crónica de francisco madruga

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À volta dos livros
Aqua-Flaviae
Para quem conhece Chaves, palmilhada por ruas estreitas, com o cinzento do granito velho e o reflexo da luz que entra tenuemente, as suas típicas varandas de madeira de cores multifacetadas, não pode deixar de ver os contrastes com a cidade fora de muralhas.
O imenso Património cultural, paisagístico e humano continua lá, entre o antigo e o moderno.
Como será a fotografia tirada com o olhar do alto do Miradouro de S. Lourenço sobre a Veiga e o casario que se vislumbra a perder de vista?
Relembro as montras de livrarias e quiosques recheadas de livros de Miguel Torga em época de Termas. É que o nosso escritor transmontano vinha a águas por estes sítios.
Algumas livrarias resistem, emolduradas por novidades que induzem ao consumo imediato. Os grandes espaços comerciais vão conquistando espaços mesmo no interior da cidade. Sabemos todos, que as obras de referência e os clássicos estão inevitavelmente nas estantes dos armazéns das editoras e das poucas livrarias tradicionais.
Hoje, queria convidar-vos a visitar pelos meus olhos e ouvidos um dos melhores locais de cultura e de história da cidade de Chaves. Existirão outros tão importantes? Talvez!
Falo-vos da rua de Santo Amaro, á saída da cidade velha, banhada por ribeiras e casas antigas.
Aqui, encontramos gente com formação cívica, académica e com profundo conhecimento da literatura, da música, da natureza, das tradições e dos saberes ancestrais.
Dá gosto conversar com três gerações que viveram, participaram e transmitiram saberes, princípios e valores profundamente humanos e empenhados.
Elencaram-se acontecimentos, tiraram-se dúvidas, contaram-se novas histórias, folhearam-se livros onde a vida acontece nas entrelinhas de cada parágrafo.
A música confunde os sentimentos. Que música é esta?
– Não é CD, é o meu sobrinho ao piano!
Dou comigo a pensar – A terceira geração sabe do que estamos a falar e rapidamente adequa o andamento à conversa.
Falamos de Jorge Sampaio e da sua Biografia, da investigação do José Pedro Castanheira, das crónicas da rádio em torno da obra. As cartas de namoro confiscadas pela PIDE e nunca entregues aos destinatários encarcerados no Aljube.
Questionados os diretores da polícia política vinha sempre a mesma resposta:
– Coisas sem interesse, deitamos fora!
Não deitaram nada. Leram, usaram e estão muitas delas na Torre do Tombo.
Passamos os olhos e a memória pela vida.
Os locais, as pessoas, os perigos de quem tinha a seu cargo o aparelho de passagem de fronteira em Chaves.
O Dr. Domingos da Costa Gomes, exilado, impedido de exercer a sua profissão.
Falamos do Tordo, do Ary e de tantos outros que frequentaram palcos por estas terras.
Abrimos o livro “Vozes ao Alto! 100 Histórias na História do PCP”. São 100 objetos, descritos, fotografados e enquadrados por quem os viveu ou contou. Pelo texto de consagrados investigadores e fotógrafos (Adriano Miranda, Cristina Nogueira, Egídio Santos, Isabel Nogueira, Maria Alice Samara, Paulo Pimenta e Vanessa de Almeida), resultaram 100 episódios, mas poderiam ser muitos mais.
Falamos de personagens, de situações, de enquadramentos humanos e estéticos.
Falamos das relíquias documentais existentes em muitas casas espalhadas pela região e que fixam o trabalho, a luta e a resistência destas populações.
Não temos o direito de não as contar e as devolver ao conhecimento de investigadores e historiadores.
Falamos do meu “Histórias (de)Vidas” e das suas personagens reais e imaginárias.
Marília não resistiu a contar uma história.
– Numa ocasião, Francisco Miguel (Xico Miguel, para os seus camaradas) deslocou-se a Chaves para uma ação política. Tinha vindo de Lisboa, com muitas horas de viagem. Chegou em cima da hora do evento e seguiu diretamente para o local. A sessão prolongou- se para além da hora prevista e acabou altas horas. Chegados a casa, Francisco Miguel perguntou se não se importavam que comesse uma sande que tinha no bolso pois não tinha jantado.
Todos se interrogaram, como era possível um homem desta envergadura moral e intelectual ter esta humildade?
Preparam-lhe de imediato uma refeição à altura da situação. Como sempre, ele não queria incomodar, já bastava o trabalho que estava a dar.
E assim revisitei um dos melhores locais de vida, de arte, de música, de literatura, de cidadania e resistência da Cidade de Chaves.
Com a Marília, o Pité e o Miguel por chamada telefónica, recordamos a vida e as memórias.
Á memória do Max (Dr. Maximino Cunha)!
Helena Olga Jesus and 13 others
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