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17 de Dezembro de 1961
“A MINHA ÚLTIMA NOITE EM GOA”, MARIA ONDINA BRAGA
(…) Maria Ondina Soares Fernandes Braga nasceu em Braga – curioso, sintomático até, a terra e o nome a miscigenarem-se – e ali está sepultada, no Cemitério dos Arcos, regressada às origens. O seu corpo viveu oitenta e um anos. Pelo meio, uma vida em tão diversas paragens que a sua alma reduziria a um só local na terra, um lugar de interioridade, as paredes da sua clausura.
Se somarmos o tempo cronológico da sua vida ao tempo em que viajou, conclui-se, assim a lógica fosse tudo, ter sido a sua errância terrena (…) : meses em Pequim, quatro anos em Macau, escassíssimo tempo no Estado Português da Índia, dois anos em Angola e um tempo indeterminado, breve, porém, em Inglaterra e França.
Rompera já com Braga, rumando às «ilhas encantadas». Viveu em Glouscester, tempo que não consegui determinar (…). Mudou-se para França.
Regressada a Portugal parte como professora para Luanda, onde ensina no Colégio de São José de Cluny. Chega, então, a guerra.
Sentindo ser-lhe impossível continuar, opta por Goa.
Rumo a Oriente. Professora no então Estado Português da Índia, fixou-se na missão católica em Caranzalém, «cidadezinha rústica com uma grande praia e um mar muito azul» ensinando meninas indianas cujos pais haviam emigrado para Goa e a quem a língua portuguesa lhes tinha de ser ensinada a partir do inglês, que era a que dominavam. Poucos meses ali permaneceria. A guerra viria, uma vez mais, ao seu encontro. Em Dezembro estava de partida.
Maria Ondina Braga chegou a Macau em Dezembro de 1961, via Carachi e Hong-Kong, oriunda de Goa, de onde saiu no dia 17 desse mês, por causa da ocupação do território pelas tropas da União Indiana. Fora das últimas mulheres europeias a sair ante o que chamou de «escandalosa missão de usurpação».
Pouco tempo ali estivera, mas, porém, já se referia àquela «dor da invasão indiana que me obrigara a abandonar a terra dos meus antigos quase só com a roupa do corpo», pequena sacola, deixando para trás, na missão de Caranzalém, o pouco que tinha de seu, excepto o livro com cartas de Rainier Maria Rilke.
Estranha, mas sintomática, essa frase no livro “Estátua de Sal” : «(…) a terra dos meus antigos», escreveu, como se a breve permanência do estar tivesse escassa valia face à intensidade duradoura do ser.
Intensidade que se sente em cada linha da narrativa sobre “A minha última noite em Goa”, relato em que se misturam «a realidade do aeroporto», a rememoração das viagens feitas a Dona Paula, Mormugão, Caranzalém, Pangim, Velha Goa, por entre a «paisagem de sol e de seiva», e o «cismar num conto a que se poderia dar o título de “O homem e o Deus passeando na noite”». Goa de onde partiu com mágoa. Partiu «e Goa ficou lá», escreveria a resumir nesta simples frase todo um caudal de sentimentos.
Intensidade que retoma no seu relato “Goa: a hora do adeus”, saído em 1994 com o livro “A Passagem do Cabo”: «na missão cortavam a corrente eléctrica entre as nove e as dez da noite. Terminada a aula nocturna de Português, regressava eu a casa às escuras: mal daria pelo pátio não fosse a Lua (enluaradas as noites de Goa), e Lua e as raízes das árvores-de-gralha a roçarem-me pela nuca».
Professora, enfim, em Macau. Foi o tempo de maior permanência foi o que mais marcas deixou, e profundas, na sua alma. Foi aí que escreveu “Estátua de Sal” e “A China Fica ao Lado”.
«A obra literária de Maria Ondina Braga ocupa um espaço muito singular na literatura portuguesa contemporânea, nomeadamente por conceder enorme atenção à ampla temática da viagens e, consequentemente, à realidade dos diálogos interculturais, num olhar aberto, plural e humanista, sendo por isso motivadora de grande atração e pluralidade de leituras. Nesse sentido, podemos falar de uma fecunda “poética da relação” (Éduard Glissant), que põe em diálogo territórios e culturas mais ou menos distantes – Norte e Sul, sobretudo Ocidente e Oriente –, em cruzamentos e encontros inesperados e desafiadores.
«Com efeito, a própria escritora se apresenta como “viajante do mundo”, numa escrita que manifestamente foi marcada pela experiência da errância e do auto-exílio, sem esquecer a viagem e exílio interiores – “Eu vim para ver a terra”. Num tempo de crises migratórias, de refugiados e de exilados, a “condição exílica” e o sentimento de “exiliência” (Alexis Nouss) desta autora, expressos tão intensamente através da sua escrita, apresentam-se hoje com uma enorme atualidade, proporcionando leituras através de um fecundo olhar comparatista (Edward W. Said).
Do blog dedicado a Maria Ondina Braga, escrito por José António Barreiros