conversas pandémicas Mario Freitas Médico consultor (graduado) em Saúde Pública e Delegado de Saúde (Diário dos Açores de 04/12/2020)

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Conversas pandémicas XXXIV – Cordões sanitários cirúrgicos como medida de Saúde Pública
1. O artigo desta semana: Cargas virais mais altas em pacientes assintomáticos com COVID-19 podem ser a parte invisível do iceberg.
Hasanoglu, I., Korukluoglu, G., Asilturk, D. et al. no seu artigo “Higher viral loads in asymptomatic COVID-19 patients might be the invisible part of the iceberg.”, [Infection (2020), https://doi.org/10.1007/s15010-020-01548-8], demonstram que pacientes assintomáticos têm cargas virais de SARS-CoV-2 maiores do que pacientes sintomáticos e, ao contrário de outros poucos estudos na literatura, uma diminuição significativa da carga viral foi observada com o aumento da gravidade da doença. Factores associados a mau prognóstico, como baixa contagem de linfócitos, opacidade em vidro fosco bilateral na TC de tórax e idade avançada, estão significativamente correlacionados com baixa carga viral de SARS-CoV-2.
A COVID-19 é um quebra-cabeças complicado, com peças de várias cores e formas. Mais estudos virológicos e imunológicos são necessários.
2. Algumas frases que ainda lemos, e ouvimos. Em jeito de negacionismo.
2.1. “É apenas uma Gripe…”
Observando a mortalidade, estratificada para a idade, associada à infecção COVID-19 versus a da gripe sazonal, a covid19 é significativamente mais letal do que a gripe, em todas as idades acima dos 30 anos: 2,9 mais, aos 30 anos; 5,0 mais, aos 40 anos; 8,6 mais, aos 50 anos; 13,6 mais, aos 60 anos; 14,4 mais, aos 70 anos.
2.2. “A Suécia conseguiu…”
Não, a Suécia tem o maior número de mortes acumuladas, per capita (uma variável particularmente importante, para avaliação) de todos os países nórdicos. Cerca de 5 a 10 vezes maior. Finlândia, Noruega ou Dinamarca foram bem-sucedidos. A Suécia falhou.
2.3. “Os bloqueios não funcionam…”
Além de muitos artigos provando o contrário (https://www.nature.com/articles/s41586-020-2404-8, https://www.nature.com/articles/s41586-020-2405-7, https://science.sciencemag.org/content/369/6500/eabb9789, https://www.thelancet.com/…/PIIS0140-6736(20…/fulltext, https://www.medrxiv.org/con…/10.1101/2020.05.07.20092353v1, https://arxiv.org/abs/2004.06098, https://www.nber.org/papers/w27091, https://www.nber.org/papers/w26906), as respostas pandémicas – bloqueios, distanciamento social, uso de máscaras, etc. – têm sido tão eficazes na redução da propagação de doenças que a actividade da gripe permanece baixa, em ambos os hemisférios. O mapa da OMS, para a atividade da gripe, está em branco (https://www.who.int/…/2020_09_14_surveillance_update…)
3. Os cordões sanitários como medida de Saúde Pública.
Já aqui falei na epidemia de peste bubónica no Porto (1899), diagnosticada por Ricardo Jorge, na altura médico municipal, autoridade de saúde à época. Em 24.08.1899 foi estabelecido um cordão sanitário à volta do Porto, com as autoridades militares, levantado 4 meses depois (22.12.1899). O artigo “As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918”, de Maria Antónia Pires de Almeida (publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 21, núm. 2, abril-junio, 2014, pp. 687-708), mostra a forma como os jornais diários transcreveram todo o processo, com o objetivo de alertar os leitores para o perigo real da doença, que não foi bem aceite na cidade.
Ricardo Jorge aplicou medidas vigorosas, pois conhecia bem as condições em que a doença se desenvolvia e os grupos mais afectados: “as classes trabalhadoras, miseráveis, ou nos seus hábitos ou na casa em que residem”. Foram postas em prática medidas sanitárias de higiene pessoal (como a construção de balneários públicos) e para combate aos agentes transmissores da doença. A caça aos ratos e aos gatos fez as crianças do Porto e de Lisboa ganharem algum dinheiro: por cada rato grande entregue numa esquadra de polícia recebiam 20 réis, por cada pequeno, 10. Ao mesmo tempo suprimiram-se os comboios de recreio, as “feiras, romarias e outros ajuntamentos”, e obrigaram-se à inspeção médica todos os passageiros e empregados dos comboios, que tinham de cumprir uma quarentena de 9 dias.
Apostando na prevenção da disseminação da doença, isolando os doentes e a própria cidade, Ricardo Jorge limitou os focos de infeção. De facto, as medidas radicais postas em prática por Ricardo Jorge limitaram o contágio da doença, logo nos primeiros dias, o que contribuiu para as afirmações locais de que não se tratava de uma epidemia e que em Lisboa as autoridades centrais exageravam no que dizia respeito a esse tema.
As medidas de Saúde Pública foram motivo de grande revolta popular, com cenas de autêntica guerra civil. O presidente da câmara do Porto apresentou a sua demissão, como protesto contra o cordão sanitário, que dizia ser uma ingerência do governo central de Lisboa nos negócios da cidade. Ricardo Jorge acaba por se demitir e pede transferência para Lisboa, depois de enviar ofícios ao governador civil e à Câmara Municipal, nos quais mostra “a impossibilidade que tem em continuar, pela parte que lhe diz respeito, no combate da doença reinante, atento o desvairamento da opinião pública e da falta de concurso que todas as classes dirigentes do Porto precisam de prestar para que se estabeleça a situação sanitária da cidade”. Ricardo Jorge continua a sua carreira em Lisboa, como Inspetor-geral dos Serviços Sanitários do Reino. Trabalha na organização dos Serviços de Saúde Pública e no Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, que resulta (1901) na criação da Direção-Geral de Saúde e Beneficência Pública e do Instituto Central de Higiene, que em 1929 muda o nome para Instituto Ricardo Jorge.
Uma inovação importante desse período é uma máscara profilática facial, inventada pelo Dr. Afonso de Lemos, para ser usada por médicos e enfermeiros na observação e tratamento dos doentes de peste. As máscaras faciais foram mais tarde popularizadas, em 1918, durante a epidemia de gripe.
Mario Freitas
Médico consultor (graduado) em Saúde Pública e Delegado de Saúde
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  • No futuro, nos picos da gripe sazonal, não será benéfico, como medida preventiva, o uso de máscara em locais fechados com muita gente? Será que o uso de máscara não ficará na cultura ocidental, depois da pandemia e em certas circunstâncias?
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