E se 1640 tivesse saído ao contrário?

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https://www.publico.pt/2019/10/16/mundo/opiniao/1640-saido-contrario-1890158?fbclid=IwAR1Ty3OKr5CKaQWBKq5g6Ewvg0-J-iBjMnnuOnKrfBlXk4sPZ-tZID9V9Hs

« (…) É bem conhecido que em finais de 1640 a monarquia hispânica teve de tomar uma decisão complicada: segurar Portugal ou segurar a Catalunha. (…) Ainda que Portugal tivesse grandes territórios ultramarinos, de grande valor para a monarquia, a Catalunha fazia fronteira com a França, e a aliança entre catalães e Luís XIII era um foco de grande apreensão.” Ou seja, com Portugal a Espanha poderia perder um reino e metade de um império; mas com a Catalunha arriscava-se a uma invasão francesa e a perder-se a si mesma. Claro que Madrid não desejava perder nem Portugal nem Catalunha — a Guerra da Restauração duraria mais 28 anos, até 1668 — mas naquele ano de 1640 foi preciso ter uma só prioridade, a Catalunha, e essa folga foi a suficiente para Portugal hoje poder olhar a situação catalã com uma certa sobranceria.

(…)
É fácil projetarmo-nos num tempo imaginado e termos a convicção de que estaríamos inevitavelmente no papel que daqui vemos como certo. Nenhum de nós se imagina do lado dos repressores em cada momento da história. Esquecemo-nos que em cada momento os repressores estão convencidos de que são eles as vítimas. Por isso não é fácil imaginar onde estaríamos cada um de nós, se 1640 tivesse saído de outra forma e hoje Portugal fosse uma mera autonomia de Espanha. Talvez imaginemos todos que seríamos orgulhosos independentistas (por mim, era o que eu gostaria de ser). Mas o mais certo é que fôssemos uma sociedade dividida e polarizada, como é hoje a Catalunha.

Numa sociedade dividida e polarizada, todos cometem erros, mas a apreciação do que é um erro é ela própria dividida e polarizada. Do meu ponto de vista, há um erro grave de cada lado neste processo que leva estas nove pessoas à prisão. Do lado catalão, a realização do referendo é do meu ponto de vista legítima — não pode ser ilegal pedir opinião à população —, mas a eficácia do mesmo deveria ter sido suspensa para possibilitar a abertura de um período de diálogo com o governo espanhol, tão demorada quanto necessário, em vez de levar a uma declaração unilateral de independência apressada e improvisada, aliás, exigida principalmente por aqueles que não foram parar à cadeia, incluindo Puidgemont, que a assinou e passou para o exílio. Do lado de Madrid, o erro foi o facto de se ter judicializado aquilo que só poderia ter uma solução política — e esperemos que o recurso para o Tribunal Europeu de Direitos Humanos permita talvez moderar os impulsos punitivos deste processo.

Mas os dois erros não são vistos da mesma forma lá onde importa. Um dos agora condenados, o ex-conselheiro de Relações Exteriores (e meu bom amigo) Raül Romeva, disse-me uma vez como via as coisas. Cito de memória: “Eles vão tentar vergar-nos, arruinar-nos e talvez até prender-nos, mas com isso acabarão por ter de enfrentar uma nova geração de independentistas bem mais inflexível do que nós.” Foi isso que esta sentença ofereceu agora à Catalunha e a Espanha.

Podemos lamentar, compreender ou não, antipatizar ou não. Mas imaginemos que 1640 tinha saído ao contrário e rapidamente nos aperceberemos de uma coisa: pode demorar, mas isto só se resolve de duas formas: ou com a independência catalã, ou com a Espanha a aceitar reinventar-se de outra forma. Como está, não dá.»

[Rui Tavares, “Público”, 16/10]

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Pode demorar, mas isto só se resolve de duas formas: ou com a independência catalã, ou com a Espanha a aceitar reinventar-se de outra forma. Como está, não dá.