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Não consigo continuar focado em menos de 5 mortes por dia, num país em que morrem em média, por dia: 10 pessoas por complicações de diabetes, 12 por enfarte de miocárdio agudo e rapidamente fatal, 15 por pneumonias não-Covid, 20 por outras doenças respiratórias não-infecciosas, 20 por doença cardíaca isquémica, 30 por outras doenças cardiovasculares, mais outras 30 só por AVCs, e 80 por cancro (e vão subir bastante, todas elas, podem ficar tranquilos quanto a isso). Pedro Girão
Nem consigo comentar…
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UMA BREVE INTERRUPÇÃO DO SILÊNCIO
Passou mais de um mês desde a minha última publicação acerca do Covid. Regresso a esse tema hoje, apenas episodicamente.
Na semana passada, retomando um hábito de longa data, almocei com 3 amigos, todos médicos (ou seja, pessoas como as outras!). Falou-se brevemente desse assunto e, já o sabíamos, nada podia ser mais diferente entre nós: a pandemia acentuou a incrível diversidade do modo pessoal que cada um tem de lidar com as adversidades.
Um dos quatro está a levar uma vida “normal”, pessoal e profissionalmente, cumprindo com rigor mas com algum cepticismo as regras que lhe impõem em cada local, nada menos nem nada mais do que isso; trabalha muito, tem muitas consultas, muito contacto directo com os doentes; almoça fora diariamente, janta várias vezes em restaurantes com a mulher – e contou tudo isto com um tranquilo sorriso nos lábios.
O segundo, o mais idoso dos quatro e o único de nós com patologias, auto-limita a sua actividade o mais possível com medo da infecção, que teme ser-lhe fatal; vê bastantes doentes, porque não pode deixar de o fazer, mas vai desinfectando tudo e mais alguma coisa, com cuidados rigorosos, para lá do recomendado; foi esta a sua primeira refeição em público, e está muito apreensivo quanto ao futuro.
O terceiro vive desde o primeiro dia no pânico inexplicável e quase irracional da doença: deixou de ver doentes presenciais há 4 meses (está em exclusividade, por isso pode adoptar essa posição radical e algo indiferente à sorte dos doentes, que ficam à porta da instituição, retidos pelos enfermeiros ou pelos seguranças), só vê análises e exames por mail, sem qualquer excepção (aliás, apoia-se nas ordens do Ministério para actuar assim); e chega ao ponto de ter tido entretanto um neto que ainda não foi conhecer, por medo de o contagiar.
Por último eu, que fiquei calado e não comentei. Deixei passar a conversa, num silêncio sorridente, e mudei de tema assim que foi possível: para mim, o Covid tornou-se um não-assunto, que me impacienta, do qual não consigo falar sem amargura, porque matou a minha fé na bondade de muita gente que eu prezava. Não consigo continuar focado em menos de 5 mortes por dia, num país em que morrem em média, por dia: 10 pessoas por complicações de diabetes, 12 por enfarte de miocárdio agudo e rapidamente fatal, 15 por pneumonias não-Covid, 20 por outras doenças respiratórias não-infecciosas, 20 por doença cardíaca isquémica, 30 por outras doenças cardiovasculares, mais outras 30 só por AVCs, e 80 por cancro (e vão subir bastante, todas elas, podem ficar tranquilos quanto a isso).
O modo como tanta gente desvaloriza esses números, e ao mesmo tempo valoriza o Covid, radica numa enorme susceptibilidade à manipulação de massas e numa falta de inteligência emocional, uma ausência de amor ao próximo que me entristece e repugna. O modo como vejo muitos médicos (não) actuar e (não) tratar os doentes é revoltante e é a negação dos princípios mais básicos que prometeram seguir. Mas sei que dizer tudo isto é inútil e desnecessário. Todas as palavras acerca do Covid são inúteis e desnecessárias, porque cada um constrói a sua própria verdade e desenha o seu próprio rumo, o seu próprio Norte, ou o seu próprio desnorte.
Eu estou totalmente submerso pela retoma da actividade não-urgente, que é importante e essencial para as pessoas: o mês de Junho bateu o meu recorde do número de anestesias efectuadas – e Julho vai seguramente ultrapassá-lo. Quase nem tenho tido tempo livre: tenho trabalhado muito, com empenho e com gosto. E vou anestesiando doentes que me chegam de todo o lado, até do Algarve, enviados de lá para instituições privadas do Minho por hospitais públicos que estão semi-paralisados. (Admirável SNS que tais funcionários públicos tem.) Espero que percebam a realidade – mas é um esperar sem qualquer esperança.
E assim quebrei o silêncio. Prometo não voltar a pecar. 😉