MIA COUTO

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Meus amigos
Eu disse que estávamos em guerra connosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A violência daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin Luther King disse “O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons”.
A lista das nossas guerras domésticas estende-se por mais domínios. Os exemplos que escolhi ilustram o facto de que não somos a sociedade pacificada que pretendíamos ser. Há um percurso enorme a percorrer e esse caminho é sobretudo uma viagem interior. Essa viagem só acontecerá se vocês souberem ver, souberem não aceitar. Tudo o que aqui disse pode ser resumido em dois textos pequenos de autores alemães. Peço-vos que escutem. O primeiro é uma parábola e diz o seguinte:
“Um dia, vieram e levaram o meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e levaram-me mim. Nessa altura, já não havia mais ninguém para reclamar.”
O segundo texto é um apelo na forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt Brecht:
“Nós pedimos-vos com insistência:
Nunca digam – Isso é natural.
Diante das barbaridades de cada dia,
Numa época em que corre sangue
Num tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,
Num momento em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
Se aceitamos as coisas como naturais
este nosso mundo torna-se imutável.
Caros amigos
O nosso tempo também está em guerra contra os jovens. À nossa frente, e não falo apenas de Moçambique, se anunciam tempos difíceis. À nossa frente está um futuro magro em que parece que apenas alguns podem caber. O que nos sugerem é que briguemos uns com outros para ver quem cabe nessa estreita porta. Mas talvez seja possível criar um outro futuro mais amplo.
Vão ser assediados. Por forças políticas que estão mais preocupadas com o Poder do que com a resolução efectiva dos problemas. Por forças que se lembram dos jovens quando se trata de colher votos. Por forças que falam aos jovens, não falam com os jovens.
Vocês são jovens. Ser jovens é uma condição inerente, que se exerce sem esforço. Mais do que jovens, sejam diferentes. Tragam para o nosso tempo o inesperado, o que é novo, o que é historicamente produtivo.
Uma nova classe está povoando o poder político em Moçambique. São os papagaios. Reproduzem o discurso dos chefes. A maior parte deles são jovens. Mas são jovens de alma envelhecida. Os papagaios podem pensar que o seu futuro está assegurado porque olham o país como se fosse um aviário. Mas o nosso futuro como nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito pelos outros.
Ficamos muitas vezes à espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa. Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta orçamento, falta autorização do chefe. Mas existem lições que parecendo pequenas podem tocar alguém para toda a vida.
O professor primário que leu uma redacção sobre as mãos calejadas de sua mãe não imaginava que estaria marcando para sempre um aluno seu. O poeta William Henley não poderia imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade de lutar de um africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.
Fazemos o que fazemos não porque sejam grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.
Mia Couto