AUTONOMIA, O CONTRATO DA VERGONHA António Bulcão

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O contrato da vergonha II
Imagine o leitor que tem um procurador para tratar dos seus assuntos. Paga-lhe mensalmente uma certa quantia, generosa.
Vem depois a descobrir que o dito procurador, sentindo-se incapaz de fazer aquilo para que fora incumbido, contratou uma firma de advogados para ir tratando dos negócios. Certamente o leitor se perguntará: mas se este homem não se achava capaz de dar conta do recado, por que diabo aceitou ser meu procurador?
Apesar disso, não revoga a procuração. O leitor quer é os problemas resolvidos, independentemente de quem os resolva. Partindo, obviamente, do princípio de que o procurador retira do que recebe o necessário para pagar os honorários dos advogados.
Só que vem a tomar conhecimento de que é o próprio leitor quem também paga aos advogados. O que faria?
Esta a primeira vergonha do contrato celebrado entre a Assembleia Regional e uma firma de advogados lisboetas. Os deputados, que são nossos representantes, admitem a sua inépcia para tratar das matérias para que foram eleitos e contratam terceiros para o fazer. Seria grave se o fizessem, admitindo uma incompetência geral. Mas se retirassem dos seus vencimentos chorudos o necessário para pagar aos ilustres causídicos, talvez ainda passasse. Só que somos todos nós a pagar a incapacidade dos nossos “procuradores”. Pagamos duas vezes. Para os sustentar e para que eles contratem quem lhes resolva as questões para as quais estão manifestamente impreparados.
A segunda vergonha prende-se com a matéria constante do próprio contrato.
Na sua cláusula primeira, estabelece-se que o objecto do contrato consiste na aquisição de serviços jurídicos especializados, em três vertentes distintas:
1ª – Alternativas à figura do Representante da República;
2ª – Aprofundamento da autonomia (assim mesmo, com a pequeno, diferentemente do Representante da República, que beneficia de dois r enormes);
3ª – Melhoramento da democracia regional (de novo com d pequeno no que respeita à democracia, e com r pequeno no que toca à região).
Em relação à primeira vertente, querem os nossos deputados que os advogados lisboetas definam “um quadro alternativo para o exercício das competências presentemente atribuídas ao Representante da República (…)”.
No que toca à segunda vertente, pretendem os nossos representantes que os doutos causídicos da capital lhes forneçam “ a concepção de um conjunto de soluções e sua justificação em temáticas políticas fundamentais em que se verifica actualmente uma forte limitação à autonomia, como, por exemplo, símbolos regionais, partidos regionais, provedorias regionais, competência legislativa e domínio público”.
No que concerne à terceira vertente lavram os deputados que “a melhoria da democracia regional convoca matérias distintas como o sistema de governo, a iniciativa legislativa dos cidadãos regionais ou a lei eleitoral incluindo designadamente temas como o das quotas, candidaturas independentes, voto electrónico, círculo de emigração, etc”.
Nas duas primeiras vertentes, a encomenda inclui: escolha e justificação das soluções e apoio na elaboração dos articulados.
Na terceira vertente, pretendem os nossos deputados que os advogados trabalhem na “formulação de concretas propostas de redacção e da sua justificação”.
Em poucas palavras, não sabem nem o que querem, nem como redigir as alterações legislativas que enunciam. Confundem matéria política com matéria jurídica, o que indicia claramente que não percebem nada nem de uma nem de outra. Querem que advogados de Lisboa escolham os caminhos e expliquem como se anda.
E pagam muito bem pelos ensinamentos. 35.000 euros pela primeira e segunda vertentes, mais 30.000 pela terceira, num total de 100.000 euros.
Falamos da Autonomia dos Açores e da sua reforma, como matéria.
Falamos da Assembleia Legislativa Regional, como órgão máximo da mesma Autonomia.
Entregar a reforma da Autonomia a um escritório de advogados, para que eles encontrem soluções e as reduzam a letra de Lei, é uma vergonha para os deputados que compõem a Assembleia, é uma vergonha para os Açores.
Se não sabem, assumam que não sabem. E demitam-se. Que haja eleições antecipadas, para que tome assento gente mais capaz, que saiba o que quer e consiga metê-lo no papel.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)