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Texto sobre a descoberta portuguesa dos Açores a propósito da hipótese estapafúrdia da presença viquingue no arquipélago.
Repensando a Idade Média.
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CACA “MEDIEVAL” NOS AÇORES: NOVO CAPÍTULO DE UMA HISTORIETA ANTIGA
Há algumas semanas, diversos meios de comunicação social como o Observador, a SIC Notícias e o Jornal de Notícias ou até páginas de diversos institutos de investigação universitários circularam a notícia de uma descoberta de provas de colonização medieval nos Açores, ligadas aos Viquingues. Afirmações grandiosas como esta constituem uma de duas hipóteses: ou a descoberta do século na arqueologia portuguesa ou uma das maiores asneiras do ano, com uma série de instituições académicas e de meios de comunicação social a cair inexplicavelmente na esparrela. E porque nunca é má oportunidade falar-se sobre a descoberta e colonização destas ilhas, juntemos o útil ao agradável para abordarmos ambos os assuntos.
A DESCOBERTA DOS AÇORES
É difícil historiar as primeiras navegações conhecidas aos Açores, por estarem ainda muito mal documentadas. É possível que lá tenham chegado navegadores ainda em finais do século XIII ou durante o XIV, quer em expedições italianas, quer portuguesas. No relato feito por Boccaccio (!) da expedição luso-genovesa de 1341 às Ilhas Canárias, patrocinada por Afonso IV de Portugal, são descritas ilhas de forma muito vaga na viagem de regresso, que poderiam corresponder eventualmente a algumas ilhas açorianas ou, mais provavelmente, madeirenses. Porém, não existem provas seguras de tais avistamentos ou desembarques prematuros, quer do ponto de vista documental, quer do ponto de vista arqueológico, daí que se continue a considerar 1419 e 1427-1452 como as datas de descoberta dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, respectivamente. Mesmo o caso da suposta presença das ilhas açorianas em portulanos de finais do século XIV é melhor explicado pelo facto de se tratar de ilhas imaginárias, que depois acabaram na toponímia regional.
A respeito dos Açores, as primeiras fontes a mencionar seguramente a descoberta do arquipélago são os mapas de Battista Beccario (1435) e de Gabriel de Vallseca (1439). Este último relata o seguinte: “Aquestes jilles foran trobades p diego de ??? pelot del rey de portogall an lay Mccccxx.vij”. De acordo com Damião Peres, seguido pela maior parte da historiografia moderna, a leitura mais correcta das palavras em dúvida será “silvius” ou “silves”. Ou seja, teria sido Diogo de Silves o primeiro a atingir esta região, talvez por acidente numa viagem de regresso da Madeira, desembarcando provavelmente na Ilha de Santa Maria em 15 de Agosto de 1427 – daí o seu nome. Uns anos mais tarde, a partir de 1431-1432, é provável que tenham existido novas viagens de exploração por Gonçalo Velho, que poderiam eventualmente ter renomeado algumas das ilhas. Certo é que os grupos Oriental e Central do arquipélago já seriam conhecidos em 1439. Mesmo assim, o Grupo Ocidental ainda teve de esperar até que Diogo de Teive avistasse finalmente o Corvo e as Flores em 1452.
Mesmo com as ilhas descobertas e reclamadas por Portugal, o povoamento de ilhas inóspitas e inicialmente sem grandes condições de habitabilidade no meio do Atlântico foi muito difícil, especialmente tendo em conta a escassez populacional tardo-medieval, talvez no seu pior ponto mais ou menos por esta altura. Não deixa de ser sintomático desta situação que só em 1439 Afonso V autorizasse o Infante D. Henrique a povoar a região, onde até àquele momento só tinham sido lançadas ovelhas. Por isso, não é de espantar que o povoamento das ilhas pareça ter sido feito por uma mistura de escravos africanos – referidos em lendas do século XVI -, degredados pela justiça régia, fugitivos e colonos portugueses enviados pelo Infante Henrique, incluindo as elites dirigentes. De acordo com João Marinho dos Santos, a proveniência dos colonos portugueses registados era sobretudo minhota (c. 50%), algarvia (c. 27%) e madeirense (c. 18%). Apesar de todas as iniciativas senhoriais e régias, as ilhas só lentamente foram habitadas e as vilas só chegaram a prosperar no século XVI. Mesmo assim, o Corvo e as Flores só se povoaram depois de 1507, altura em que ainda eram descritas como desertas.
VIQUINGUES NOS AÇORES: UMA HIPÓTESE SEM EVIDÊNCIAS
Examinemos então o que nos diz esta nova teoria (passe-se a expressão). De acordo com Raposeiro et al., haveria dois marcadores fecais – o 5-beta-estigmastanol e o 5-beta-coproestanol – mais elevados nas amostras de sedimentos retiradas de cinco lagos açorianos, para uma época correspondente a 700-850 d.C.. Como Raposeiro et al. associam a presença desses marcadores a fezes inequivocamente humanas ou de grandes mamíferos, concluem que os Açores foram colonizados por humanos e gado importado na Alta Idade Média. Isto seria corroborado pela presença de carvão e de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, que demonstrariam a mudança da vegetação pouco tempo depois do começo da suposta colonização. Para completar o ramalhete, usaram-se um breve estudo de algum pólen e modelos climáticos para reforçar a hipótese e criar uma rota plausível por onde os viquingues pudessem ter viajado.
Infelizmente, Raposeiro et. al. não incluem no seu artigo o facto de os marcadores fecais achados não se encontrarem meramente nos dejectos de humanos ou grandes ruminantes, mas, em menor concentração, também nos excrementos de aves (Leeming et al. 1996; Hargan et al. 2018). Assim, para além da falta de representatividade da amostra e riscos de contaminação, já verificados noutros estudos liderados por este e outros investigadores com os mesmos objectivos, os autores nem sequer discutem no seu texto a possibilidade de que a concentração dos marcadores encontrados seja produto de fezes de gaivotas e açores. Para além disso, também parece que solos anaeróbicos são capazes de apresentar estes esteróis sem que isso se deva a actividade humana (Prost et al. 2017). Por isso, só dois marcadores isolados e sem contexto não chegam. Seria necessário usar mais indicadores como ácidos biliares e um perfil das gorduras fecais mais completo para se chegar a conclusões seguras. A este nível, temos ainda outro “red flag”: a falta de correlação aparente entre as concentrações dos marcadores estudados e a evolução demográfica e económica das ilhas nos últimos séculos, que deveria ter intensificado níveis prévios dos esteróis de forma significativa.
Igualmente, os registos paleopolinológicos – i.e., do pólen antigo nos sedimentos dos lagos – encontrados são tudo menos conclusivos e os dados relativos ao carvão e aos hidrocarbonetos aromáticos policíclicos – cuja evolução temporal e falta de correlação com o desenvolvimento do arquipélago não difere muito da dos esteróis – não inspiram confiança relativamente à sua causa humana. Podem existir explicações naturais bem mais simples para o fenómeno. Isto por uma razão simples: não são conhecidos nenhuns indícios arqueológicos, apesar de muitas campanhas feitas nas várias ilhas, que possam secundar a hipótese. Se tal depósito multissecular de fezes correspondesse a excrementos humanos ou de ruminantes e o carvão fosse resultado de actividade humana, onde estão os vestígios nas camadas estratigráficas destas ilhas? Por que será que as fontes tardo-medievais relatam ilhas desertas de população humana quando os portugueses chegaram lá entre 1427 e 1452? Citar estudos enviesados e já desmistificados com ratos importados muito mais tarde não conta, e muito menos conta a falsa arqueologia dos supostos “restos fenícios” e afins que foram falsificados ou que correspondem a estruturas agrícolas ou pecuárias dos períodos moderno e contemporâneo.
UMA SÉRIE DE PERGUNTAS
Tendo isto dito, há uma série de perguntas por responder. Como pôde um estudo tão ferido de problemas científicos ser aprovado em “peer review”? Será que todos os seus colaboradores do Raposeiro realmente escreveram e/ou contribuíram ou meramente assinaram de cruz? Aqui ficam perguntas muito embaraçosas para a equipa, para o PNAS – uma revista que cobra para publicar – e para uma série de instituições como as Universidades de Évora, Lisboa, a Federal do Rio de Janeiro, a de Vigo ou a de Barcelona – que não só tiveram investigadores envolvidos, como ainda publicitaram o falso estudo como legítimo nos seus “websites” ou páginas institucionais nas redes sociais.
Os autores dizem querer fomentar o diálogo interdisciplinar, mas não são capazes de citar uma única fonte primária ou secundária válida e actual por um historiador profissional. Da equipa multidisciplinar, não consta nenhum arqueólogo ou historiador e os autores não citam nenhuma obra historiográfica séria. Ou seja, estamos perante uma grave insuficiência da equipa de investigadores que deveria ter levado a FCT a chumbar o projecto se fosse avaliado num concurso minimamente decente. Por mais importante que seja a interdisciplinaridade, esta não deve servir como senha para excluir os profissionais da História que devem estar no centro de tais estudos, a coordenar os vários saberes científicos.
Por tudo o que foi elencado acima, não podemos acompanhar a moda açoriana de encontrar antecedentes anteriores ao século XV em que este estudo se insere, que no fundo – consciente ou inconscientemente – faz parte de uma tentativa de construção de memória (pseudo-)histórica local. Bem gostaríamos aqui na página de poder abordar a Lenda das Sete Cidades, a fraude do Corvo ou este estudo como se fossem verdadeiros, mas não podemos. O registo histórico e as evidências científicas não nos permitem estes saltos de imaginação, por mais que seja a nossa tentação: o nosso dever principal é para com os factos. Por isso, temos de concluir que não há provas de que os navegadores nórdicos alto-medievais alguma vez tenham chegado tão longe.
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BIBLIOGRAFIA
Artigo científico escrutinado na segunda parte do texto:
Raposeiro, P. M., Hernández, A., Pla-Rabes, S., Gonçalves, V., Bao, R., Sáez, A., Shanahan, T., Benavente, M., Boer, E. J. de, Richter, N., Gordon, V., Marques, H., Sousa, P. M., Souto, M., Matias, M. G., Aguiar, N., Pereira, C., Ritter, C., Rubio, M. J., … Giralt, S. (2021, October 12). Climate change facilitated the early colonization of the Azores archipelago during medieval times. PNAS. Retrieved November 5, 2021, from https://www.pnas.org/content/118/41/e2108236118.
Artigos científicos sobre a questão dos esteróis:
Hargan, K. E., Stewart, E. M., Michelutti, N., Grooms, C., Kimpe, L. E., Mallory, M. L., … & Blais, J. M. (2018). Sterols and stanols as novel tracers of waterbird population dynamics in freshwater ponds.
Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 285(1877), 20180631.
Leeming, R., Ball, A., Ashbolt, N., & Nichols, P. (1996). “Using faecal sterols from humans and animals to distinguish faecal pollution in receiving waters”. Water Research, 30(12), 2893–2900.
Prost K, Birk JJ, Lehndorff E, Gerlach R, Amelung W (2017). “Steroid Biomarkers Revisited –Improved Source Identification of Faecal Remains” in “Archaeological Soil Material”. PLoS ONE 12(1): e0164882. doi:10.1371/journal.pone.0164882
Selecção breve de bibliografia histórica séria sobre a expansão marítima portuguesa e a colonização dos Açores:
Albuquerque, Luís; Contente, Francisco Domingues (Coords.) (1994). “Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses”. Lisboa, Círculo de Leitores / Caminho, págs. 12-13.
Bettencourt, Francisco; Kirti, Chauduri (Coords.) (1997). “História da Expansão Portuguesa”, vol. I. Círculo de Leitores, Lisboa.
Carita, Rui (2008). “O descobrimento dos Açores”. In Matos, Artur Teodoro de; Meneses, Avelino de Freitas de; Leite, José Gulherme Reis (Coords.), “História dos Açores. Do Descobrimento ao século XIX”. Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo, págs. 49-61.
Coelho, Maria Helena da Cruz (1996). O Portugal quatrocentista – um reino de onde partiram povoadores para os Açores”. In “Revista Portuguesa de História”, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Instituto de História Económica e Social, t. XXXI, Vol. I., págs. 99-130.
Domingues, Francisco Contente (2016). “Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600”, vol. I. “De A a H”. Círculo de Leitores, Lisboa, pág. 21.
Costa, João Paulo Oliveira e (Coord.) (2014). “História da Expansão e do Império Português”. A Esfera dos Livros, Lisboa.
Peres, Damião (1983). “História dos Descobrimentos Portugueses”. Vertente Editora, Porto, 3ª edição, págs. 61-71.
Serrão, Joel; Marques, A. H. de Oliveira (Coords.) (1998). “Nova História da Expansão Portuguesa”, vol. II, “A Expansão Quatrocentista”. Editorial Presença, Lisboa.
WEBGRAFIA
Ligações para notícias de imprensa e comunicados/partilhas de Universidades a veicular a fraude:
– Observador: https://observador.pt/…/afinal-os-vikings-poderao-ter…/
– Jornal de Notícias: https://www.jn.pt/…/detetada-presenca-humana-nos-acores…
– SIC Notícias: https://sicnoticias.pt/…/2021-10-06-Detetada-presenca…
Página da FCT com informação sobre o financiamento do projecto: https://www.fct.pt/…/consulta/vglobal_projecto.phtml.en…
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~ José
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