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CRÓNICA AOS SALTINHOS
1 – Saltos Olímpicos
Já escrevi tantas vezes sobre os Jogos Olímpicos que, quem se atreve a ler as minhas crónicas, já sabe que eu sou um maluquinho por estas coisas. Como não posso lá estar, enfio-me em frente à televisão horas seguidas. Resmungo quando interrompem para os anúncios comerciais e refilo quando transmitem algum evento dos que me interessam menos.
Este quarto onde vos escrevo, a que a minha neta chama avô‘s office, está equipado com um sofá-cama (para quando vários netos passam cá a noite), uma secretária com o computador e uma estante cheia dos livros da Alice, mas com espaço para uma televisão. Contudo, a peça principal do mobiliário é a cadeira rotativa onde me sento. É verdade, a cadeira permite-me assistir aos Jogos em conforto e facilita-me o vaivém de e para a secretária, onde preencho os intervalos com olhadelas ao Facebook ou com a leitura ou escritura de mensagens. O termo moderno multitasking aplica-se muito bem aqui, é um tal fazer várias coisas ao mesmo tempo.
ÁH!, mas há um outro instrumento muito importante, no centro destas manobras todas. Pequeno, mas eficiente, o comando da televisão ou controle remoto, como lhe queiram chamar, pena os olhos da cara na minha mão. Clique aqui, muda para ali, o desgraçado tem tido uma vida estafada nesta última semana. E ainda restam mais uns dias desta loucura para sofrer. A NBC, que detém o contrato para transmitir os Jogos nos Estados Unidos, está a fazê-lo, ao mesmo tempo, em pelo menos três canais. Os meus dedos, principalmente o polegar, já sabem o movimento de cor, saltam do 703 para o 720 e dele para o 724. Não perco tempo com os comerciais, mudo de um para outro de modo a não perder um segundo de ação, utilizando ao máximo até o botãozinho do “last”, que me permite voltar ao canal anterior.
Não, não sou assim tão fanático como pareço pela descrição que fiz acima. Gosto muito de desporto, mas não engulo o programa inteiro dos Jogos Olímpicos. Há especialidades que não me entusiasmam nada, como, por exemplo, a esgrima, de que nem entendo as regras; outras, como o hipismo, dispenso bem porque acho que deveriam pôr medalhas também no pescoço dos cavalos; mas há umas que tento não perder, como o andebol de sete, que é um desporto que gosto muito, mas não vejo senão nos Olímpicos, porque, aqui nos EUA, é pouco praticado, não tem visibilidade nacional. As modalidades do atletismo são as minhas preferidas, só as perco porque… a diferença horária (16 horas) é muito grande. Só se ficasse acordado toda a noite para poder assistir a tudo em direto e isso é coisa que não faço, gosto muito dos Jogos, mas gosto mais de dormir.
Vamos, agora, esperar outros três anos, a ver se os Jogos de Paris se realizam a tempo e horas e se não há vírus para incomodar. Foi pena, de facto, não permitirem espetadores nas bancadas dos estádios e das arenas, o povo japonês fez um grande trabalho de organização e os recintos eram muito bonitos, modernos e funcionais. Teriam ficado ainda mais bonitos com a moldura humana. Cá estarei, em 2024, a rodopiar na minha cadeira rotativa e a criar calos nos dedos, a premir botões do comando.
2 – Quando há fome, não se pode saltar
É um tópico muito delicado para trazer a estas crónicas. Não que eu me dedique apenas a assuntos leves ou de agradável leitura, lá de vez em quando tento encher umas linhas com algo que pode ser mais pesadinho e menos galhofeiro. Explico o que me fez trazer isto a terreiro.
Na edição da revista National Geographic para o mês de Agosto, há uma reportagem que mexeu comigo. Intitula-se America‘s Hunger Crisis, uma viagem pelos labirintos do problema da fome nos Estados Unidos. Os responsáveis por este magnifico (mas triste) trabalho até nem falam muito em fome, expressam-se mais com o termo insegurança alimentar, estudam e descrevem-nos a realidade que atinge milhares de famílias americanas. Notam que um em cada oito americanos – mais de 42 milhões de pessoas – são atingidos por esta insuficiência e se pensarmos que 13 milhões de crianças estão incluídos nestas contas, então ainda ficamos mais chocados. Pelo menos eu fiquei.
A situação criada pela epidemia de Covid19 agravou ainda mais o problema. Com o desemprego que originou, milhares de pessoas passaram a depender dos Bancos Alimentares e de organizações de assistência social para assim poderem ter comida nas suas mesas. Há grupos ativos que até pretendem alertar para que se evitem os desperdícios, conseguem reunir toneladas de alimentos que depois distribuem pelos necessitados. Vejo isso mesmo aqui perto de mim, o pequeno Food Bank da Salt Mine, de Lincoln, serve e ajuda centenas de pessoas, tudo com comida doada pelos grandes supermercados. Lá está o meu amigo faialense Renato Silva, garboso voluntário que todas as semanas dedica aos outros muitas horas do seu tempo. Se fosse para descrever aqui as coisas que ele já me contou, esta crónica ocupava o jornal inteiro.
Eu nunca passei fome. Não éramos ricos, mas, graças ao árduo trabalho dos meus pais, nunca fui para a cama de barriga vazia. Alturas houve em que não comi bem, por exemplo quando estudava em Lisboa e o dinheiro não dava para tudo ou quando estive na tropa e a comida do rancho, às vezes, nem para porcos servia. Compensava-se um jantar menos bom com outro melhorzinho, no dia seguinte. Portanto, não posso avaliar o que sente quem passa fome dias a fio. Mas marcou-me muito uma das últimas conversas que tive com pessoa muito querida, quando tentávamos animá-lo e incentivá-lo a comer melhor, já que era evidente a acentuada degradação física provocada pela maldita doença que o minou. “Sabes, João, eu queria era sentir fome”, disse-me, num suave murmúrio. “Eu queria antes estar a passar fome em vez de não sentir vontade ou apetite para comer”. Só quem passa pelas coisas é que lhes dá o valor.
3 – O trampolim
Esta malvada epidemia salta mais do que a nossa Patrícia Mamona ou o Pedro Pichardo, os novos heróis do atletismo português. Mas, de saltos atléticos já falei acima. E de epidemias, de máscaras, de vacinas e de variantes virais já está toda a gente a ficar farta. Contudo, nunca é demais acentuar que este vírus não nos dá tréguas, muito menos se andamos cada um a puxar para o seu lado, sem armarmos uma defesa concertada e baseada em factos científicos. Já tivemos tempo bastante para isso, mas, pelo contrário, parece que estamos a brincar aos saltos num trampolim, com estatísticas a descerem numa semana e a subirem na seguinte, com teorias às cambalhotas e malabarismos de certos governadores estatais que são de arrepiar os cabelos.
Já vos disse que nunca deixei de usar máscara, seja no trabalho, seja quando vou ao mercado ou qualquer outro lugar público. Mesmo quando a minha companhia levantou a obrigação de usarmos proteção facial, eu continuei a fazer como dantes; agora, voltam a impor o uso da máscara. Oxalá também obrigassem os empregados a vacinarem-se. Se não te queres vacinar, então não podes trabalhar aqui. Sei que seria uma decisão extrema, mas na minha opinião, necessária. Vamos a ver se, com as alarmantes notícias dos avanços da “Delta”, muitos mais americanos se convencem que é, de facto, a melhor coisa a fazer, para proteção de cada um e de todos.
E pronto, vou dar mais uma voltinha na minha cadeira e virar-me para a televisão, andam ali umas meninas aos saltos. Gosto muito destes Jogos, mas bem bom que estão a chegar ao fim, para ver se me concentro a fazer outras coisas.
Cuidem-se! Vacinem-se! Mascarem-se!
Lincoln, Califórnia, Agosto 4, 2021
João Bendito