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Parece – ou quer-se fazer parecer – que o «Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas», sediado no edifício recuperado (ou melhor, feito praticamente de novo) da antiga Fábrica de Álcool da Ribeira Grande, é uma coisa nova. Sê-lo-á, talvez, pelo espírito grandiloquente e vazio que presidiu à sua forma actual. Porém não o será, se tivermos em conta uma história que (vá lá saber-se porquê) alguém tenciona apagar mas que está na hora de recordar – ao arrepio da história oficial açoriana que tão bem segue o guião estalinista de ir apagando das fotografias oficiais as personalidades que vão deixando de interessar.
Pois bem: tudo começou em 1997, na sequência da morte de Dórdio Guimarães, viúvo de Natália Correia. E era eu, pese embora a quem desagrade, Director Regional da Cultura.
Após um processo judicial complicado, levado a bom porto pelo Dr. Álvaro Monjardino, a quem eu pedi que se encarregasse do assunto em nome da Região, a maior e mais interessante parte da herança jacente de Natália Correia e Dórdio Guimarães veio para os Açores. Dessa herança fazia parte uma preciosa pinacoteca (colecção de arte) – tão boa e tão completa que, antes de ser encaixotada e enviada para Ponta Delgada, foi exposta em Lisboa, ocupando seis salas do Palácio Galveias. Dessa exposição, feita em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, fez-se um magnífico catálogo que os interessados que o não conhecem poderão consultar nas bibliotecas públicas.
Como não havia então, em São Miguel, nenhum edifício com as condições necessárias para expor a colecção, ficou a mesma, por meu despacho, à guarda da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, até se encontrar um local condigno para a depositar e onde a expor ao público. Mas, antes de se definir esse local, era necessário criar-se um organismo externo, à altura do Museu Carlos Machado mas dele independente, que assumisse, legal e juridicamente, a propriedade e a gestão da colecção, em nome da Região.
Criou-se então, por Decreto Legislativo Regional, o «Centro de Arte Moderna de Ponta Delgada», que teria como núcleo fundador esta mesma colecção de arte. E embora eu tivesse posto como possibilidades de edifícios a adquirir e adaptar (eu sou contra a construção de novos edifícios, havendo disponíveis já existentes) o corpo principal do antigo Hospital de São José, ou então o edifício Nicolau de Sousa Lima, à ilharga do teatro Micaelense, não consegui os apoios políticos e financeiros necessários para adquirir nem um nem outro. O que, francamente, foi pena: se o antigo Hospital, com a sua bela fachada neoclássica e pés-direitos altíssimos, e a sua localização, daria um excelente Centro de Arte Moderna, o outro edifício, de boa arquitectura moderna e com amplos espaços, constituiria uma mais-valia se articulado com o Teatro Micaelense, com o qual tem, de resto, afinidades estilísticas.
Entretanto, em 1999, eu deixei o cargo de Director Regional para assumir o de deputado à Assembleia da República, e deixei – correctamente – de ser ouvido ou achado na matéria. Até porque pensava que um Decreto Legislativo Regional era coisa para ser cumprida. Porém, enganei-me: não o foi.
Anos mais tarde, comecei a ouvir falar no novo projecto para a Ribeira Grande, e que se chamaria «Arquipélago» para poder representar as nove ilhas – o que, sendo uma ideia interessante, não me parecia resolver um problema de fundo: como poderiam as pessoas das outras oito ilhas sentir-se representadas num, e beneficiadas por um, equipamento cultural para cuja visita teriam que pagar viagens de avião e estadias em hotéis? Mas passando por cima disso, recordei aos então responsáveis máximos pela política cultural dos Açores que existia, encaixotadíssima, a colecção de arte de Natália Correia e Dórdio Guimarães, e que se encontrava em vigor o Decreto Legislativo que criara o … Centro de Arte Moderna de Ponta Delgada.
Ao que me foi respondido: nada.
Quando, em 2012, assumi o cargo de Secretário Regional com a tutela da Cultura, o edifício do «Arquipélago» estava em vias de conclusão, mas com graves problemas técnicos, financeiros e de obra por resolver. E não havia qualquer programa ocupacional para a sua utilização, o que colocava outro tipo de problemas: por exemplo, a nível de mobiliário e dos equipamentos necessários para um edifício destinado a ser um Centro de Artes – não se sabendo, no entanto, de que artes se trataria, nem qual o seu regime de funcionamento. Apesar de os sucessivos Directores Regionais terem adquirido, a preços comerciais e sob a curadoria de uma distinta personalidade lisboeta, cujo nome não recordo mas que recebia uma avultada avença mensal para desempenhar a tarefa, uma lista de obras de artes consideradas como «testemunhos da modernidade» e que eu, no entanto, nunca cheguei a ver.
Tinha, portanto, um elefante branco pela frente. Que enfrentei desta maneira:
1. Os problemas técnicos, financeiros e de obra foram resolvidos, e o edifício foi dado por concluído em matéria de construção.
2. Cancelei a avença com o tal curador de aquisição de obras de arte (embora tendo sido necessário pagar-lhe uma indemnização por resolução unilateral de contrato…).
3. E, para o programa ocupacional, entendi que deveria envolver a comunidade artística regional, que em várias áreas conta com personalidades de relevo a nível nacional.
Nesse sentido, foi criado um Conselho de Curadores, ao qual foi pedido que, tendo em conta as características do edifício e o entendimento que tinham do que deveria ser o papel desta estrutura no contexto da política cultural para a Região, apresentassem uma proposta de programa ocupacional e funcional para o «Arquipélago». Deste Conselho constavam personalidades de valor inquestionável, oriundos de áreas como a literatura, as artes plásticas, o cinema e o audiovisual, as artes performativas (teatro e dança), a música (clássica, popular e tradicional), a fotografia, o “design” ou a arquitectura, cujos nomes não cito para não esquecer nenhum, mas que constam de um diploma legal facilmente consultável.
Mas havia algumas ideias de base, que muito acarinhei, e que tinham a ver com o envolvimento da massa crítica artística e técnica regional, bem como da população.
Uma delas era considerar o «Arquipélago» como um centro de artes vivas, que disponibilizaria salas e espaços para serem utilizados por grupos de teatro, grupos musicais, dançarinos e coreógrafos, ranchos folclóricos, filarmónicas, artistas plásticos, arquitectos, etc., que ali poderiam criar, ensaiar, encenar e expor os seus trabalhos. E, em cada uma destas áreas, montar-se escolas de formação para actores, encenadores, músicos, dançarinos, artistas plásticos, e tudo o que se fosse revelando como necessário para a constituição de uma massa crítica e, sobretudo, de um público interessado em actividades e produtos culturais.
Outra, tinha a ver com minudências como, por exemplo, o mobiliário: uma vez definido o programa ocupacional do edifício, e daí definidos os tipos de mobiliário necessários, seria solicitado (por concurso) aos “designers” açorianos que desenhassem as mesas, cadeiras, estantes e todo o tipo de móveis – que depois seriam executados pelos marceneiros de todas as ilhas que tivessem condições para o fazer. Assim se daria trabalho a criadores e a técnicos regionais, que se sentiriam (e às respectivas famílias…) directamente envolvidos no processo.
Estava tudo isto em andamento – pelo menos em conceptualização – quando fui afastado do governo. Não sei quem, nem porquê, nem em nome de quê, decidiu que as coisas não seriam assim, que o «Arquipélago» seria antes uma coisa a modos que um Guggenheim ou um Serralves que supostamente atrairia milhares de turistas a São Miguel (… ugh! …), e que ficaria para ali, como para ali está, dirigido por alguém que alguém achou que – para quem é, bacalhau basta. E, é claro, os artistas, criativos e agentes culturais dos Açores, bem como a generalidade da população, ficaram, literalmente, a ver navios.
Águas passadas, dir-se-á. Águas paradas, vê-se.
E a propósito: onde pára, e em que condições se encontra, a colecção de arte de Natália Correia e Dórdio Guimarães, que tem obras de quase todos os artistas representativos do modernismo português e que tanto trabalho deu para que viesse para os Açores?
E ninguém faz perguntas?