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Este texto é da autoria do amigo José Ambrósio e constitui-se como homenagem póstuma ao Dr. João Maria Barcelos, médico e linguista que nos deixou importante obra e contributo para a história dos falares das ilhas de Flores e Corvo.
Soube da sua morte através do primo, João Soares e aguardava momento oportuno para o homenagear. Agradeço está antecipação do senhor José Ambrósio que reproduzo e agradeço
MÉDICO DA ILHA DAS FLORES
Até há poucos dias fazia parte da Redes Sociais, até que desapareceu misteriosamente… do Facebook, onde habitualmente o encontrava. Procurei saber o que se passava e fui informado que o mesmo tinha partido para uma viagem longa e sem regresso…
Trata-se de João Maria Soares de Barcelos, médico e escritor, que nasceu no ano de 1952, na freguesia de Ponta Delgada das Flores e residia, julgo, na cidade de Cantanhede, tendo falecido no principio do mês de novembro do ano em curso com 67 anos de idade. Era licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra e especializou-se em Medicina Interna no Hospital de Santa Maria em Lisboa.
Aos 11 anos partiu da sua terra para Angra do Heroísmo da ilha Terceira, onde iniciou o seus estudos liceais. Depois foi para Coimbra, onde se formou e posteriormente esteve em Lisboa a fazer a especialidade. Radicado inicialmente na cidade de Castelo Branco, onde conheceu outro médico José do Espírito Santo Silva, que era natural da Fazenda das Lajes das Flores e residia naquela cidade, onde exercia funções. Trabalhou no Hospital de Cantanhede a partir de 1990. Esteve também destacado durante 2 anos – 1995-2000 – no Centro de Saúde de Santa Cruz das Flores, tendo voltado depois a Cantanhede.
Como escritor, tem três obras que se debruçam sobre as Ilhas das Flores e Corvo, assim como os Açores em geral, a saber: Falas da Ilha das Flores, Vocabulário Regional, Edição do Autor em 2001; Dicionário de Falares dos Açores, Vocabulário Regional de Todas as Ilhas, com prefácio de Cristóvão Aguiar, Edição Almedina em 2008; Falares do Outro Arquipélago – Flores e Corvo, Edição do Autor em 2009.
O primeiro livro é um glossário, em forma de dicionário, sobre generalidades das falas – expressões e prenuncias, antigas e atuais, das gentes da Ilha das Flores. Trata-se de um trabalho baseado numa recolha iniciada em parceria com os médicos, também naturais desta ilha, José do Espírito Santo Freitas da Silva e Horácio Carvalho Flores, o primeiro da Fazenda das Lajes e o segundo de Santa Cruz, para além da colaboração de muitos outros florentinos. Este livro inicia-se com um poema sobre as belezas naturais desta ilha, cujo autor é Oliveira San-Bento:
Tantos encantos lhes acharam,
E tantas, tão vivas cores,
Que nem jardins lhe chamaram;
Chamaram-lhe as próprias flores.
O segundo livro, não o tenho e também não o li, mas julgo que a temática será similar ao primeiro, mas referido aos Açores em geral.
O tema do terceiro volume é também baseado no primeiro livro, mas de forma muito ampliada, basta dizer que tem 322 páginas. Esta obra inicia-se com a seguinte dedicatória do autor:
Aos heroicos habitantes destas ilhas
durante séculos abandonadas:
aos primeiros que cá chegaram
aos que partiram
e aos que sempre cá ficaram
aqui ficam
suas falas conservadas.
Foi também colaborador assíduo dos jornais que se publicavam na ilha das Flores, nomeadamente o jornal O Monchique, cuja intervenção foi sempre de cariz cultural e muito interessante.
Ponta Delgada das Flores é uma freguesia a norte da ilha, que dista de Santa Cruz, sede de concelho, a cerca de 21 quilómetros. Na altura, o isolamento era quase total, pois não existiam estradas, apenas um caminho muito rudimentar e em mau estado que ligava a freguesia à vila onde transitavam apenas animais, pessoas e eventualmente também carros de bois, ou então por via marítima num pequeno barco a remos. Os doentes graves eram transportados ao médico, que existia na sede do concelho, numa palanca, tipo rede ou cobertor segurado a uma vara e transportado aos ombros por dois homens, um à frente e outro atrás A atividade principal das pessoas era o campo, talvez 99,9% estivessem ligadas a uma agricultura de subsistência. Não havia o hábito de leitura nem existiam livros nas casas e os únicos polos de cultura consistiam no Padre e o Professor do Ensino Primário. E foi neste ambiente negro que nasceu o escritor e médico Barcelos.
Não tive o privilégio de o conhecer pessoalmente, infelizmente. Todavia, através da sua obra pude constatar que se tratava de uma pessoa culta, simples e com um coração muito grande – nunca esquecendo as suas raízes. A prova disso é o artigo que publicou ainda há pouco tempo, tipo homenagem, sobre um pobrezinho da sua terra, que a seguir se transcreve:
JOSÉ SILVEIRA
Faleceu no sábado, dia 6-10-2018, em Santa Cruz das Flores (Açores), José Silveira, natural de Ponta Delgada das Flores, mais conhecido por apenas Silveira.
Com distúrbios mentais, de tipo esquizofrenia, era uma figura típica da Freguesia, por onde se via a percorrer os caminhos mais desertos, cabelo desgrenhado e barba por fazer, descalço, sempre mascando tabaco.
Ainda cumpriu o Serviço Militar, mas constava que tinha sido expulso por agredir um sargento, que o teria contrariado. Nunca ninguém se queixou, contudo, de qualquer agressividade no resto da sua vida, era uma pessoa pacífica.
Pouco olhava de frente para as pessoas, fitando sempre o chão, e falava muito alto, repetindo frequentemente as palavras.
— Ó Silveira, queres um cigarro?
— Nã sinhor, não, ei nã fumo, ei nã fumo, ei masco, ei masco, ei masco!!!…
Ia às vezes a casa de uns familiares, que moravam nas Casas de Baixo, mas a maioria do tempo, particularmente nos meses mais quentes, passava o calcorrear os atalhos, e dormia numa furna, situada na Ribeira do moinho, perto do moinho dos Vicentes. Alimentava-se do que a natureza lhe dava: raízes, verduras, alguma lapa, quando descia ao rolo de Além, sei lá que mais.
Meus irmãos, às vezes, iam até à furna e levavam-lhe comida. A furna era ocupada, além dele, por umas dezenas de ratos, habituados à sua presença, mansos como gatos caseiros…
Dotado de uma memória prodigiosa, sabia o nome dos donos de todas as propriedades, das relvas, e gostava muito de falar sobre o tempo, sobre as estações do ano, etc.
Certo dia, estando em férias nas Flores — há anos que o não via —, e indo para as terras do mato à caça, encontrei-o. Parou, não olhou para mim, e ficou de olhos postos no chão:
— Ei Silveira, sabes quem eu sou?
— Sei, sim, sei, sim, és o filho do Sr. Braceles, o que está estudando na Terceira…
Passou fome e muito frio, até que, há uns bons anos, já idoso, alguém o levou para o Lar da Santa Casa da Misericórdia de Santa Cruz, onde acabou por se adaptar, ao contrário do que muita gente pensava. Lá, porém, facilitavam-lhe a vida, pois tinha alguma dificuldade em cumprir horários, dando-lhe, por exemplo, as refeições consoante a hora que ele pedia, e dormia a sesta num dos bancos do jardim.
Com tanta penúria passada, partiu desta para melhor…, aos 94 anos de idade.
J.M. Soares de Barcelos
8 de outubro de 2018
Deixo aqui esta singela homenagem póstuma a um homem que, embora não o conhecendo pessoalmente, pude ajuizá-lo e admirá-lo através da obra digna e de imenso apreço que nos legou.
Alenquer, 4 de dezembro de 2019
José Ambrósio
**************************** e eu que o contactei há anos dediquei este texto de homenagem no meu livro ChrónicAçores uma circum-navegação vol 2 num texto que adaptei da crónica 100.3. de julho 2012 adiante
100.3. CONVERSAS DO ALÉM
Há tempos fiquei menente[1] quando me disseram que um falecido, na vizinha Lombinha da Maia, pedira para ser enterrado com o seu inseparável telemóvel.
O homem sem pitafe[2] algum viera da Amerca[3], ali da antiga Calafona[4], e queria estar contactável mesmo para lá do grande túnel luminoso.
Qual não foi o meu espanto, num alpardusco[5] de camarça[6], ao transitar pelo cemitério já encerrado a visitas, e ver três pessoas do lado de fora das grades do cemitério falando com alguém e usando os seus telemóveis ou celulares bem encostados ao ouvido. Uma delas, tinha uma mão nas grades e na outra segurava o aparelho. Não tinha tarelo[7] nenhum. Não querendo ser lambeta[8], interroguei-me “Estaria a falar com o falecido, que nascera empelicado[9]?” Será que o finado atendeu do lado de lá dentro do seu caixão de mogno envolto na “Stars and Stripes” à prova de leiva[10] ou continuaria na sua eterna Madorna[11]? Teria acendido um palhito[12]para ver quem lhe ligava?
De que falariam? Que mexericos trocavam? Lamentar-se-iam da falta que lhes fazia ou estariam a queixar-se da carestia de vida? Que palavras trocariam que não tivessem já comunicado? Que faltara dizer?
Estariam a queixar-se da sorte caipora[13] dos herdeiros ou a culpá-los pela caltraçada[14] criada pelo inexistente testamento? Teriam sido vizinhos de ao pé da porta[15]? Falariam do gado alfeiro[16] sem touro de cobrição?
Talvez dum derriço duma filha numa constante arredouça[17], às fiúzes[18] do namorado da cidade? Eu ia ficar a nove[19] mas tratando-se de gente rural podia augurar que os vaqueiros se preocupassem mais com subsídios e vacas.
Não devem escalar grandes cumes culturais ou espirituais. Pressuponho ser esse o jaez da conversação. Não creio que pedissem aconselhamento para as eleições legislativas dali a seis semanas nem tampouco lamentassem a falta delas.
Quem sabe que lastimavam? Falariam, talvez, de mordomos, impérios e festas que isso, sim, seria assunto da maior relevância local, que o melhor da festa é esperar por ela, mas mais apropriado para se discutir à mesa, sem ninguém a atramoçar[20], com uns calzins[21] de abafado[22] até se ficar meio piteiro[23]. Uma pessoa interroga-se sobre a possibilidade de duração infinita das baterias do aparelho no esquife. Seria a solução para tantos escritores e outros que se separam dos leitores sem tempo de dizerem um último adeus, escreverem a última frase de um livro, acenarem com um novo projeto ou retificarem qualquer coisinha. Seria a forma inédita de poderem continuar a comunicar com aqueles que ficam facilmente órfãos de autores que os acompanharam nesta digressão terrena. Admiro-me que as companhias de telecomunicação não tenham inventado uma bateria de longa duração que não precise de ser carregada debaixo de terra e permita acesso ilimitado, a troco de uma conveniente taxa vitalícia, aos que os deixaram já no meio duma amizade, dum amor, duma relação, duma paixão. Seria, decerto, um êxito comercial se viesse com a possibilidade de personalização do aparelho. Quem sabe o que se evitaria de dores incompletas, de saudades por mitigar, de conversas inacabadas? Novos planos poderiam surgir em operadoras de telemóveis. Um tema a merecer estudos futuros…[24]”
[1] Menente, espantado, estupefacto (São Miguel)
[2] Pitafe, defeito, atribuído quer a pessoas, quer a objetos. Nódoa na reputação.
[3] Amerca, corruptela de América, ou Nova Inglaterra por oposição ao outro grande polo de emigração, a Califórnia
[4] Calafona, Califórnia, na estropiação dos emigrantes de antigamente
[5] Alpardusco, o mesmo que alpardo, crepúsculo, lusco-fusco (São Miguel)
[6] Camarça, tempo húmido (São Miguel)
[7] Tarelo, juízo, tino (São Miguel)
[8] Lambeta, intrometido (São Jorge)
[9] Empelicado diz-se de pessoa afortunada, usado na frase nascer empelicado (Terceira)
[10] Leiva, designação dada a formações de musgo de várias espécies Sphagnum, abundante na parte alta das ilhas. No Corvo é o musgo, nas Flores musgão, no Faial tufos. Nome da urze, Calluna vulgaris, usada em S. Miguel na preparação do solo das estufas dos ananases.
[11] Madorna, sono leve, sonolência, torpor
[12] Palhito, o mesmo que fósforo (Terceira)
[13] Caipora, de qualidade inferior, reles. Sorte caipora: que pouca sorte, sorte maldita (São Miguel)
[14] Caltraçada, confusão, mixórdia, trapalhada
[15] Vizinho do pé da porta, o mesmo que vizinho do portal da porta, que mora nas redondezas de uma casa (vizinho de ao pé da porta em São Miguel)
[16] Alfeiro, gado bovino que não dá leite, por exemplo de uma vaca que não apanhou boi, e que, por isso, não dá leite. Gado alfeiro sem touro de cobrição (in Cristóvão de Aguiar)
[17] Arredouça, confusão, desordem
[18] Fiúzes (São Miguel) ou às fiúzas de, à custa de, viver à custa de outrem (Terceira)
[19] Ficar a nove, não entender nada do que ouviu.
[20] Atramoçar, aborrecer, interferir com, maçar (in Cristóvão de Aguiar) (São Miguel)
[21] Calzins, pequeno copo, geralmente destinado a beber aguardente ou bebidas finas
[22] Abafado, O vinho abafado é um vinho tradicional dos Açores, constituindo uma tradição na costa norte de São Miguel, onde a abundância de pomares e a produção frutícola excedentária é frequentemente aproveitada para a feitura de licores, vinhos abafados e compotas. No caso dos vinhos abafados, trata-se de um género vinícola com elevado teor alcoólico cuja fermentação é interrompida através da adição de aguardente ou álcool, permanecendo mais ou menos doce (uma vez que o açúcar natural da uva não se transformou em álcool). Transformação licorosa do típico vinho de cheiro micaelense. O abafado é considerado o vinho do Porto dos Açores, em resultado de um processo de laboração que dispensa o recurso a corantes ou conservantes. (São Miguel)
[23] Piteiro, aquele que bebe muito (Terceira, Flores)
[24] (texto revisto por e dedicado ao Dr. J. M. Soares de Barcelos, autor de Dicionário dos Falares dos Açores (ed. Almedina 2008), por me fazer sentir menos estrangeiro