açores covid e o medo dos visitantes

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“Medo do visitante” está a afetar o comportamento dos açorianos

A socióloga Piedade Lalanda afirma que a associação direta entre o surgimento de novos casos de Covid-19 na Região e a chegada de visitantes do exterior está a gerar um sentimento de “medo” que já está a afetar o comportamento das pessoas

Seis meses após o surgimento do primeiro caso positivo de Covid-19 nos Açores, o que mudou no discurso e no comportamento dos insulares?
Para a socióloga Piedade Lalanda, é notória alguma “ansiedade latente”, mas o que mais a preocupa é o sentimento de “medo do visitante” que já está a afetar o comportamento dos açorianos.
“Depois de termos passado a fase da ansiedade inicial com os números diários de Covid-19 e das notícias que eram absorvidas de forma muito intensa devido ao confinamento, e passando também a fase de desconfinamento, agora a associação direta entre o surgimento de novos casos e a vinda de pessoas do exterior está a criar um outro sentimento que é o receio do visitante”, denota.
Piedade Lalanda ressalva que este sentimento, “em parte, até
tem sido alimentado pelos políticos, que apelam a que não se viaje para o exterior, e pela questão dos testes que também tem criado uma certa tensão”.
“Estamos a assistir ao voltar atrás numa prática que se tornou mais regular para os açorianos que é o sair da ilha e ir ao continente. Isto, para o nosso bem-estar e saúde mental, pode ter consequências, porque a nossa história foi marcada pelo isolamento e agora este receio está a afetar-nos profundamente”, alerta.
Segundo a socióloga, os micaelenses, que “já são um bocadinho avessos ao estranho”, estão a ficar “ainda mais reservados sabendo que determinada pessoa veio de fora”. “Já não temos a mesma vontade, o mesmo acolhimento, e isso é mau para nós e potencialmente para o turismo que vamos ter na fase pós-Covid. Como é que as pessoas vão lidar com o visitante?”, questiona.
Relativamente às relações pessoais entre família, amigos e comunidade, Piedade Lalanda afirma que as restrições existentes ao convívio estão a deixar marcas.
“Antropologicamente, a festa tem para as comunidades uma função compensatória do desgaste anual, isto é, na festa as pessoas libertam-se, vestem-se melhor, limpam as suas casas, colocam colchas nas janelas… Portanto, há uma dimensão cultural e de ritual que vai muito para além do patrono da paróquia ou do arraial”, realça.
Nesse sentido, a não realização de todo o tipo de festas durante este verão, quer sejam religiosas ou festivais, “está a ter um impacto na saúde mental das comunidades”.
Por outro lado, a socióloga destaca que, “principalmente quem esteve fechado durante meses, quando tem a oportunidade de estar com os outros, se calhar vai um pouco além do que seria recomendável nos comportamentos e no número de pessoas”. Contudo, considera que, “ao mesmo tempo, se gera um sentimento de culpa, de quase clandestinidade, ou seja, uma tensão enorme que não é o que a festa deveria proporcionar e penso que isso nos prejudica e que também irá ter repercussões”, acrescenta.
No que ao dia-a-dia dos açorianos diz respeito, Piedade Lalanda destaca que o uso de máscara e a desinfeção das mãos passaram a fazer parte da “nossa relação com o espaço público e com os espaços de consumo”, de uma forma “muito mais visível até que o distanciamento físico”, realça.
“A máscara passou a ser um objeto que faz parte do nosso quotidiano, tal como um relógio que se coloca no pulso e isso foi uma grande mudança”, frisa a socióloga, acrescentando que chega até a ser um pouco “caricato” que, quando a máscara não está no rosto, “está em lugares muito pouco adequados como no cotovelo, no queixo ou na testa”.
Mas esta não é a única observação que Piedade Lalanda retrata relativamente às máscaras. Os locais onde as pessoas pousam estes objetos, principalmente nos carros, também lhe desperta algum espanto.
“Há um hábito na nossa terra de as pessoas utilizarem nos carros, principalmente nos espelhos retrovisores, algum tipo de proteção. E no outro dia, vi um carro com um terço, uma bandeira do Espírito Santo e uma máscara pendurados. Acho este fenómeno engraçado, porque parece que a máscara fica associada a outros objetos de proteção da família, do condutor, do carro ou do que quer que seja”, conta.
“Acho que as pessoas estão a usar a máscara nesse sentido, têm medo do mal que vem de fora, o que acaba por ser aquela ideia de usar um amuleto para proteção do mau-olhado, sendo que neste caso é para proteção da Covid-19”, conclui.

CAROLINA MOREIRA
carolinamoreira@acorianooriental.pt

(Açoriano Oriental de 15/09/2020 – foto: Eduardo Resendes)

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