Views: 0
O QUE IMPORTA
Confesso que ao princípio me senti atraído pela discussão pública levantada pelo pai de Famalicão e a sua “objecção de consciência” em não permitir que os filhos frequentassem a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento.
Não obstante achar chocante que um pai, actuando em nome da sua invocada consciência, fizesse pagar o preço aos filhos, optando por os fazer chumbar de ano, pareceu-me estar ali uma verdadeira questão de separação de águas ideológicas — das que vale a pena ter, e são tão raras neste tempo do extremismo e da alarvidade instantânea servida nas redes sociais.
E, no meu entusiasmo, até me cheirou que pudéssemos estar perante uma manifestação de insuportável doutrinação ideológica do Estado sobre os alunos.
Que ingenuidade a minha!
Comecei a perceber do que verdadeiramente se tratava quando li a lista dos 85 cavaleiros da liberdade individual contra o abuso estatal das criancinhas: estava ali uma exemplar representação da direita católica reaccionária no seu melhor ou no seu pior, com a inexplicável intromissão do Sérgio Sousa Pinto.
Mas, embora o hábito vista tantas vezes o monge, isso, honestamente, não chegava.
Havia que ver de que se queixavam eles, em concreto.
Fui então consultar as 16 matérias que integram a agora famosa disciplina de Educação para a Cidadania.
E, pois bem: não só todas elas são absolutamente consensuais entre gente civilizada, como todas são altamente recomendáveis dentro do sistema de ensino, no mundo que temos hoje, na juventude entregue a si mesma que temos hoje e na confusão induzida de valores que temos hoje.
Mais: é preciso ser-se desonesto intelectualmente, ser-se assumidamente hipócrita ou não ter uma genuína cultura de valores democráticos (como alguns dos 85) para conseguir sustentar que os alunos são prejudicados na sua educação ou violentados na sua liberdade por abordarem aquelas matérias.
Porque não são capazes de o dizer, os 85 agarram-se a uma única das 16 matérias em questão: a educação sexual.
Ó santa paciência, estamos em pleno século XXI e aquelas cabeças agem como se estivéssemos num Estado islâmico ou no saudoso Portugal de há cem anos!
Eles acham que os seus filhos não sabem que existem gays e lésbicas, que não têm de saber que existem métodos contraceptivos, que há diferenças entre homens e mulheres, mas também há direito à igualdade, que há relações amorosas diversas e famílias disfuncionais que são tão dignas de respeito como as convencionais, e todo um mar de coisas misteriosas naquelas idades que os jovens querem saber e estes zelosos pais jamais lhes explicam porque acham que é tudo “pecado”.
E até o cardeal-patriarca, que representa a Igreja Católica portuguesa, misteriosamente poupada ao escândalo universal da pedofilia na Igreja Católica, se arrola com os demais 84, como se a Igreja, aqui ou em qualquer outro lugar do mundo, tivesse hoje qualquer autoridade moral no assunto.
O que querem estes zelotas da moral — que as crianças ou os jovens aprendam educação sexual, direitos humanos, educação ambiental na escola, em debate uns com os outros e com os professores ou na solidão dos seus quartos, entregues às redes sociais e aos predadores sexuais, políticos, sociais?
Sim, porque aqui a escola faz o que os pais não fazem em casa, por muito que, indignados, venham jurar o contrário.
E os poucos que o fazem, os poucos que se ocupam a sério da educação cívica e cidadã dos filhos, se verdadeiramente o fazem a sério, não têm de ter medo algum daquilo que eles aprendem na escola: podem sempre seguir o que lhes ensinam lá e podem contrariar isso pelo seu exemplo e pelas suas lições.
Se a alternativa for, como alguns defendem, que esta disciplina passe a ser opcional, todos sabemos que o resultado prático é que o grosso dos alunos deixará de a frequentar.
E, então, a educação cidadã, que é a base de uma sociedade saudável, ficará exclusivamente na mão dos pais.
Mas se a alternativa é essa, eu, que tantas vezes critico a escola pública, digo sem hesitar: tenho muito mais medo de uma educação cidadã exclusivamente entregue aos pais do que de uma educação entregue aos pais e à escola.
Miguel Sousa Tavares.
Jornal Expresso, 12 de Setembro de 2020.
