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O Adroaldo, o Sr. Adroaldo
13 de abril de 2020, ano do vírus apelidado de 19 – COVID
Inicia-se mais uma semana, último dia de proibição das transumâncias entre concelhos.
Está sol.
Um nervoso miudinho vai tomando conta da minha carola. Sem perspetivas, sem tempo e sem luz ao fundo do túnel.
Tinha organizado as minhas férias para finalmente cumprir um desejo sempre adiado.
Fazer-me convidado dos pastores da minha terra. Levantar às 4 da matina para deitar o gado pela fresca. Caminharmos ainda no escuro, orientar-nos pelo rasto das ovelhas e pelo latido dos cães de guarda. Ao longe, depois de subida a ladeira, o dia começaria a nascer, os raios solares encheriam de vermelho alaranjado o tapete por onde os rastos deixados pelos aviões deslizariam lentamente marcando sulcos a mais de 10 000 metros de altitude.
Espero um dia conseguir concretizar este meu desejo de ser pastor por uns dias. Dirão os que me conhecem, que tudo isto será uma maneira de me abanquetar com as merendas. Talvez de tudo um pouco.
Nestes dias, continuamos a nossa sina de humanos galvanizados pelo imediato, esperando pelo momento de voltarmos a atacar a voracidade da vida.
O Papa, pede o fim das guerras e do fabrico de armas. As Misericórdias, querem que o Estado lhes leve os utentes pelos quais recebem mensalmente contribuições da Segurança Social. Bombeiros, Autarcas, Associações ecológicas e grupos de interesse movimentam-se para garantir o seu momento de glória. Um destes dias, saberemos quanto é cada uma destas e outras instituições recebem do orçamento de estado. Hoje, por hoje deveríamos encaminhar todos os esforços para o combate à Pandemia. Hoje, por hoje seria tempo de todos os setores estarem a remar para o mesmo lado. Mas não, todos se movimentam rumo ao lucro.
Voltaremos daqui por algum tempo, mais frágeis, com menos direitos e menos soluções.
Dizem-me que as crises são momentos ótimos para reorganizar a vida, inventar, progredir e ganhar.
No pó dos livros
Dos livros e dos livreiros entre outros ofícios
Recebi no domingo de Páscoa a notícia. Servida pela manhã, sem aviso prévio apesar de saber o seu estado de saúde.
O Adroaldo, o amigo, o cidadão, o autarca e o Livreiro tinha partido.
Conheci o Adroaldo há muitos anos. Fomos cimentando a nossa amizade na cumplicidade da construção da Democracia em Mogadouro e da relação com os livros.
A sua Livraria coexistia paredes meias com as estátuas de S. Sebastião e de Trindade Coelho.
Entrava-se na sua loja, onde se vendia de tudo. Na sala do fundo, estavam os livros.
O Pai, o Senhor Carvalho, tinha uma loja na rua de Santa Marinha. Ali literalmente vendia-se de tudo.
O seu balcão escondeu sempre a cumplicidade com os mais desfavorecidos, com os que pagavam o livro escolar a prestações. Lá estava o livro de merceeiro com o balancete do deve/haver.
– Está a ver. Ainda tenho isto tudo para receber e alguns do ano passado.
Como a generalidade das livrarias, a Livraria Carvalho vendia os livros de maior rotação.
As vendas não eram muitas e isso levava a que nem todas as casas editoriais visitassem o interior.
Muitas vezes, aproveitava a ida ao Porto para completar um ou outro pedido de cliente.
Mas o Adroaldo era muito mais que Livreiro.
Foi autarca eleito pelo Partido Socialista, cúmplice na construção da Liberdade e da Democracia.
Numa das comemorações do 25 de Abril foi alterada a Assembleia Municipal de Ordinária para Extraordinária de modo a não existir tempo para o público.
No final, como habitualmente realizava-se o almoço comemorativo.
O Francisco Cordeiro, eleito pelo PS, propôs que os representantes partidários não eleitos fossem convidados. Ninguém se pronunciou.
Foram todos saindo. O Francisco Cordeiro, o Ilidio Martins (Lila), o Fernando Bártolo, o Fernando Leitão e o Adroaldo acompanharam-me para o Kalifa. Ali almoçamos e marcamos um almoço para o 25 de Abril do ano seguinte.
Eram frequentes as sortidas do Adroaldo, do Lila e do Bártolo para fora de muros para usufruírem das paisagens, das pessoas e da gastronomia transfronteiriça.
Conta-se aliás, que numa dessas saídas foram buscar o Adroaldo a casa.
A esposa já em desespero atirou:
– Vocês levem-no e fiquem com ele.
O Lila e o Bártolo riram-se e lá foram.
Talvez para Fermoselle, Zamora, Miranda ou qualquer recanto da nossa terra.
Ultimamente o Adroaldo tinha-se reformado.
Na Livraria mandava a Carmo, dizia ele.
Na Transmontanices mandava o Paulo.
A Transmontanices é um daqueles locais onde se está bem. Aquela casa tem cultura.
No sótão fica o refúgio do Pimenta de Castro. Vão-se descendo as escadas e vemos história. Na parte inferior, onde morou a garrafeira, está a Transmontanices. Vinhos, queijos, azeite, doces regionais, livros, máscaras e muitas histórias.
Era aqui que o Adroaldo me recebia e me apresentava os produtos.
– Não se pode provar este?
– Tenho ali uma garrafa no frigorifico mas é do Lila. Foi para provarmos com o Bártolo.
– Leve que vai bem servido.
– Os vinhos estão um pouco caros.
– Eu gosto mais do branco.
Deve ter sido assim uma das últimas conversas.
Depois da apresentação do meu livro na Biblioteca Municipal Trindade Coelho lembrou-me:
– Fale com o Paulo, faremos muito gosto em vender o seu livro.
Um abraço Amigo Adroaldo, vou sentir a tua falta na ombreira do teu soto.
Vamos juntar-nos um destes dias para te recordarmos afetivo, companheiro e cidadão de corpo inteiro.