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CRÓNICA QUE ME ENVIOU LÍDIA JORGE
na qual podemos ver como as justíssimas palavras de uma escritora de primeira água fazem toda a diferença no campo da intervenção cívica. Obrigada, querida amiga Lídia.
O CÉU CAIRÁ SOBRE NÓS
1. No início deste século, quando os soldados americanos iniciavam a auscultação das montanhas para tentarem perceber em que caverna se escondia Ossama Bin Laden, e o mundo tinha acesso às imagens dos trilhos por onde caminhavam os burros carregados de papoila, chegou-me às mãos a tradução da autoria de Manuel João Magalhães de uma canção afegã. A ter sido respeitada a dimensão e o ritmo dos versos, por certo que se deveria tratar de uma bela balada. Não imagino o som da música, mas a letra dizia assim – “O céu cairá sobre nós/e ainda assim estarei por cá para vos amedrontar./ As nossas barbas deixarão de ser grisalhas/ e os nossos ossos regressarão à terra que os deu a nascer/ mas ainda assim cá estarei para vos atrapalhar./ Há muito que este solo sagrado deixou de ser fértil./ E as nossas mulheres são feias: / Porque quereis então este território?
2. Também não conheço em que ano surgiu esse canto, mas o que se depreende é que ele fala de invasões, e sem invocar factos, ficam no ar incursões desde Alexandre o Grande às ocupações por parte dos impérios britânico, soviético e americano. Logo a pergunta é justa – Porque quereis esta terra infértil? A resposta é simples – Porque ela ocupa um lugar estratégico, uma encruzilhada íngreme por onde outrora passava a rota da seda. Mas a todos os invasores, a canção dirige uma promessa – Aqui estamos nós, vigilantes, mesmo depois de mortos, para vos atrapalhar.
3. Trata-se de uma canção de resistência, a expressão do estoicismo de um povo, feito de muitas etnias em guerra entre si, mas com um denominador comum – Unidos contra os que vêm de fora. Contudo, a letra romântica da canção tem uma fenda por onde a formiga vai entrar – É que as nossas mulheres são feias. Os nossos olhos detêm-se nesta insólita afirmação. Talvez os cavalos e os galgos afegãos sejam belos, as montanhas, os ocasos e os campos de papoila, também, mas as mulheres são apelidadas de feias e essa declaração entra numa canção. Choca e ilustra. Esclarece e ensina. Lembro-me de ter visto a reportagem de uma jornalista britânica que perguntava a um ancião porque razão escondiam eles as mulheres debaixo da burqa. O homem retirou da algibeira do seu gibão duas notas, uma de cinco mil afeganis, outra de dez mil e disse que as mulheres deles não eram como as ocidentais que só valiam a nota pequena, as deles valiam muito mais, por isso as escondiam. É possível que a letra da canção signifique isso mesmo, que ao referir que as suas mulheres são feias, o poeta que a escreveu tivesse querido esconder as belas mulheres afegãs no fundo da sua algibeira. Mas é duvidoso. Trata-se de uma cultura entranhada. A própria linguagem comum denuncia o contrário. Um jovem afegão, perante uma atentado bombista que levou pelas ares dezenas de pessoas, ao indignar-se perante os autores do crime gritava – Cobardes, cobardes! Mulheres, suas mulheres!. Não parecia ser um talibã, era alguém do lado contrário.
4. Mas agora os talibãs voltaram ao poder. Desde 15 de Agosto que se sentaram em Cabul, incitados pela retirada americana e seus aliados. O mundo ficou pasmado. Em 1998, os talibãs queimaram uma biblioteca preciosa de 55. 000 livros a poder de lança granadas. Em Março de 2001, destruíram os Budas de Bamiyan com dinamite e disparos de tanque. Agora, já com telemóvel e assessores de imagem, prometeram paz, que irão deixar educar as raparigas e irão permitir que as mulheres trabalhem. Fazem bem as mulheres em não acreditar. Em certas circunstâncias, as canções do passado falam mais alto do que os discursos do futuro. Entre 1996 e 2001, a sua Sharia deu para cobrir as mulheres da cabeça aos pés, mesmo à vergastada, as mulheres afegãs sofreram abusos de toda a natureza como nunca antes. Ficou reduzida a cinza qualquer veleidade de emancipação, instrução, independência, afirmação, identidade. Foram proibidas de rir em púbico. Intensificaram-se os chamados crimes de honra, os testes de virgindade, e tudo o mais que nos faz chorar.
5. Por isso o incitamento de Varoufakis para que resistam as irmãs afegãs resultará inútil e até perverso, se as organizações dos Direitos Humanos não mostrarem uma força e uma união que vá para além do som das palavras. Se a ONU não for capaz de influenciar acções concretas de salvação das mulheres e dos homens afegãos que entretanto acreditaram que o Ocidente os ajudaria a sair da barbárie. Se nos dias que passam, o mundo, que olha para esta situação sem controlo, em vez de gastar todas as munições no ajuste de contas sobre a perda clamorosa de uma causa, não se debruçar sobre a forma de transformar esta catástrofe moral do Ocidente numa lição de procedimento, e no acolhimento efectivo dos que se quiserem salvar do atoleiro que lá se prepara. A Terra, agora, é mesmo só uma. Nunca o longínquo esteve tão perto. Se o céu cair sobre elas e eles, também cairá sobre nós.
LJ.
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- ActiveTeresa Martins MarquesE, como vêem, valeu a pena o apelo que há dias fiz aos escritores, no sentido da intervenção cívica.
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- Edite