,MIGUEL TORGA, A CRIAÇÃO DO MUNDO

Miguel Torga,” A FESTA” , Novos Contos da Montanha(1944),pags 173 a 181.

 

«A FESTA</p>
<p>Tinha cada um o seu sonho para a festa de Santa Eufémia.<br />
O Nobre, era deslindar umas contas velhas com o Marcolino; a mulher, era pagar a promessa que fizera por causa do ferrujão dos bois; a filha, era passar a noite no arraial, a dançar a cana-verde nos braços do namorado.<br />
Por mais duro que fosse o serviço - roçar estrume, saibrar ou arrancar batatas -, bastava a ideia desse dia longínquo para o cansaço se evaporar. O Nobre via-se limpo do nome de covardola com que o Marcolino o mimoseara; a Lúcia imaginava-se a dar voltas à capela, acarinhada pela bênção protectora da Santa; a Otília fervia já no calor dum contacto permitido e amado, ao som da música de Torrozelo.<br />
-Quando vamos à Vila? -perguntava a rapariga dois meses antes, a pensar na saia nova de merino.<br />
-Tens tempo... -respondia o pai, que também acalentava o desejo inconfessado de uma faixa de cinco voltas.<br />
Sorrateiramente, faziam os três, pelo ano fora, economias para esse dia, num segredo soma e feliz. O Nobre vendera os bois por dezoito notas, e escamoteara uma da conta; a mulher roubara dois alqueires de centeio da tulha, e passara-os à socapa ao padeiro; a Otília entendeu-se com o comprador do vinho, e surripiou um almude na altura da medição.<br />
Os projectos ocultos de cada um implicavam despesas extraordinárias, que a economia oficial de casa não poderia consentir. O Nobre queria ter com que pagar de beber à farta aos amigos, diante dos quais se sentia na obrigação de lavar a honra, mas não estava disposto a prestar contas à mulher. Esta, por sua vez além da penitência da promessa, tencionava reforçar com uma boa esmola a gratidão à Santa, e não via razão para meter o homem nesses pormenores de fé. A moça prevenia-se para todas as eventualidades. Se o rapaz a brindasse com uma limonada, precisava ela de lhe oferecer pelo menos uma cerveja. Amor com amor se paga...<br />
De resto, no capítulo de teres e haveres, cada qual sabia intimamente que nenhum dos outros estava descalço, à espera do cão que manqueja. Mas, por defesa própria, fechavam os olhos à suspeitosa fonte dos proventos alheios. Era um jogo infantil , que a família inteira jogava harmoniosamente.<br />
E foi assim, de bolsa confortada e vestidos de novo ou de lavado, que os três se meteram a caminho da serra, na véspera da romaria.<br />
A ermida de Santa Eufémia fica no alto de um descampado de fragões, e à sombra de meia dúzia de castanheiros da idade do mundo é que se lhe faz a festa. Gente de todas as castas, cabritos assados de quantos rebanhos pastam nas redondezas, vinho de Guiães e de Abaças, trigo de Favaios, doceiras da Magalhã e de Sabrosa, andores armados por quatro freguesias, duas músicas, sete padres, pregador de Murça – o divino e o profano dão ali as mãos, num amplo entendimento. O céu desce um pouco, a montanha sobe mais, e ninguém sabe ao certo a que reino pertence. Com a cuba do estômago cheia e a imagem da Santa espetada na fita do chapéu, um homem sente-se capaz de tudo: de matar o semelhante e de comungar. Ouve-se um padre-nosso e uma saraivada de asneiras ao mesmo tempo. E apaga-se naturalmente do espírito a estrema que separa o mundo real do irreal. Só quem vem de peito feito para cumprir à risca a devoção que o traz, seja ela qual for, consegue encontrar pé num tal mar de contradições.<br />
Ora, justamente, o Nobre, a mulher e a filha faziam parte desse restrito número de romeiros. Traziam um programa definido no pensamento, e nenhuma solicitação, por mais sedutora, os faria mudar de propósito.<br />
- Bem, vou à minha vida... -anunciou a Lúcia logo depois da merenda, a arranjar liberdade.<br />
Era muito devota de Santa Eufémia, e gostava de lhe abrir o coração com vagar, a sós, numa intimidade lá dela.<br />
- Eu também quero falar aí com umas pessoas... -preveniu o homem, que não se confessava em matéria de zaragatas.<br />
- Fico então sozinha... - disse a rapariga, a fingir solidão. - O que vale é que sempre hei-de encontrar alguém da nossa terra...<br />
- Diverte-te, mas tem juízo... -avisou a mãe.<br />
- Não se aflija, que ninguém me come!<br />
Partiu cada qual para seu lado, o Nobre em direcção às pipas de vinho, a mulher direita como um tiro à capela, e a filha em sentido oposto às rixas do pai e ao beatério da mãe.<br />
- Ora viva! - saudou-a daí a nada o Leonel, antes de ela lhe pôr os olhos.<br />
- Ai, és tu?!… Até tive medo...<br />
Estavam aprazados para um bailado sem fim, e ainda não tinham acabado os cumprimentos rodopiavam já nos braços um do outro. –<br />
Sejas bem aparecido! - cumprimentou chibante o Marcolino, maI o Nobre se aproximou, todo ancho, de faixa nova, corrente de prata ao peito e calças de boca de sino.<br />
- Olé!...<br />
Só a Santa é que não disse nada à devota. Olhou-a do altar com os olhos vidrados, e assim se ficou enquanto a Lúcia lhe desfiava salve-rainhas aos pés. Entretanto anoitecera, e o arraial abria na escuridão da serra uma clareira luminosa, intensa de vida e de paixão. As músicas desafiavam-se o mais rumorosamente que podiam, os foguetes estoiravam no ar como bombas de dinamite, os pares levantavam nuvens de pó, havia mocadas aqui e além, e nas barracas comia-se, bebia-se e jogava-se a vermelhinha.<br />
- Vamos até ali... -convidou, implorativo, o Leonel, perdido pela namorada.<br />
- Ali, aonde? - perguntou ela, sem esforços para resistir.<br />
-Ali adiante...<br />
- Malandro, que mas hás-de pagar todas hoje! -gritava o Nobre de lódão no ar.<br />
- Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores...<br />
Ninguém tinha tempo para cuidar dos outros. Cada um tratava de si, dos seus amores, da sua fé, dos seus ódios. À medida que as horas avançavam, os menos resistentes iam cedendo às leis do sono e do cansaço. Qualquer sítio lhes servia de cama. E às tantas, dentro da capela e no adro, o chão era uma estrumeira de corpos, adormecidos numa promiscuidade de animais. Crianças ressonavam de boca aberta, velhas descompostas, escancaradas, mostravam as pernas secas e varicosas, e roliços braços de raparigas reluziam inertes à luz dos foguetes. Ao lado de cada um, o cesto do farnel, o varapau ou a cana de morteiro, guardada como um troféu.<br />
-Oh! meu Deus da minha alma, que há-de ser de mim?!... -gemia a Otília.<br />
-Agora já ele sabe quem é covarde!... - farroncava o Nobre.<br />
-Salve, Rainha, Mãe de misericórdia, vida e doçura... -orava a Lúcia.<br />
O calor das fragas e da terra, que o sol cozera todo o dia, mantinha a saturnal num mormaço de febre. A lamentar o mau passo, a blasonar, ou a erguer um hino de glorificação, as almas tinham a mesma força e o mesmo dom de entrega, embora qualquer coisa -a escuridão talvez -roubasse a cada acto a paz da plenitude.<br />
-Juro... - prometia frouxamente o Leonel, reticente, a dizer que casava.<br />
- Chegaste para ele, não há dúvida... - concediam os amigos do Nobre, depois da refrega, num dúbio reconhecimento da bravura com que se houvera.<br />
- Amen... -ouviu a Lúcia dos próprios lábios, a sentir na alma o vazio do rendeiro que pagou a renda.<br />
O contrato era de se encontrarem no fim do arraial, pela madrugada, para darem ao dente e beberem mais uma pinga. E realmente, mal a última girândoIa subiu ao ar e morreu em fumo no céu, lá estavam todos no sítio combinado, exaustos, de olhos vermelhos da poeira e do sono, cada qual com as contas do seu rosário passadas.<br />
Acordada pela luz da manhã que rompia calma e diáfana, a serra mostrava os largos horizontes varridos, e amortecia nas consciências a confusa exaltação que a noite permitira. As rodas de fogo-de-artifício, que a multidão vira rodopiar num frenesim de loucura, eram agora a imagem desoladora do transitório, tortas e desmanteladas nos eixos; vómitos de vinho, ossos descarnados, excrementos e cascas de melancia testemunhavam a íntima e triste miséria da vida; e pobres pedintes, andrajosos e aleijados, punham termo ao interregno das lamúrias, e mostravam novamente as chagas cobertas de moscas. Uma dormência lassa quebrava o corpo, a vontade, a fé e a própria esperança. Nas caras sanguíneas dos que tinham palmilhado léguas para chegar ali, havia uma palidez de desilusão, de inconfessado e dorido arrependimento.<br />
- Foi bonito... -disse, contudo, a rapariga, a disfarçar o desencanto.<br />
- Foi -respondeu o pai, com secura.<br />
- Mas parece que gostei mais do que no ano passado... -arriscou a mãe, a sangrar dos joelhos. -Vamos a ver logo, que tal a procissão...<br />
Defendiam-se como podiam da luz crua da realidade. Mas já nenhuma esperança sincera os amparava. O Nobre dera mas recebera, e duas lombeiradas do Marcolino tiravam-lhe o contentamento da desforra. Ou tinha uma costela partida, ou grossa avaria dentro da caixa do peito. A Lúcia, de contas saldadas, e com as rótulas à mostra da areia grossa do chão, sentia-se rarefeita como um fole espremido. A rapariga, essa reduzia tudo à sua honra perdida atrás de uma fraga que nem saberia agora identificar.<br />
Mas iam todos encher a barriga, dormir, e arranjar novas forças para continuarem a gozar pelo dia fora aquela festa a Santa Eufémia, pela qual tinham suspirado tanto o ano inteiro.»<br />
Miguel Torga in Novos Contos da Montanha, 4ª Edição BIS, Leya, 2011</p>
<p>Fotografia: Capela de Nossa Senhora da Azinheira, S. Martinho de Anta,

«A FESTA

Tinha cada um o seu sonho para a festa de Santa Eufémia.
O Nobre, era deslindar umas contas velhas com o Marcolino; a mulher, era pagar a promessa que fizera por causa do ferrujão dos bois; a filha, era passar a noite no arraial, a dançar a cana-verde nos braços do namorado.
Por mais duro que fosse o serviço – roçar estrume, saibrar ou arrancar batatas -, bastava a ideia desse dia longínquo para o cansaço se evaporar. O Nobre via-se limpo do nome de covardola com que o Marcolino o mimoseara; a Lúcia imaginava-se a dar voltas à capela, acarinhada pela bênção protectora da Santa; a Otília fervia já no calor dum contacto permitido e amado, ao som da música de Torrozelo.
-Quando vamos à Vila? -perguntava a rapariga dois meses antes, a pensar na saia nova de merino.
-Tens tempo… -respondia o pai, que também acalentava o desejo inconfessado de uma faixa de cinco voltas.
Sorrateiramente, faziam os três, pelo ano fora, economias para esse dia, num segredo soma e feliz. O Nobre vendera os bois por dezoito notas, e escamoteara uma da conta; a mulher roubara dois alqueires de centeio da tulha, e passara-os à socapa ao padeiro; a Otília entendeu-se com o comprador do vinho, e surripiou um almude na altura da medição.
Os projectos ocultos de cada um implicavam despesas extraordinárias, que a economia oficial de casa não poderia consentir. O Nobre queria ter com que pagar de beber à farta aos amigos, diante dos quais se sentia na obrigação de lavar a honra, mas não estava disposto a prestar contas à mulher. Esta, por sua vez além da penitência da promessa, tencionava reforçar com uma boa esmola a gratidão à Santa, e não via razão para meter o homem nesses pormenores de fé. A moça prevenia-se para todas as eventualidades. Se o rapaz a brindasse com uma limonada, precisava ela de lhe oferecer pelo menos uma cerveja. Amor com amor se paga…
De resto, no capítulo de teres e haveres, cada qual sabia intimamente que nenhum dos outros estava descalço, à espera do cão que manqueja. Mas, por defesa própria, fechavam os olhos à suspeitosa fonte dos proventos alheios. Era um jogo infantil , que a família inteira jogava harmoniosamente.
E foi assim, de bolsa confortada e vestidos de novo ou de lavado, que os três se meteram a caminho da serra, na véspera da romaria.
A ermida de Santa Eufémia fica no alto de um descampado de fragões, e à sombra de meia dúzia de castanheiros da idade do mundo é que se lhe faz a festa. Gente de todas as castas, cabritos assados de quantos rebanhos pastam nas redondezas, vinho de Guiães e de Abaças, trigo de Favaios, doceiras da Magalhã e de Sabrosa, andores armados por quatro freguesias, duas músicas, sete padres, pregador de Murça – o divino e o profano dão ali as mãos, num amplo entendimento. O céu desce um pouco, a montanha sobe mais, e ninguém sabe ao certo a que reino pertence. Com a cuba do estômago cheia e a imagem da Santa espetada na fita do chapéu, um homem sente-se capaz de tudo: de matar o semelhante e de comungar. Ouve-se um padre-nosso e uma saraivada de asneiras ao mesmo tempo. E apaga-se naturalmente do espírito a estrema que separa o mundo real do irreal. Só quem vem de peito feito para cumprir à risca a devoção que o traz, seja ela qual for, consegue encontrar pé num tal mar de contradições.
Ora, justamente, o Nobre, a mulher e a filha faziam parte desse restrito número de romeiros. Traziam um programa definido no pensamento, e nenhuma solicitação, por mais sedutora, os faria mudar de propósito.
– Bem, vou à minha vida… -anunciou a Lúcia logo depois da merenda, a arranjar liberdade.
Era muito devota de Santa Eufémia, e gostava de lhe abrir o coração com vagar, a sós, numa intimidade lá dela.
– Eu também quero falar aí com umas pessoas… -preveniu o homem, que não se confessava em matéria de zaragatas.
– Fico então sozinha… – disse a rapariga, a fingir solidão. – O que vale é que sempre hei-de encontrar alguém da nossa terra…
– Diverte-te, mas tem juízo… -avisou a mãe.
– Não se aflija, que ninguém me come!
Partiu cada qual para seu lado, o Nobre em direcção às pipas de vinho, a mulher direita como um tiro à capela, e a filha em sentido oposto às rixas do pai e ao beatério da mãe.
– Ora viva! – saudou-a daí a nada o Leonel, antes de ela lhe pôr os olhos.
– Ai, és tu?!… Até tive medo…
Estavam aprazados para um bailado sem fim, e ainda não tinham acabado os cumprimentos rodopiavam já nos braços um do outro. –
Sejas bem aparecido! – cumprimentou chibante o Marcolino, maI o Nobre se aproximou, todo ancho, de faixa nova, corrente de prata ao peito e calças de boca de sino.
– Olé!…
Só a Santa é que não disse nada à devota. Olhou-a do altar com os olhos vidrados, e assim se ficou enquanto a Lúcia lhe desfiava salve-rainhas aos pés. Entretanto anoitecera, e o arraial abria na escuridão da serra uma clareira luminosa, intensa de vida e de paixão. As músicas desafiavam-se o mais rumorosamente que podiam, os foguetes estoiravam no ar como bombas de dinamite, os pares levantavam nuvens de pó, havia mocadas aqui e além, e nas barracas comia-se, bebia-se e jogava-se a vermelhinha.
– Vamos até ali… -convidou, implorativo, o Leonel, perdido pela namorada.
– Ali, aonde? – perguntou ela, sem esforços para resistir.
-Ali adiante…
– Malandro, que mas hás-de pagar todas hoje! -gritava o Nobre de lódão no ar.
– Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores…
Ninguém tinha tempo para cuidar dos outros. Cada um tratava de si, dos seus amores, da sua fé, dos seus ódios. À medida que as horas avançavam, os menos resistentes iam cedendo às leis do sono e do cansaço. Qualquer sítio lhes servia de cama. E às tantas, dentro da capela e no adro, o chão era uma estrumeira de corpos, adormecidos numa promiscuidade de animais. Crianças ressonavam de boca aberta, velhas descompostas, escancaradas, mostravam as pernas secas e varicosas, e roliços braços de raparigas reluziam inertes à luz dos foguetes. Ao lado de cada um, o cesto do farnel, o varapau ou a cana de morteiro, guardada como um troféu.
-Oh! meu Deus da minha alma, que há-de ser de mim?!… -gemia a Otília.
-Agora já ele sabe quem é covarde!… – farroncava o Nobre.
-Salve, Rainha, Mãe de misericórdia, vida e doçura… -orava a Lúcia.
O calor das fragas e da terra, que o sol cozera todo o dia, mantinha a saturnal num mormaço de febre. A lamentar o mau passo, a blasonar, ou a erguer um hino de glorificação, as almas tinham a mesma força e o mesmo dom de entrega, embora qualquer coisa -a escuridão talvez -roubasse a cada acto a paz da plenitude.
-Juro… – prometia frouxamente o Leonel, reticente, a dizer que casava.
– Chegaste para ele, não há dúvida… – concediam os amigos do Nobre, depois da refrega, num dúbio reconhecimento da bravura com que se houvera.
– Amen… -ouviu a Lúcia dos próprios lábios, a sentir na alma o vazio do rendeiro que pagou a renda.
O contrato era de se encontrarem no fim do arraial, pela madrugada, para darem ao dente e beberem mais uma pinga. E realmente, mal a última girândoIa subiu ao ar e morreu em fumo no céu, lá estavam todos no sítio combinado, exaustos, de olhos vermelhos da poeira e do sono, cada qual com as contas do seu rosário passadas.
Acordada pela luz da manhã que rompia calma e diáfana, a serra mostrava os largos horizontes varridos, e amortecia nas consciências a confusa exaltação que a noite permitira. As rodas de fogo-de-artifício, que a multidão vira rodopiar num frenesim de loucura, eram agora a imagem desoladora do transitório, tortas e desmanteladas nos eixos; vómitos de vinho, ossos descarnados, excrementos e cascas de melancia testemunhavam a íntima e triste miséria da vida; e pobres pedintes, andrajosos e aleijados, punham termo ao interregno das lamúrias, e mostravam novamente as chagas cobertas de moscas. Uma dormência lassa quebrava o corpo, a vontade, a fé e a própria esperança. Nas caras sanguíneas dos que tinham palmilhado léguas para chegar ali, havia uma palidez de desilusão, de inconfessado e dorido arrependimento.
– Foi bonito… -disse, contudo, a rapariga, a disfarçar o desencanto.
– Foi -respondeu o pai, com secura.
– Mas parece que gostei mais do que no ano passado… -arriscou a mãe, a sangrar dos joelhos. -Vamos a ver logo, que tal a procissão…
Defendiam-se como podiam da luz crua da realidade. Mas já nenhuma esperança sincera os amparava. O Nobre dera mas recebera, e duas lombeiradas do Marcolino tiravam-lhe o contentamento da desforra. Ou tinha uma costela partida, ou grossa avaria dentro da caixa do peito. A Lúcia, de contas saldadas, e com as rótulas à mostra da areia grossa do chão, sentia-se rarefeita como um fole espremido. A rapariga, essa reduzia tudo à sua honra perdida atrás de uma fraga que nem saberia agora identificar.
Mas iam todos encher a barriga, dormir, e arranjar novas forças para continuarem a gozar pelo dia fora aquela festa a Santa Eufémia, pela qual tinham suspirado tanto o ano inteiro.»
Miguel Torga in Novos Contos da Montanha, 4ª Edição BIS, Leya, 2011

Fotografia: Capela de Nossa Senhora da Azinheira, S. Martinho de Anta,

 

 

Portugal necessita urgentemente de ser repovoado”
MIGUEL TORGA

Prefácio à Quarta Edição - Contos da MontanhaDepois de muitos anos de desterro, regressam novamente ao torrão natal os heróis  deste atribulado livro. Numa época em que tantos portugueses de carne e osso emigraram  por fome de pão, exilaram-se eles, lusitanos de papel e tinta, por falta de liberdade.  Enfarpelados num duro surrobeco de embarcadiços, lá se foram afoita- mente em demanda  do Brasil, o seio sempre acolhedor das nossas aflições. E ali viveram, generosamente  acarinhados, assistidos de longe pela ternura correctiva do autor. Voltam agora ao berço,  roídos de saudades. E não é sem apreensão que os vejo pisar, já menos toscos de aparência,  o amado chão da origem. É que muita água correu sob a ponte desde que se ausentaram.  Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e  a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados - num palco de  desolação. Almas amarfanhadas e terras em pousio. Que alento poderá receber dum  ambiente assim uma esperança de torna-viagem? Mas a pátria é um iman, mesmo quando a  universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos tacanhos  limites do planeta. Poucos resistem à sua atracção ao verem-se longe dela, seja qual for a  órbita em que se movam. Até os seus filhos de ficção. Por mais fortuna que tenham pelo  mundo a cabo, é com o ninho onde nasceram que sonham noite e dia. É que só nele se  exprimem correctamente, estão certos nos gestos, são realmente quem são. De maneira que  não me atrevi a contrariar a vinda das minhas humildes criaturas, como a prudência talvez  aconselhasse. Pelo contrário: favoreci-a. Pode ser que o exemplo seja seguido, e o êxodo,  que empobreceu a nação, comece a fazer-se em sentido inverso, e as nossas misérias e  tristezas mudem de fisionomia. Portugal necessita urgentemente de ser repovoado.
S. Martinho de Anta, Natal de 1968  Miguel TorgaContos da Montanha, 4ª Edição, Coimbra.Fotografia: Linha do Tua

Prefácio à Quarta Edição – Contos da Montanha

Depois de muitos anos de desterro, regressam novamente ao torrão natal os heróis deste atribulado livro. Numa época em que tantos portugueses de carne e osso emigraram por fome de pão, exilaram-se eles, lusitanos de papel e tinta, por falta de liberdade. Enfarpelados num duro surrobeco de embarcadiços, lá se foram afoita- mente em demanda do Brasil, o seio sempre acolhedor das nossas aflições. E ali viveram, generosamente acarinhados, assistidos de longe pela ternura correctiva do autor. Voltam agora ao berço, roídos de saudades. E não é sem apreensão que os vejo pisar, já menos toscos de aparência, o amado chão da origem. É que muita água correu sob a ponte desde que se ausentaram. Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados – num palco de desolação. Almas amarfanhadas e terras em pousio. Que alento poderá receber dum ambiente assim uma esperança de torna-viagem? Mas a pátria é um iman, mesmo quando a universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos tacanhos limites do planeta. Poucos resistem à sua atracção ao verem-se longe dela, seja qual for a órbita em que se movam. Até os seus filhos de ficção. Por mais fortuna que tenham pelo mundo a cabo, é com o ninho onde nasceram que sonham noite e dia. É que só nele se exprimem correctamente, estão certos nos gestos, são realmente quem são. De maneira que não me atrevi a contrariar a vinda das minhas humildes criaturas, como a prudência talvez aconselhasse. Pelo contrário: favoreci-a. Pode ser que o exemplo seja seguido, e o êxodo, que empobreceu a nação, comece a fazer-se em sentido inverso, e as nossas misérias e tristezas mudem de fisionomia. Portugal necessita urgentemente de ser repovoado.
S. Martinho de Anta, Natal de 1968 Miguel Torga

Contos da Montanha, 4ª Edição, Coimbra.

Fotografia: Linha do Tua