que nos anos ancestrais em que ainda nem havia o género romance.
Os jornalistas veem-se “gregos” para assimilar a crónica como género fluido nesta nova moda trazida pelo mundo digital de que “tudo é comunicação“.
Chrys Chrystello, como jornalista sénior que é, certamente se terá apercebido do poder da crónica como narrativa do tempo, porque passou a incorporá-la na sua escrita regular com enorme desenvoltura, como se poderá constatar neste volume quase diarístico (outra transformação da crónica), que vai de 2005 a 2020.
Chrystello usa bem os conceitos do género e utiliza-os melhor quando escolhe como espaço este ‘microblogging‘ no meio do Atlântico a que ele chama mitologicamente de Éden.
O autor consegue transformar a centralidade insular num misto de ansiedade e identidade redentora, sempre com espírito crítico, provavelmente por ter sentido na pele, muito antes de nós, as angústias do futuro de um povo e das suas ilhas, durante a sua longa vivência em Timor.
Aliás, Timor e Açores passaram a ser os “colossos utópicos” na comunicação de Chrys Chrystello, aquilo a que ele chama a si próprio “ilhanizado”.
“Perdi sotaques, mas não malbaratei as ilhas-filhas. Trago-as comigo, colar multifacetado de vivências dos mundos e culturas distantes. Primeiro em Portugal, ilhota perdida da Europa no Estado Novo, seguida de um capítulo naufragado da história trágico-marítima camoniana, nas ilhas de Timor, de Bali, na então (pen)ínsula de Macau (fechada da China pelas Portas do Cerco), na imensa ilha-continente Austrália, e em Bragança, ilhoa esquecida que é o nordeste transmontano.” (Pg. 187 da presente edição).
É este mundo – desgastante e deslumbrante (“alumbramento”) – que vai moldando as “Crónicas do Éden“, muitas delas publicadas no “Diário dos Açores” que dirijo, sendo um privilégio ser o primeiro leitor e simples paginador.
Nada como um bom observador que vem do outro lado do mundo – e que mundo! -, Que se deixa “ilhanizar” entre nós, mas mantém o espírito aberto e aplicado do jornalista-cronista, que não se deixa influenciar pelos “poderes mágicos” do burgo regional, certamente muito diferentes dos que se veem na sociedade aborígene australiana.
Chrystello é o nosso Bill Bryson com as suas “Crónicas de uma pequena ilha“, com a diferença de que procura constantemente uma “renovada Atlântida” cada vez mais mítica e muito perto do universo da “Ilha Grande Fechada” do seu e nosso querido amigo Daniel de Sá.
O espírito inquieto do autor, refletido nas crónicas de crítica social e política da urbe açórica, é uma procura permanente do Ideal que já vem do tempo de Antero, o democrata e republicano “daquela república que por ora não existe senão como ideia e aspiração“, espicaçando a nossa ancestral morrinha insular, conformados com o presente e pouco preocupados com o futuro.
Vale a pena fazer esta viagem guiada (“uma circum-navegação“), que o Chrys nos presenteia neste livro, numa incursão em defesa da justiça social, da língua, da nossa literatura, dos nossos poetas e escritores, da nossa história, do presente e do futuro, mesmo que sob uma perspetiva crítica e ao mesmo tempo apaixonada destas ilhas.
Não será por ironia que o cronista as chama de Éden.
Ou será?
Pico da Pedra, outubro 2020
Osvaldo Cabral