DO MEDO À RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

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Quero contar-vos uma história, que vai atingir 100% da população até ao fim desta quarentena, cada um de nós vai estar num dos dois lados.

O João saiu ontem cedo pela manhã de casa para ir trabalhar no aeroporto, foi de comboio, mora no alto de Algés, perto de Lisboa, e depois apanha o Metro, linha verde, linha vermelha – não tem carro. Vai cansado, embora esta semana tenha o turno de dia, não consegue dormir, já despediram 500 dos seus colegas, muitos amigos entre eles, outros conhecidos, com filhos, que angústia esta que o acorda às 2, 3, 4 da manhã…vê o relógio de madrugada, é tão cedo, tenta fechar de novo os olhos. Chega ao aeroporto, trabalha, sem máscaras, luvas, gel há pouco. Tenta sorrir aos passageiros, poucos, que por ali circulam. Agora todos os sorrisos são mais tristes mas mais sinceros, pensa. Regressa a casa, no fim do dia, de Metro e de comboio, o comboio vai com muita gente, todos os que não estão no twitter a trabalhar, pensa, ri-se para si. Ana espera-o, trabalhava num hotel, na recepção, fez o curso na melhor escola de turismo, fala 4 línguas, na perfeição, desde pequena tem jeito para as línguas e é, era, conversadora, conversava até demais, recorda o João. Foi despedida no início da quarentena, os patrões agora entraram em layoff, ajudados pela segurança social, mas não a readmitiram, ela não tinha contrato, responderam-lhe que não era despedimento, “era não renovação de contrato”. Ela quase não fala, agora, que saudades tenho de a ouvir, pensa o João. A Ana ganhava o salário mínimo mais subsídio de refeição, o João com os turnos chega aos 750, às vezes, com noites, 800. Dá para juntos pagarem 650 euros de renda por uma casa onde podem viver – sem sol, mas com luz, é um 4º andar, lugar porreiro para viver. Ele chega a casa, tem medo, terá sido contagiado hoje, nos transportes? No aeroporto? Diz-se “para, calma”. Olha para a Ana, desolada, abraça-a e diz-lhe “vamos dar um passeio aqui, curto, arejar, estiveste aqui fechada o dia todo”, vão de mão dada pelo passeio, não podem entrar no jardim municipal, fechado, seguem pelo passeio estreito, um atrás do outro, de mão dada, quando passa alguém, desviam-se para a estrada, sabem o que é distanciamento social, sabem que podem passear e a Ana não podia ficar em casa, mais, só, sem futuro, sem presente, sem falar.

A Maria tem estado agarrada à TV, ela e o seu gato, não conhece a lei e acha que ninguém pode sair de casa, só pode ir ao supermercado, o lugar mais contaminado, ninguém disse isso à Maria. Passear, 30 minutos, a Maria acha que é crime. Os senhores jornalistas ajudaram, só gritam “fique em casa” como se a Maria, além de burra, que sempre foi, não é de agora o mal, tivesse 3 anos, e não pudesse aprender pelo menos a lei. Os jornalistas não explicam à Maria que ela tem deveres, manter o distanciamento social, e direitos, dar um passeio. A polícia tem passado com o megafone, “fique em casa, fique em casa”, não há quase ninguém na rua, mas eles gritam “fique em casa, fique em casa!”. A Maria, depois da contagem dos mortos no noticiário das 8, vai à janela, afaga o seu gato, respira e nem sente ar entrar, estará já doente, pergunta-se aterrorizada, está tudo apertado na garganta. Suspira. O João e a Ana passam no passeio, agarrados para caber nele. Vão em silêncio – não sabem como vão viver, de quê, como vão pagar as contas, a casa, o futuro, ele afaga-lhe o cabelo, porque não consegue dizer-lhe mais nada, só a queria ouvir, não a quer perder, tinham planos, modestos, mas tinham. É durante este gesto, do afago do João à Ana, que, de repente, ouvem lá de cima a Maria gritar-lhes: “Assassinos! Que o último ventilador não seja para vocês!”.

PS: Às Marias deste mundo informo que os portugueses ao abrigo do Estado de Emergência podem sair de casa em passeios curtos, ao ar livre e podem praticar exercício fisico, desde que não seja em grupo. Não podem ser ofendidos ou intimidados por isso e se o forem é crime – nem ofendidos pela burra da Maria, nem intimidados pela polícia a regressar a casa durante um curto passeio, desde que mantenham o distanciamento social.

Informo também todos os leitores que, ao abrigo da lei podem andar de Metro e de Comboio, mas não devem, é perigoso. É a minha opinião, não é a do Governo – a liberdade de expressão ainda não foi suprimida.

Esta carta é dedicada às Anas e Joãos deste mundo. Havemos de fazer uma limonada deste limão, dançaremos juntos vitórias, questionando os alicerces desta economia que diz que um despedimento é “uma não renovação” condenando à fome, à ausência de tecto, à miséria e ao desespero milhões. Vamos em breve nos afagar, e proteger, é a cura pela organização solidária e a resposta política construtiva.
E a Maria? Nada podemos fazer pela Maria. As pessoas gostam de dizer “tudo vai ficar bem”, “tudo se resolve”, mas isso é pensamento mágico. É preciso dizer a verdade – muito gente não vai sair disto pertencendo à espécie humana porque ter-se-á tornado, contaminada pelo vírus do medo e da ignorância, num animal selvagem.

O João saiu ontem cedo pela manhã de casa para ir trabalhar no aeroporto, onde recebe passageiros, sem máscara, foi de comboio, mora em Algés, e depois apanha o Metro, linha azul, linha vermelha &#…
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O João saiu ontem cedo pela manhã de casa para ir trabalhar no aeroporto, onde recebe passageiros, sem máscara, foi de comboio,…