JOSÉ CRAVEIRINHA, O GRANDE ESCRITOR DE MOÇAMBIQUE

Views: 0

 

PGL.GAL

AS AULAS NO CINEMA

JOSÉ CRAVEIRINHA, O GRANDE ESCRITOR DE MOÇAMBIQUE

Dentro da série que estou a dedicar às mais importantes personalidades da Lusofonia, onde a nossa língua internacional tem uma presença destacada, e, por sorte, está presente em mais de doze países, sendo oficial em oito, dedico o presente depoimento, que faz o número 118 da série geral, ao grande escritor moçambicano José João Craveirinha (1922-2003). Este é o depoimento número seis da série lusófona.

PEQUENA BIOGRAFIA

jose-craveirinha-foto-antiga

Escritor moçambicano, José João Craveirinha nasceu a 28 de Maio de 1922, em Xipamanine-Lourenço Marques (atual Maputo), e faleceu a 6 de Fevereiro de 2003, na África do Sul. Filho de pai algarvio de Aljezur cuja família partira para Moçambique em 1908 em busca de fortuna, e de mãe moçambicana pertencente à etnia ronga, estudou na escola “Primeiro de Janeiro”, pertencente à Maçonaria. Viveu com a mãe, o pai e a madrasta. O seu pai introduziu-o na prosa e a poesia portuguesas do século XIX. E de sua mãe adquiriu os seus conhecimentos sobre a vida e tradições africanas. Teve a sorte de receber uma boa educação europeia na sua cidade natal. Viajou a vários lugares da áfrica, entre eles a África do Sul, e também viajou a Ásia, Índia e Europa (nomeadamente Portugal e o Reino Unido).

Ainda adolescente, começou a frequentar a Associação Africana, da qual em 1950 chegou a ser presidente. Colaborou em O Brado Africano, que tratava de assuntos de carácter local e que dissessem principalmente respeito à faixa da população mais desprotegida. Fez campanha contra o racismo no Notícias, onde trabalhava, tendo sido o primeiro jornalista oficialmente sindicalizado. Em 1958, começou a trabalhar também na Imprensa Nacional. Continuou no Notícias até à fundação do jornal A Tribuna, em 1962. Entre 1964 e 1968 esteve preso, em virtude da sua ligação à FRELIMO, mas teve a oportunidade de conhecer na prisão o pintor Malangatana. Começou a escrever cedo, mas a sua poesia demorou a ser publicada. Em Lisboa, a primeira obra a surgir foi Xigubo, em 1964, através da Casa dos Estudantes do Império. A partir de determinada altura, a consciência política do autor passou a refletir-se em obras como O Grito e O Tambor. As suas ideias baseavam-se na consciência africana, a justiça social, o anticolonialismo e a independência nacional, que preocupou a toda áfrica durante a Segunda Guerra Mundial.

Apesar de a sua obra refletir a influência dos surrealistas, é fortemente marcada por todo um carácter popular e tipicamente moçambicano. A sua poesia possui um carácter social que radica nas camadas mais profundas do povo moçambicano. Escritor de ligações afetivas com Portugal, foi-lhe atribuído o Prémio Camões em 1991 e recebeu condecorações dos presidentes de Portugal e de Moçambique, Jorge Sampaio e Joaquim Chissano respeitivamente. Vice-presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa, escritor galardoado com o prémio “Vida Literária” da Associação de Escritores Moçambicanos, foi homenageado no dia 28 de Maio de 2002, na sequência da iniciativa do governo moçambicano em consagrar o ano de 2002 a José Craveirinha.

Primeiro africano a vencer o Prémio Camões, o mais importante galardão literário da língua portuguesa, deu voz ao surrealismo poético. Ensaísta e jornalista perseguido e preso pela PIDE, é recordado como um dos maiores nomes de Moçambique e da lusofonia. Tal como assinalámos, Craveirinha nasceu em 1922, na antiga cidade de Lourenço Marques, no seio de uma família modesta, com pai algarvio e mãe moçambicana. José foi obrigado a abandonar os estudos após a conclusão da escola primária, para que o irmão mais velho fizesse o liceu, mas manteve a paixão pela leitura. Começou a trabalhar como jornalista no Brado Africano e mais tarde colaborou com o Notícias, a Tribuna, Notícias da Tarde, o Notícias da Beira, a Voz de Moçambique, Diário de Moçambique, Voz Africana e o Cooperador de Moçambique. Foi neste último que publicou uma série de artigos ensaísticos sobre folclore moçambicano. Apesar de todo o trabalho importante desenvolvido na área da investigação, foi na lírica que Craveirinha se revelou verdadeiramente talentoso. Utilizava vários pseudónimos e entre eles, Mário Vieira, J. C., J. Cravo, Jesuíno Cravo ou Abílio Cossa.

jose-craveirinha-capa-seu-livro-xigubo

Estreou-se na poesia em 1955, com a publicação de poemas no Brado Africano. Seguiram-se inúmeras colaborações no plano literário com jornais de Moçambique, Angola, Portugal e Brasil. Chigubo é o seu livro de estreia, editado em Lisboa, em 1964, pela Casa dos Estudantes do Império, que foi apreendido pela PIDE. Entre 1965 e 1968, por fazer parte de uma célula da 4ª Região Político-Militar da Frelimo, esteve preso, e partilhou a cela da prisão com Malangatana e Rui Nogar, nomes importantes da cultura daquele tempo. Presente em qualquer antologia lusófona, a sua poesia reflete a influência surrealista, mas é marcada pela cultura moçambicana e reflete sobre as questões sociais. Craveirinha conquistou prémios em Moçambique, Itália e Portugal. Recebeu condecorações do presidente português Jorge Sampaio e do presidente moçambicano Joaquim Chissano. Um reconhecimento que teve a sua maior expressão com a atribuição do prémio Camões, em 1991. Entre 1982 e 1987 foi o primeiro presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), a que em 2003, em parceria com a HCB (Hidroeléctrica de Cahora Bassa) instituiu o “Prémio José Craveirinha de Literatura”. Morreu em fevereiro de 2003 em Joanesburgo, aos 80 anos de idade.

Entre as suas obras encontram-se a já citada Xigubo de poesia, de que existe uma segunda edição do ano 1980; Cántico a un dio di Catrame, também poética, publicada em edição bilingue (português-italiano) em 1966; Karingana ua karingana, publicada pela editora Académica de Lourenço Marques em 1974, com segunda edição em Maputo do ano 1982; Maria, uma coletânea de poemas dedicados à sua esposa durante a sua longa enfermidade e depois da sua morte, a cuja memória Craveirinha dedicou numerosas poesias, publicada em Lisboa em 1988; Cela 1, publicada em Maputo pelo Instituto Nacional do Livro e do Disco em 1980; Hamina e outros contos, livro editado em 1997, e mesmo em idioma russo o livro intitulado Izbranoe, editado em Moscovo em 1984.

Ao longo da sua carreira literária, Craveirinha recebeu, ademais do Camões de 1991 já comentado, muitos outros prémios: o Prémio Cidade de Lourenço Marques em 1959, o Reinaldo Ferreira do Centro de Arte e Cultura da Beira em 1961, ademais do de Ensaio deste mesmo Centro no mesmo ano, o Alexandre Dáskalos da Casa dos Estudantes do Império em Lisboa (1962), o Nacional de Poesia de Itália (1975), e o Lotus da Associação de Escritores Afro-Asiáticos (1983). Recebeu também as medalhas Nachingwea do governo de Moçambique em 1985, e a do Mérito da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo-Brasil em 1987. Em 21 de abril de 1997 foi nomeado Comendador da Ordem do Infante D. Henrique de Portugal.

FICHAS TÉCNICAS DOS DOCUMENTÁRIOS

  1. Grandes africanos: José Craveirinha.

Duração: 4 minutos. Realizadora: Milene Matos Silva. Produtora: RTP. Ano 2014.

Ver aqui.

  1. Biografia de José Craveirinha.

Duração: 4 minutos. Ano 2010.

  1. Homenagem a José Craveirinha.

Duração: 7 minutos. Ano 2015.

  1. Poemas de José Craveirinha.

Duração: 6 minutos. Recita: Elisabete Caramelo. Ano 2009.

  1. José Craveirinha no Dia da Poesia.

Duração: 7 minutos. Recita: Elisabete Caramelo. Ano 2009.

  1. José Craveirinha: Literatura Moçambicana.

Duração: 9 minutos. Ano 2016.

  1. Quero ser tambor, poema de Craveirinha em língua Puám.

Duração: 4 minutos. Ano 2016.

  1. Seminário sobre José Craveirinha.

Duração: 5 minutos. Ano 2016.

AUTOBIOGRAFIA POÉTICA DE CRAVEIRINHA

No seu momento Craveirinha escreveu uma linda sua autobiografia que merece ser recolhida e recuperada, e que tenho por bem resenhar a seguir:

«Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Isto por parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai, fiquei José. Aonde? Na Av. do Zihlahla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato… A seguir, fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: seu irmão.

E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique. A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe preta. Nasci ainda outra vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronhae Noémia de Sousa.

Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso. Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por parte de minha mãe, só resignação. Uma luita incessante comigo próprio. Autodidacta. Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis. Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas a noite».

UMA PEQUENA ESCOLMA POÉTICA

Apresentamos a seguir cinco poemas destacados de Craveirinha:

Um homem nunca chora

Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!

Pena

Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.

Mas não me chames negro.

Assim não te odeio.
Porque se me chamas negro
encolho os meus elásticos ombros
e com pena de ti sorrio.

Nem desconfia

Todo o poeta quando preso
é um refugiado livre no universo
de cada coração
na rua.

O chefe da polícia
de defesa da segurança do estado
sabe como se prende um suspeito
mas quanto ao resto
não sabe nada.

E nem desconfia.

Guerra

Aos que ficam
resta o recurso
de se vestirem de luto.

Ah, cidades!
Favos de pedra
macios amortecedores de bombas.

Berro preto (Grito negro)

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.

Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão.
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.

NA PROCURA DE UMA FUNDAÇÃO

O filho do poeta quer eternizar a memória do pai. Zeca Craveirinha, filho de José Craveirinha, está a criar uma fundação em memória do pai. A casa onde o poeta moçambicano passou os últimos dias deverá ser a sede da instituição. A jornalista moçambicana Cristiane Vieira Teixeira publicou em fevereiro de 2016 no jornal Notícias de Maputo uma pequena entrevista ao filho do poeta, que tenho a bem reproduzir.

Sala de estar da casa de José Craveirinha em Maputo.

Sala de estar da casa de José Craveirinha em Maputo.

Ao chegar em Munhuana, Maputo, encontramos aberta a porta da bela casa de dois andares. Logo na entrada, quem nos recebe é Zeca Craveirinha, filho do poeta maior moçambicano, José Craveirinha, com quem viveu por muitos anos no local. Depois da morte do pai, em 2003, mudou-se. Mas fez questão de conservar a moradia quase intacta. A mesa de jantar está cercada por fotografias e pinturas do rosto do poeta e sobre ela repousam seus livros e a medalha e o diploma de Herói Nacional, conferidos a Craveirinha depois de sua morte. Com sua poesia de combate, Craveirinha sonhava com um país independente.

Sentado no sofá de coiro na sala de estar, decorada por inúmeras obras de arte, Zeca Craveirinha partilha conosco lembranças da vida cotidiana ao lado do pai. “A memória mais bonita que guardo do meu pai é estarmos sentados precisamente aqui nesta sala. E eu ia-o provocando. Ele, quando se sentisse provocado, puxava pelos galões e começava a falar. Eu, aí, preparava-me para absorver tudo quanto ele dissesse”, recorda.

Intimidade do poeta:

Uma escada atrás do sofá nos leva ao segundo pavimento da casa, doada a Craveirinha pelo então Presidente Samora Machel. É aqui que o visitante penetra na intimidade do poeta. Em seus últimos dias, Craveirinha passava a maior parte do tempo no quarto. Ao lado do armário, uma cadeira de rodas indica dias de pouco movimento. Ao centro, a cama de solteiro está cuidadosamente estendida. “Ele tinha que fazer uma ginástica para chegar à cama, porque estava toda rodeada de livros. Isto é só uma pequena amostra da roupa. Era uma pessoa que se vestia muito bem. Sempre de casaco, sempre bem posto. Era de uma elegância extrema. Era, sim senhor,” diz Zeca Craveirinha.

Ao lado do quarto fica a biblioteca. A estante lotada de livros sobre os mais diversos assuntos é, segundo Zeca Craveirinha, a maior herança que o pai lhe deixou. “Eu não tinha essa dimensão, mas depois de uma conversa em que meu pai me disse, com muita seriedade: “Não vos vou deixar dinheiro, vou morrer pobre como nasci. Mas vocês vão ficar como uma grande fortuna. Esses livros aqui”. De fato, sinto-me um multimilionário por ter estes livros, este acervo”, revela o filho do poeta.

Fundação José Craveirinha:

Zeca Craveirinha quer criar uma fundação, em memória do poeta. O pedido já foi autorizado pelo Conselho de Ministros. Aguarda-se agora as últimas formalidades. Zeca acredita que, quando a instituição existir oficialmente, será um património de todo o povo moçambicano e uma responsabilidade a ser assumida futuramente por outros membros da família: “Depois de mim, os meus filhos. Os meus filhos terão a responsabilidade de passar esse legado para os meus netos”. Em princípio, “a sede da fundação vai ser a casa onde ele viveu. Os documentos estão lá todos”, conclui Zeca Craveirinha. A casa de José Craveirinha deverá, então, abrir suas portas aos visitantes.