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retirado de ChrónicAçores uma circum-navegação vol 2 2011 e em
chrónicaçores uma circum-navegação vol 3
disponível em https://blog.lusofonias.net/chronicacores-uma-circum-navegacao-vol-3-parte-ii-2010-2018/
CRÓNICA 74 A MAGIA E O MAGNETISMO DO PICO ATRAEM-ME, SERÁ AQUI O ABISMO? 09 09 09
74.1. A MAGIA E O MAGNETISMO DO PICO ATRAEM-ME
Isto das ilhas tem muito que se lhe diga, algumas pessoas estão de costas voltadas para o mar, como em S. Miguel, enquanto outras há que não vivem sem ele, como no Pico. Sei que é uma questão de tempo até começarem a zurzir nos forasteiros que ousam opinar sobre este arquipélago. Quando se perora sobre as nove filhas de Zeus urge não melindrar os interesses estabelecidos.
As visões críticas ou não conformadas aos cânones podem acarretar sérios riscos para a saúde mental dos seus autores. Vozes críticas ou arredadas dos estereótipos não abundam nem são benquistas. As elites dominantes e os poderes caciqueiros logo se insurgem. A ingratidão, vergonha e falta de patriotismo são epítetos comummente usados para denegrir os que ousam. Citam-se páginas relevantes da heroica gesta açoriana, com destaque para as guerras liberais e inúmeras desventuras de emigrantes que triunfaram. Surgem editorais e recensões violentas nos jornais locais. Os caixeiros-viajantes da cultura logo se arrogam o direito de defender a açorianidade ofendida. Tais declarações de repúdio raras vezes saem dos quatro cantos do arquipélago que falar dos Açores ainda não se tornou moda na grande capital do Império.
Foi isto que, por mais de uma vez, aconteceu ao meu amigo, o mal-amado escritor Cristóvão de Aguiar. Apodaram-no de tudo e mais alguma coisa, pois convém sempre ser mais papista que o papa. Em meios pequenos é consabida a tendência para apoucar aqueles que das leis do esquecimento se desembaraçaram, como diria o vate, enquanto o imperador e seu séquito distribuem viagens e mordomias. Terras pequenas, invejas grandes ou a reprodução literária do mote popular “a minha festa é maior que a tua”.
Para o comum dos mortais a vida prosseguiria o seu rumo, mas os Açores são uma réplica miniatural da corte lisboeta. As elites não perdoam aos que não comungam da verdade única com força de dogma. Cristóvão escreve com uma pluma incómoda. Reservou-se um papel de narrador que pensa, fala e escreve sem recorrer aos lugares comuns que tanto gáudio causam na população. Não reivindica verdades absolutas ou duradouras, limita-se a descrever o que sente e vê. Criaram-lhe a fama de irascível (quantas vezes com justas e fundadas razões?). Eu recebi “avisos amigos” para os perigos quando o convidara a estar na Lagoa em março – abril de 2009 para o 4º encontro açoriano da lusofonia. Congratulo-me que, relutantemente, Cristóvão tenha acedido. Ao longo de cinco meses trocamos correios eletrónicos e telefonemas criando uma amizade saudavelmente aberta e crítica. Estava eu carecido de aprender mais com este enigmático personagem que tantos cuidados incutia aos defensores da paz podre açoriana. Como acumulei milhas no cartão de viandante frequente aceitei a sua hospitalidade para uns curtos quatro ou cinco dias no Pico que Cristóvão assumiu como segunda pátria. Nove dias após partir de São Miguel Arcanjo na ilha mágica de regresso à ilha de São Miguel Arcanjo ainda reverberavam os encantos daquela.
Deixei a Lomba da Maia de noite pois nunca se sabe quando se encontram vacas, tratores e carros agrícolas ou, se pelo contrário, se viajará sem transtornos. O trânsito pela sete da manhã era constante. Bem distinto da calma que conheci à minha chegada em 2005. Parte do novo influxo de viaturas deve-se ao empreendimento da SCUT (via rápida sem custos para o utilizador) que avança, lentamente, da Ribeirinha para o Nordeste, desbastando montes, encurtando vales, quebrando rochas milenares, alterando definitivamente a pacata paisagem da costa norte imutável ao longo de gerações e melhorando, ao de leve, o traçado da estrada centenária.
Há quem sinta nostalgicamente que este progresso avassalador destruirá paisagens milenares intocadas, mas será um alívio para quem conduz do Nordeste à Ribeira Grande. Enquanto durar a construção é dinheiro vivo injetado nos locais por onde a estrada passa. A casa em frente à minha, está para vender há 4 anos, e foi alugada a trabalhadores das obras. Estes irão gastar mais energia da EDA, mais água dos SMAS, indo abastecer-se no minimercado local e no café da esquina…o circuito económico do desenvolvimento alastra-se até à conclusão da obra. Este é, afinal, o ciclo de quatro décadas que a Austrália inventou para ter uma economia sempre crescente.
Era apenas dia 27, mas no aeroporto concentravam-se já cinco voos neste final de férias de agosto, dois para Lisboa, um para o Porto, o do Pico e o das Flores. Apenas sete pessoas antecediam na fila de “check-in” quando os computadores avariaram. As filas pararam mais de 40 minutos e rapidamente cresceram. Mais de uma centena de pessoas. O ar era irrespirável com o calor e humidades próprios da época e do local. A habitual cortesia e hospitalidade dos operadores aéreos (SATA e TAP) para com os seus clientes e passageiros levou-os a nada comunicarem sobre o acontecido. Fizeram bem, pouparam preocupações aos passageiros sobre assuntos que lhes não diziam respeito. A turba acumulava-se incomodada naquela sala que bem podia ter sido retirada duma cena de “O Passageiro em trânsito”, opus magister, do Cristóvão de Aguiar.
As línguas entrecruzavam-se com os idioletos dos emigrados que não falam nem português nem inglês. Numa banda desenhada os olhares atónitos dos estrangeiros surgiriam acompanhados de balões com pontos de interrogação descomunais. O silêncio imperava nos altifalantes contrastando com o alvoroço dos candidatos a viajantes. O sistema sonoro do Aeroporto Papa Paulo II, Ponta Delgada, ainda é tão arcaico que ninguém consegue entender as mensagens por entre o alvoroço habitual. As pessoas movem-se, umas atrás das outras, num espírito cego do carneirismo em resposta a apelos imaginados ou anúncios que a SATA nunca fez…A partida prevista para as 08.30 aconteceu pelas 10.20. Avisara já o seu anfitrião cujo banho matinal nas Poças de São Roque do Pico estava irremediavelmente arruinado.
É sempre imponente ver o avião aproximar-se do cume da montanha do Pico, 2.351 m acima do nível do mar, o mais alto de Portugal e da dorsal mesoatlântica. Medido a partir da zona abissal contígua tem quase 5.000 m de altura. O vulcão é recente (750 mil anos), entrando em atividade pela última vez no séc. XVIII a sueste (São João). A Ilha estende-se por 447 km², 42 km de comprimento e 15,2 de largura. Não se sabe a data da sua descoberta, alvitrando-se que a sua colonização se terá iniciado por 1480, com gente oriunda da região norte de Portugal.
A importante vinha, que alterou a paisagem e a cultura ocidental da Ilha, foi classificada em 2004 Património da Humanidade pela UNESCO. Outra atividade da Ilha está patente no Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico. A caça à Baleia, desenvolvida e influenciada pela presença norte-americana desde finais do século XVIII, está hoje transformada em viagens de observação destes cetáceos a que pomposamente se chama de “whale-watching” como se não houvesse equivalente lusófono.
A arquitetura típica é de casario simples, branco com blocos de lava preta, que espelha a origem vulcânica da Ilha. Lugares como Lajes, São Roque e Madalena, estão cheios de história e património, ou de encanto natural como a Gruta das Torres, as Furnas de Frei Matias ou o Arco do Cachorro. A Ilha oferece uma boa gastronomia baseada em peixe e marisco, sendo famosas as caldeiradas. A saborosa carne provém dos pastos abundantes e é afamado o queijo (de São João e do Arrife). Tudo regado pelo Vinho Verdelho.
Convirá recordar, para quem eventualmente não saiba, qual a gesta das gentes do Pico ao longo da conturbada história da ilha, que durante séculos foi considerada uma “quinta” da fidalguia da ilha do Faial. Comecemos pelas desgraças naturais
1562-1564 — Erupção vulcânica na Prainha do Norte –
Em 21 de setembro de 1562, após prolongado tremor de terra, que terá durado um “terço de hora”, acompanhado de grande estrondo, & logo em hum lago, & por cinco bocas arrebentou tal fogo, que delle, & de polme ardente correo huma ribeyra por espaço de huma légoa, até se meter no mar do Norte, & no mesmo mar formou, com entrada nelle de hum tiro de arcabuz, aquele grande caes de pedraria abrazada, […] e affirma o douto Fructuoso, que foi taõ grande o fogo, que todas as mais Ilhas Terceyras se allumiaraõ com elle, & até na de São Miguel fez da escura noyte claro dia”, diz o padre António Cordeiro na sua História Insulana das Ilhas a Portugal Sugeytas no Oceano Occidental (pág. 477 edição Prínceps).
1713-1714 — Um mau ano agrícola,
A que não foi alheio o ciclone tropical de 25 de setembro 1713, levou a que no Pico o povo comesse “socas e raízes” para sobreviver. Também uma epidemia de peste provocou milhares de mortos. No Pico terão morrido 5.000 pessoas e no Faial 500 entre as quais 49 religiosos dos conventos da Horta.
1718 — Erupção em Santa Luzia do Pico –
A 1 de fevereiro, pelas 6 da madrugada, ouviu-se uma “espantosa trovoada que encheu de terror os hortenses” e iniciou-se uma erupção vulcânica entre Bandeiras e Santa Luzia, surgindo torrentes de lava que rapidamente formaram um extenso mistério (de Santa Luzia) que penetrou mar adentro.
1720 — Erupção no Soldão, Lajes do Pico –
A 10 de julho iniciou-se por “dezasseis bocas nas faldas do Pico, por detrás do cabeço do Soldão” uma erupção que “inundou de fogo” perto de uma légua quadrada, consumindo terras e vinhedos e destruindo 30 casas “cujos moradores salvaram suas vidas fugindo precipitadamente”. A erupção foi precedida de numerosos sismos e perdurou até dezembro daquele ano.
1744 — Ciclone tropical causa grandes cheias
A 5 de outubro “caíram nestas ilhas copiosíssimas chuvas que inundaram as terras correndo em caudalosas ribeiras”. Na Prainha do Galeão (Pico) morreram 7 pessoas arrastadas ao mar; na Prainha do Norte (Pico) morreram 6 e outras 5 pereceram em São Roque.
1745-1746 — Mau ano agrícola
Provoca fome e emigração em massa – como resultado das cheias de 1744 e do mau ano agrícola que se seguiu, em 1746 faltaram os cereais, havendo fome generalizada. No Pico, o povo “recorreu a socas e raízes para manter a vida e faltando-lhe esse mísero alimento emigrou para as mais ilhas”. Em resultado da desnutrição grassavam as doenças, fazendo grande mortandade. Face a esta situação, por alvará régio foi autorizada a emigração para o Brasil, tendo partido pelo menos 1600 pessoas.
1757 — Grande terramoto de São Jorge –
Em 9 de julho de 1757 um dos mais violentos, senão o mais violento, dos terramotos de que há memória atingiu São Jorge causando destruição generalizada e formando muitas das atuais fajãs, entre elas a da Caldeira de Santo Cristo. O terramoto ficou conhecido na tradição popular pelo Mandado de Deus. Dos grandes deslizamentos resultou um maremoto que atingiu todo o Grupo Central. Pelo menos 1053 pessoas morreram em São Jorge e 11 no Pico. “O terramoto foi tal que a norte desta ilha, distância de 100 braças, pouco mais, se levantaram dezoito ilhotas, umas maiores que outras. Apareceram todas na manhã do dia 10 [de julho]. É navegável o mar entre as ditas, e a ilha. Nas Fajãs dos Vimes, São João e Cubres, se moveu a terra, voltando-se do centro para cima, de sorte que nelas não há sinal [de] onde houvesse edifício” …
1963 — Crise sísmica e erupção submarina frente a Santo Luzia, Pico
– Entre os dias 12 e 15 de dezembro um tremor vulcânico com foco ao largo do Cachorro, Santo Luzia, costa norte do Pico. O tremor foi contínuo nos dias 13 e 14 de dezembro. A 15, com bom tempo e boa visibilidade, pessoas do Faial e Pico avistaram “bolas ou nuvens de vapor” saindo do mar frente ao Cachorro. Não foi recolhido qualquer material e o fenómeno não voltou a ser avistado, não se registando quaisquer danos.
1973 — Crise sísmica no Pico e Faial –
A partir de 11 de outubro começaram a ser sentidos numerosos sismos nas ilhas do Pico, Faial e São Jorge, com destaque para a freguesia de São Mateus e o lugar da Terra do Pão, no Pico. A 23 de novembro, pelas 12 h 36 min registou-se um violento sismo (grau 7/8 da escala Wood-Neumann) com epicentro próximo a Santo António. O sismo provocou graves danos, com muitas casas parcialmente destruídas, muros caídos e estradas obstruídas, nas freguesias de Bandeiras, Santa Luzia, Santo António, e São Roque, na costa norte, São Mateus, na costa sul do Pico, e ainda nas freguesias de Conceição, Matriz e Flamengos, no Faial.
1998 — Sismo de 9 de julho, Faial, Pico e São Jorge
– Pelas 5:19 da madrugada um sismo de magnitude 5,6 na escala de Richter com epicentro a NNE da ilha do Faial provocou destruição generalizada nas freguesias de Ribeirinha, Pedro Miguel, Salão e Cedros no Faial e fortes danos em Castelo Branco (Lombega), Flamengos e Praia do Almoxarife, também no Faial. Também atingidas foram várias localidades da ilha do Pico. No extremo oeste de São Jorge (Rosais) o sismo provocou grandes desabamentos de falésias costeiras. Morreram 8 pessoas, no Faial. Ficaram desalojadas 1700 pessoas.
Para que os primeiros colonos cultivassem as terras foi necessário desbastar densos arvoredos que proporcionavam matéria-prima para exportação e para construção naval (cedro). O cultivo de cereais, sobretudo o trigo, e a criação de gado foram as atividades predominantes. A produção de pastel e a sua industrialização para exportação destinada a tinturaria também desempenhou um papel relevante na economia do arquipélago. Esta atingiu o auge quando a cana-de-açúcar (sem grandes resultados económicos) e o trigo entraram em decadência.
No século XVII, as matérias-primas tintureiras foram substituídas pelo linho e laranjas. Foi introduzido o milho, para melhoria alimentar da população e apoio à pecuária. A exportação de laranjas surgiu no século XVIII, quando foi introduzida a cultura da batata. Em finais de Setecentos, regista-se o início de uma expressiva e emblemática atividade económica açoriana: a caça ao cachalote. No séc. XVIII, os Açores já tinham uma população suficientemente grande para que a Coroa incentivasse a emigração para terras brasileiras. No ano de 1460 foi concedida a Álvaro Ornelas, capitão donatário da ilha da Madeira, a carta de primeiro capitão-donatário do Pico, cabendo-lhe a responsabilidade pelo seu povoamento. Nunca demonstrou interesse pela ilha, sabendo-a inóspita e por viver na Madeira.
Houve duas abordagens à ilha, uma pelo lado sul, Lajes em 1460, e outra pelo lado norte, São Roque, em 1470. A zona oeste continuou totalmente desabitada, coberta por um manto de lava onde não existia qualquer terra cultivável, nem corria água que permitisse abastecer quem lá se quisesse instalar. Entre São Mateus e Santa Luzia não havia qualquer ribeira. O flamengo Jos Dutra, capitão donatário do Faial, pediu à coroa portuguesa a carta de capitão donatário para o Pico, que foi concedida em 1482, tornando-se assim, no seu segundo donatário. Dutra organizou o primeiro grupo de povoadores, em São Mateus.
Reza a história que Frei Pedro Gigante, primeiro pároco da ilha, plantou as primeiras videiras no lugar de Silveira, vindas da Madeira dizem uns, ou de Chipre dizem outros. Há relatos que dizem que a plantação de vinhas se estendeu para sul (Santa Bárbara) e norte (Prainha do Norte). A comunidade do Faial iniciou o ciclo do vinho verdelho, plantando bacelos de vinha nas rochas de lava, tendo obtido bons resultados com boas parreiras e uvas de qualidade. Os habitantes trabalharam arduamente e à força de barra de ferro e marrões, quebraram a lava, abriram covas onde colocaram terra para plantar vinha obtendo um vinho muito bom e de grande teor alcoólico. A plantação das vinhas era feita a partir da costa desabrigada, estando sujeitas ao rossio de água salgada entre os meses de abril e junho. Para combater o problema e amanhar a lava retirada para a plantação dos bacelos, assistiu-se a outra tarefa gigantesca: a construção de muros de pedra solta com um metro de altura. Tendo em conta a orientação predominante dos rossios do mar foram-se construindo paredes com cinquenta metros de comprido, paralelas umas às outras, distando entre si dois a três metros, terminando junto a uma vereda transversal, a servidão. A área entre duas servidões paralelas e contíguas chamava-se “Jarrão”. Em cada canada construíram muros transversais, “traveses” que distavam entre si cinco metros e em que de um dos lados não chegava à parede da canada, dando lugar a uma passagem, a “bocaina” sendo colocadas em posições alternadas para maior proteção dos ventos. O espaço na canada entre dois “traveses” contíguos chamava-se curral.
Produziam-se mais de duas mil pipas de vinho por ano no final do séc. XVI. A produção foi crescendo. Relatos do clero afirmaram, exageradamente, que a produção chegou às trinta mil pipas. É nesta época áurea que os proprietários, quase todos do Faial, constroem os seus solares junto à costa, verdadeiras casas de veraneio, com armazéns, lagares e alambiques. Foram construídos em todos eles poços de maré para fazer face à falta de água. Também se construíram poços de maré em lugares públicos, para permitir à população o abastecimento de água, nomeadamente no verão. A tarefa não era fácil pois as casas situavam-se acima das áreas das vinhas e distantes da costa onde se situavam os poços. Neste período construíram-se pequenos portos ou embarcadouros, junto aos locais onde o vinho era produzido. Para lá chegar foi necessário aplanar as rochas para levar o vinho, a essas construções chamaram-lhes “rola-pipas”.
A quase totalidade do vinho produzido era transportada para o Faial em pequenos barcos, até ao fim do verão, aproveitando os mares calmos. Ali ficavam armazenados até à exportação para o norte da Europa, Índias Ocidentais, América do Norte ou Brasil. Uma das mais importantes casas do Faial na exportação do vinho do Pico, foi “De Sobradello & Co”. No séc. XIX a casa Dabney foi outro grande exportador do vinho e a que mais contribuiu para que o vinho fosse pago a um preço mais justo para o produtor. Em 1852 um pó branco cobriu totalmente as uvas, desde a floração até à maturação, destruindo-as inteiramente e alastrando a todas as vinhas. A produção caiu para uma centena de pipas. As casas ricas do Faial, cuja fonte de rendimento era o vinho, viram-se obrigadas a vender as vinhas ao desbarato. Passou-se do pequeno latifúndio para o minifúndio. Os trabalhadores perderam os rendimentos ficando sem dinheiro para comprar os cereais do Faial, para a sua alimentação. Assim, se empreendeu nova proeza, a de desmanchar terras, partindo e separando a pedra, fazendo pequenas hortas e serrados, onde se cultivava milho, batata, inhame, etc. Amontoou-se a pedra de forma organizada em enormes “maroiços”, autênticos monumentos num rendilhado de paredes.
Diz Susana Goulart Costa da Universidade dos Açores
http://www.inventario.iacultura.pt/pico/s-roque/historia.html
Da década de 1480 até meados do século seguinte, o crescimento populacional terá decorrido num ritmo positivo. Nos finais do século XV, surge nas Lajes o primeiro município e em meados do século XVI, a norte da ilha, S. Roque. Em 1542, os habitantes pedem ao rei D. João III a criação da segunda vila, apresentando-lhe a “opressão que os moradores das freguezias de nossa Senhora d’Ajuda e de São Roque da ilha do Pico da banda do norte recebiam em ser mal providos de justiça por os ditos lugares serem longe da vila das Lages de cuja jurisdição eram e o caminho ser muito mau de montanha e serra aspera e se faziam muitos males e roubos em suas terra por a justiça da dita vila não poder a isso acudir a tempo…”
Nos finais do século XVI, a população era de 3432, no final da centúria seguinte eram 8720 com aumento relevante em São Roque. Do século XVI para o XVII, surgem cinco novas freguesias, quatro no novo município: Santa Luzia, Santo António, Santo Amaro e Bandeiras. Em 1871, São Roque possui 6674 pessoas, Lajes 9733 pessoas e a Madalena 9025. Importante foi o contributo de povoadores de origem portuguesa, que provavelmente já estiveram na Madeira ou na Terceira… A primeira zona habitada foi a das Lajes, a sul. A origem metropolitana dos primeiros povoadores foi determinante na organização da sociedade, transplantando-se a organização social reinol: uma pequena nobreza, que se distingue pela posse de terras; uma forte presença do clero secular e regular (franciscanos); e um terceiro grupo, de mercadores, artífices, trabalhadores rurais e artesãos.
Há presença de judeus, comprovada nas Lajes nos inícios do século XVI e na Madalena, no século XIX; e de escravos para o trabalho rural e doméstico. Ao longo do tempo foram-se misturando com a população, deixando de constituir um grupo identificável. Desta amálgama se formou o caráter picoense, descrito por António Lourenço da Silveira Macedo, na obra História das Quatro Ilhas que formam o Distrito da Horta, de 1871: “São os picoenses geralmente dotados d’uma indole pacifica, laboriosos, engenhosos e robustos, sobretudo as mulheres, que muito ajudam os homens nos trabalhos rurais”.
Na Regeneração, as reformas na contribuição predial geraram levantamentos populares protagonizados por mulheres. Perante estes “barulhos”, o poder central enviou uma esquadra do continente para acalmar os levantamentos femininos na Candelária e na Madalena. Na segunda metade do século XIX, o cultivo de laranjas, maçãs, pêssegos e figos (estes últimos na produção de aguardente) tornou-se uma importante alternativa. Tornou-se hábito diário a deslocação de picoenses para o Faial para venda da fruta. A criação de gado foi uma importante atividade, exercida desde a descoberta da ilha. Antes do povoamento, as pastagens foram utilizadas para a criação de gado, exploradas por habitantes do Faial e da Terceira. As caraterísticas da orla marítima explicam a reduzida faina piscatória, mera atividade de subsistência, mais representativa na Madalena e Santo Amaro. No séc. XIX há uma efetiva exploração marítima, com a caça à baleia e assim se formou a imagem do baleeiro, associada como caraterística tradicional da Ilha do Pico.
74.2. SOBRE O PICO…
A respeito desta recente paixão pelo Pico a Rosário Girão compilara os seguintes textos que enviara numa partilha literária incomum:
“Sopraram sobre a ilha os ventos da mudança, seguidos de pássaros metálicos que têm pousado para as bandas das Lajes; mas o iate arrimado ao Porto de Pipas prolonga o cirandar periclitante dos barcos do Pico através do Arquipélago. São ousados e de pouca segurança técnica, os iates, e mesmo assim raramente enjeitam carga. Têm mastros e motor, […]. Navegam num passado recente igual ao meu presente e resistem às leis ditadas por senhores engravatados em gabinetes sem horizontes.” (GARCIA, José Martins, O Medo, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Coleção Gaivota 25, 1982, pp. 11-12).
“A montanha, pano de fundo de variado colorido, caprichava no moldar das nuvens. No inverno cobria-se de neve até aos baldios. E em raras tardes límpidas de verão, anilava-se de encontro à abobada. Muita gente jurava ter avistado em madrugadas serenas uma coluna de fumo a emergir da cratera, embora os mais sábios falassem dum vulcão extinto e remetessem para um passado efetivamente findo os grandes arrotos de lava.” (GARCIA, José Martins, A Fome. Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 2ª edição, 1978, p. 12).
“Pela primeira vez reparei na ameaça instalada no cimo do Pico. A montanha não era essencialmente a beleza, como certas fotografias nos davam a entender. Era, sim, um rosto autoritário, guardando o segredo da próxima erupção. Metia medo sob a luz leitosa das manhãs. Vivíamos, no Pico, de costas voltadas para a montanha. Vista do Faial, cara a cara, a montanha parecia uma permanente ameaça. Talvez por medo inconsciente se falasse tanto dos fins dos tempos. […] E contudo, na tarde límpida, o cume anilado do Pico parecia sorrir, bondoso. Deus e o Diabo podiam bem revezar-se no comando dos nossos destinos, consoante as flutuações do segredo da montanha.” (GARCIA, José Martins, Contrabando original. Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 1997, 2ª edição, pp. 85-86).
“Ao dobrarem, já com umas duas horas a navegar, o Castelete, do lado leste da vila, que domina, surge-lhes, para além do casario dos povoados, a majestade assombrosa da Montanha, toda branca de neve que a cobre, sempre a mudar de aspeto enquanto deixando para trás as Lajes com sua fidalguia de pataco, atravessam a longa Baía da Vila, passam, ao largo, pelo porto de S. João queijeiro, adiante pela Terra do Pão, depois pela afamada Baía da Prainha do Galeão, a seguir abicam à lendária Ponta de Santa Catarina, não sei se também chamada Ponta do Espartel, com isto entram em águas de S. Mateus, o grosso da freguesia um tanto arredada mais para o interior, aqui a Montanha, de que se não avista o cume, como que se torna uma inimaginável mole a querer sobre ela se abater e esmagá-la, e logo estão a entrar no porto.
O pequeno porto de S. Mateus. […]. Foram. No céu limpo de nuvens havia sol. Na terra calor. Viria só dele, do Sol, ou também refletido pelo colosso da Montanha com o Sol entretanto aquecida?” (MELO, José Dias de, A montanha cobria-se de negro. Ponta Delgada, Ver Açor, Lda, 2008, pp. 143-144-170).
“Era um lastro de mistério:
pedra ardida
preta e roxa.
Mas o homem, esse tal
Fernão Alvres Evangelho
e os que vieram após,
com seu saber de flamengos,
‘Vai ou racha’ – portugueses,
e hábeis mãos de italianos,
dos tufos fizeram terra
e, sem milagre nenhum,
semeando e aplantando
multiplicaram por mil
as sementes e as estacas
na casca daquele invento,
para as covas e os tonéis. […]
Antes, e continuando
sem mais nomes sobre os feitos,
direi que feito o milagre
(e cá me torna a palavra!)
de mudar em terra pedras,
o Picaroto (assim mesmo)
desceu às praias do mar,
que são negrume, calhau,
fez-se à água, navegou-a,
foi de ilha em ilha, passou
para lá dos pegos delas:
longes de longes nos olhos
e mais nos calos das mãos: […]
… E não acabo – não posso! –
a conta dos contos idos,
mais d’agora e que hão de vir,
desta gente picarota
feita de lava e salmouras,
mole na fala, de ferro
nos arriscos do trabalho.
Não posso, não há palavras! […]”
(Cf. SILVEIRA, Pedro da, fui ao mar buscar laranjas 1, “Diário de Bordo”, “Costeando o Pico”, pp. 167-168-169).
Esta era, aliás, a história que já aprendera em visitas anteriores. Levantei a viatura de aluguer no aeroporto do Pico, depois de ter tomado um café (a “italiana” habitual) de sabor indistinto num bar pachorrento como as vacas picoenses, enquanto me ajustava ao calor e humidade. Metemo-nos a caminho por essas boas estradas que a ilha do Pico tem. Fazem inveja às restantes ilhas, pois nenhuma foi bafejada com tanta reta asfaltada. A maior terá mais de nove quilómetros…Apesar de ter estado, apenas por duas vezes, na ilha senti que esta era uma velha conhecida e o mapa continuou guardado na pasta dos documentos.
Fomos almoçar ao Clube Naval de São Roque com um bom serviço de “buffet” ao preço de sete euros e café incluído. O Cristóvão de Aguiar proclamou-se guia e levou-nos às Lajes do Pico onde se celebrava mais uma “Semana dos Baleeiros” normalmente após a “Semana do Mar” na Horta. Tive de mudar a anterior opinião sobre as Lajes logo que visitamos o que resta das muralhas do forte (ora reconstruídas e aproveitadas como espaço turístico) e o Centro de Artes e Ciências do Mar (instalado na antiga fábrica da baleia SIBIL, equipamento industrial que se dedicou à transformação dos grandes cetáceos em óleos e farinhas). Havia lá uma moderna livraria, a única digna desse nome nas ilhas do triângulo. Nela encontramos inúmeros livros para acrescentar à coleção de autores açorianos. A surpresa foi ver o último livro deste autor “a CHRÓNICAÇORES”, incluído na “literatura açoriana”. Em amena cavaqueira dizia o Cristóvão que tinha conseguido algo que eu almejava, ver alguém a ler um livro seu. Foi então que a jovem funcionária, Cláudia de sua graça, declarou que tinha adquirido o livro “CHRÓNICAÇORES: uma circum-navegação” e estava a lê-lo em casa. Aproveitei para autografar outra cópia, com o ego exultante por estar ao lado dum célebre autor e ser eu a autografar o primeiro volume da pretensiosa trilogia. Claro está que após este incidente, as Lajes do Pico pareceram mais bonitas, mais soalheiras e convidativas do que nas visitas anteriores.
Vi ainda a expansão do Museu instalado nas três casas originais de botes do século XIX. Este Museu dos Baleeiros é o único na Europa. Além de expor uma interessante coleção de “scrimshaw” tem uma pequena biblioteca com documentos, mapas, cópias de livros de bordo e ainda uma “tenda de ferreiro” onde é possível aprender como eram fabricados diversos utensílios metálicos usados na caça da baleia. Sentamo-nos numa esplanada na marginal a dessedentarmo-nos enquanto se punha a conversa em dia, antes de subirmos ao Alto da Rocha do Canto da Baía para visitar a “Cabana do Pai Tomás”. Satisfiz assim a curiosidade de visitar a casa de Dias de Melo. Nas viagens anteriores ainda não conhecia o autor. Ali, espartanamente vivera, numa casa pequena e humilde, ora telhada de novo. O desconforto de uma minúscula casa de banho exterior no piso térreo. Em cima, o autor dormia, comia e escrevia. Do pátio exterior avistava-se a imensa mancha de Mar Oceano ponteada pelo pequeno farol da Calheta de Nesquim que serviria de inspiração a tantos dos seus livros.
Em linguagem cinematográfica chama-se a isto um “fast-forward” em que se rebobina a imagem e se passa adiante. Após 4 dias e cinco noites de convívio intenso e aprendizagem ilimitada na ilha do Pico, estava já em posição de aceitar que Cristóvão tinha razão ao afirmar o que afirmava sobre a literatura açoriana… Depois de ler quase todas as obras de Dias de Melo, salvavam-se as baleias, outro livro mais intimista como “À Boquinha da Noite (2001) e pouco mais. Li e detestei “O Menino deixou de ser menino” (1995) e “Pena dela, saudades de mim” (1994) dum neorrealismo primário e básico que nada tem a ver com os livros mais antigos sobre os baleeiros.
Onésimo como croniqueiro tinha as inúmeras piadas que sempre o caraterizaram, beneficiando da fama e do apoio das instâncias oficiais e da clique local. Nesta se incluem nomes menores da literatura local que se adoram e veneram mutuamente. Daniel de Sá tem talvez como uma das suas melhores obras, a novela “O Pastor das Casas Mortas” e obras mais antigas (sobretudo “Ilha grande fechada” (1992) embora os seus livros sejam curtos. Excluía a obra religiosa por razões óbvias, não a podia apreciar. Ressalvava bons textos que surgiram, nos últimos anos, em livros ou guias de turismo como “Santa Maria Ilha-Mãe”, “S. Miguel, a ilha esculpida” e outro sobre a Terceira. Entretanto, já lera outros poetas e escritores açorianos espantosos de quem poucos falavam. Martins Garcia era um deles…O problema é que sem querer metera-me (e aos Colóquios) numa toca de lobos de interesse esconsos e panelinhas em que pontificam menos valias. Ora bem, a minha autocrítica ao fim de 4 dias perante o Cristóvão, escritor maldito e malquisto nas hostes açorianas, era a seguinte: embandeirara eu em arco, louvando exageradamente, adjetivando em excesso e elevando aos píncaros Dias de Melo, João de Melo, Onésimo de Almeida, Daniel de Sá e Cristóvão de Aguiar, sem conhecer os restantes e sem separar o trigo do joio. Gostava do Cristóvão, do Daniel e do Onésimo. De todos era amigo, mas existiam outros autores para desvendar. De dezenas já lidas e folheadas a maioria não tinha a tal qualidade de que Cristóvão tanto falava. Sendo um forasteiro deixara-se iludir pela açorianidade, pela beleza narrativa das ilhas e de seus costumes ancestrais. Embalara-se no canto das suas sereias. “O Pastor das Casas Mortas” fora já traduzido por mim para inglês, a que, em breve, se seguirá a tradução para castelhano. Dias de Melo até para japonês já fora traduzido. Cristóvão ainda não. Nem outros escritores e poetas que o mereciam. Um crime de lesa literatura. Iria eu concentrar os esforços dos colóquios para os editar no Brasil e traduzi-los. Teria de ler os restantes para apreciar a sua universalidade, além da matriz açoriana que a todos permeia. Sabia agora que incorrera juntamente com Zélia Borges, Dina Ferreira e Rosário Girão, numa possível falácia de tomar a nuvem por Juno e louvaminhado em excesso os autores que os colóquios divulgaram. Teriam de ser mais parcos nos encómios sob pena de descredibilizar os colóquios que tão prontamente se ergueram como paladinos da literatura de matriz açoriana. Dias de Melo e Daniel de Sá já têm a editora VerAçor a traduzi-los e divulgá-los em vários quadrantes, falta agora fazer o mesmo para Cristóvão de Aguiar, um escritor universal com uma vastíssima obra.
Em Bragança no 8º Colóquio iria iniciar uma campanha para o traduzir (Bulgária, no futuro Roménia, Polónia, Eslovénia). No Brasil tentaria quem o quisesse editar. Iria tentar a editora Almedina, no Brasil, para apresentar no 5º Encontro da Lusofonia, edições de “Tabuada do Tempo” e de “Torga Lavrador das Letras” do Cristóvão de Aguiar. A Almedina deveria editar no Brasil estes e outros livros pois não há direitos de editora para a maior parte deles. Se pudesse concentrar esforços talvez conseguisse algo até março – abril 2010.
Regresso à narrativa, de novo, à ilha para contar que além de ter visto as lagoas todas com mais calma, ficara assustado com a eutrofização delas (exceção feita à do Capitão). Na Lagoa seguinte, a do Peixinho além de umas trinta vacas se dessedentarem havia um autotanque de agricultores a retirar a parca água que restava. Como havia seca os agricultores tinham de lá ir abastecer-se. Com umas boas chuvadas tudo voltava ao normal. Não acredito, pois, a eutrofização não se deve resolver com umas chuvadas. Fico triste. As autoridades deveriam preservar as lagoas para turista ver. Andam tão empenhados em aumentar o número de turistas e esquecem-se que nem todos vão escalar a mais alta montanha de Portugal. Infelizmente, dias depois, era anunciado que os lavradores poderiam retirar água da Lagoa do Capitão.
lagoa do paul Antes (2007) e depois (2009)
Foi lá que fotografei uma das minhas melhores imagens de 35 anos de fotografia.
Faltava apenas ver duas coisas, e uma delas não a consegui encontrar apesar de ter perguntado aos locais: a Furna de Frei Matias. Andei em círculos e em ziguezague por estradas de terra e de asfalto, segui as placas indicativas e as orientações, mas faltou encontrar uma placa azul que seria o “Abre-te Sésamo” para me levar ao local que todos garantem merecer visita obrigatória. Na última manhã abdiquei doutras atividades para fazer mais uma tentativa, mas apenas consumira gasolina e anidrido carbónico sem resultados. Mais aturdido fiquei ao ver totalmente seca a mais bela de todas: a do Paul, mirrada, sem as manifestações espontâneas de árvores endémicas como espigos-de-cedro (Arceuthobium Azorica) nas suas margens e onde dantes havia água pastavam agora uns três cavalos. Podem os leitores seguir viagem através de excertos da bíblia dos que mal sabem ler ou não têm tempo ou disposição para o fazer, a Reader’s Digest:
http://www.seleccoes.pt/Viver/Lazer/detalhe.asp?tipo=detalhe&ID=303
No Pico, entra-se por duas portas: o cais da Madalena e o aeroporto. A mais antiga e ainda a melhor entrada é a marítima, utilizando os novos barcos, as “lanchas” ou “cruzeiros” – o do Canal e o das Ilhas -, e fazendo a travessia do canal entre o Faial e o Pico. Desde os mais remotos tempos do povoamento, pelo lugar dos Ilhéus – o Ilhéu em Pé e o Ilhéu Deitado – se partia ou chegava. Hoje continua a navegar-se neste canal, por onde circulam 300 000 passageiros anualmente, quando as duas ilhas apenas somam pouco mais de 30 000 habitantes.
Antigamente, quando havia passageiros para atravessar o canal, faziam sinais na costa com um lençol branco e, do Faial, partia a lancha, pois no Pico não havia condições de manter a embarcação em segurança por falta de porto. Os portos do Pico são uma realidade construída no pós-25 de abril.
De carro, para norte, pode sair da Madalena por dois caminhos: o que passa pelo interior da vila e o outro, junto à costa, acompanhante de uma paisagem ao lado de salgueiros e araucárias (na Formosinha) enormes. Se for pelo caminho do mar, pare no Cachorro; se for pela estrada regional, desça o ramal do aeroporto. Uma autêntica “boca do inferno” onde a lava se precipitou no mar e fez uma obra de arte de arcos e buracos aterradores, sinais inequívocos da origem vulcânica das ilhas.
Junto à costa, com o aeroporto à direita, ao lado de pinheiros que recobriram extensas áreas de lava escorrida, “mistérios”, encontram-se duas pequenas povoações, o Lajido e os Arcos, totalmente recuperadas e reconstruídas, que trazem à memória antigos trabalhos nas vinhas e na apanha dos figos para a aguardente, e que, tal como outra vasta zona, estão incluídas na Paisagem Protegida da Vinha do Pico e em fase de classificação pela UNESCO como património cultural da Humanidade.
Afastando-se do mar em direção a Santa Luzia, visite um projeto de absoluta vida natural, recuperação de casas abandonadas, organização natural do ideal de vida. Leve umas imagens desta fantástica ilha, dos negros das casas de pedra, dos verdes de incensos e faias. Os caminhos do Pico são viagens, trajetórias de íntimo contacto com a Natureza, o verdadeiro monumento da ilha. Ao chegar ao cais do Pico, na vila de S. Roque, é absolutamente obrigatório embrenhar-se pela aventura gigantesca do homem do Pico – a gesta da baleação. A caça à baleia terminou, mas a recordação perdurará na memória destas gentes.
Visite o Museu Industrial da Baleia, no cais onde centenas e centenas de baleias foram transformadas, observe o Convento de S. Pedro de Alcântara, saia da estrada principal e percorra a costa de S. Roque, volte à estrada em S. Miguel Arcanjo, e por entre pinheiros, faias, incensos, acácias e criptomérias, desça pelo mistério da Prainha do Norte (parque florestal). Contemple a paisagem, o silêncio cortado pelo cantar dos garajaus e gaivotas, com S. Jorge ali em frente, merendar e descansar em tamanho conforto ambiental é privilégio possível. Santo Amaro espera mais à frente. Aqui se construíram os barcos, traineiras, as lanchas da travessia do canal e tantos outros barcos.
Hoje não existe a indústria de construção naval, mas desenvolve-se outra atividade de grande qualidade – a escola de artesanato. No percurso rumo à ponta da ilha, poder-se-á desfrutar no Miradouro da Terra Alta, de uma estonteante vertigem de altitude sobranceira ao mar, sempre com S. Jorge de sentinela esguia e amiga. É altura para demandar a Calheta de Nesquim e, no Alto da Rocha encontrar a “cabana” do grande escritor da aventura das baleias de outrora e da dimensão humana que a envolvia – Dias de Melo.
Em frente, por entre arvoredos e curvas, com o mar do lado esquerdo, encontra-se a mais asseada freguesia do Pico, as Ribeiras, das casas brancas, das traineiras do atum, mas vêm-nos à lembrança as Festas do Espírito Santo. Nas Ribeiras são especiais, mas estão a americanizar-se.
No fim da primavera, chegam as festas mais representativas da ilha. Apressemo-nos para as Lajes, a vila baleeira, e depois da panorâmica vista sobre a vila mais antiga e mais urbana do Pico, com a montanha ao fundo, e na expetativa de ver o famoso Museu dos Baleeiros, almoce e depois dê passeios a pé pelo interior das Lajes e entre no museu. O melhor será voltar noutro dia. As razões e as sugestões são ótimas: fazer mergulho, ir ao “whale watching”, pescar ou apenas nadar na Maré.
Talvez até possa jogar golfe. No Museu dos Baleeiros, encontra magníficas coleções de “scrimshaw”, trabalho artesanal sobre dente ou osso de baleia, e variados aspetos da vida do baleeiro, homem do mar e da terra, com destaque para a canoa baleeira, considerada como o “móvel” mais elegante e perfeito do Mundo. Quando chegar à Silveira, volte à direita pela estrada transversal e suba até ao Corre-Água, entre numa reta de 9 km e passe pela lagoa do Capitão. Aqui, suba a encosta e do seu lado direito, observe S. Jorge e algumas povoações da costa norte; do outro lado está a montanha, esperemos que se desnude para si e então faça uma fotografia daquela majestade de lava projetada nas águas da lagoa. Já em plena zona de pastagem do Pico, a uma altitude que em Invernos rigorosos fica coberta de neve, por pouco tempo, reveja a montanha, mas não se esqueça de que temos uma escalada para fazer.
E mal ultrapassado o desvio para o acesso à montanha, logo o Faial se descobre para além do canal. Lá em baixo está a Madalena, mas antes de lá chegar pare na Furna do Frei Matias.
O Pico deve ser a ilha das Furnas. São às centenas, identificadas, mas não exploradas turisticamente. Com companhia e equipamento adequados, quem for amante desta atividade tem na Criação Velha uma das maiores furnas dos Açores, a Gruta das Torres, com centenas de metros de comprimento e, em alguns sítios, cerca de 5 m de altura. Estamos em plena serra, onde se celebrava o Dia do Ajuntamento, num tempo em que a lã das ovelhas pesava na economia familiar. Madalena de novo, percorrida mais de uma centena de quilómetros. Não se está numa ilha…. Aqui é o meio do mar salpicado do verde de uma natureza pujante e mistério.”
No segundo dia da estadia, abusando da paciência do Cristóvão que as conhecia e não queria visitar de novo (ficou no ar condicionado na sala da receção das grutas, à espera), descemos às catacumbas do vulcão do Pico. Conhecida pela altura e beleza do Pico que lhe deu nome e das paisagens que se desfrutam do alto das suas vertentes, a Ilha tem na Gruta das Torres o verdadeiro contraponto das alturas e um atrativo não menos pitoresco. Durante a visita, reparem no projeto arquitetónico do Centro de Apoio aos Visitantes. Graças às suas caraterísticas inovadoras, foi selecionado para o prémio oficial da União Europeia em parceria com a Fundação Mies van der Rohe de Barcelona, “European Union Prize for Contemporary Architecture Mies van der Rohe Award 2007“. As Grutas da Torre estavam fechadas aquando da última estadia no natal de 2007. Ainda só 500 metros estão abertos ao público. Em boa hora as visitei. Não vi as trilobites ou descendentes de tamanhos não observáveis a olho nu. Todos os minutos foram de uma descomunal aprendizagem e de algum temor. Há rochas enormes prestes a descolarem do teto. Uma visita surreal que parecia retirada de uma cena do filme “À procura da arca perdida” sendo os visitantes os “salteadores”. O momento culminante foi quando se apagaram as lanternas de mão e as luzes do capacete de mineiro. Ficamos trinta segundos à luz natural daquele enorme tubo lávico. As cores, as formas e a explicação científica da jovem guia ajudaram a perceber a formação daquele e doutros vulcões. O interior é rico em formações e estalagmites lávicas, bancadas laterais, lava balls, paredes estriadas e lavas encordoadas. Estas visitas fazem sentir a pequena dimensão humana face à natureza mãe que tudo cria e destrói.
A Gruta localiza-se à saída da Criação Velha (Madalena) na encosta ocidental da Montanha. O sistema formou-se quando a lava pahoe-hoe desceu do cone parasítico do Cabeço Bravo entre 500 e 1500 anos. São um conjunto interligado de tubos lávicos que transportaram a lava pahoe-hoe e a lava a ā em épocas distintas. Trata-se da maior gruta açoriana (5 439 metros) com uma altura que chega a atingir 15 metros na entrada que se faz por um algar. O Governo declarou-as monumento regional em março de 2004, um ano antes de abrirem ao público. Ainda não se fizeram todos os reconhecimentos dos restantes quilómetros esperando-se que dentro de dois anos possam abrir mais um segmento.
Lava pahoe-hoe – é uma lava mais fluida, os seus gases estão menos dissolvidos e fluí mais rapidamente, esse tipo de lava formou os lajidos. Na gruta também verifica uma escoada lávica do tipo pahoe-hoe que tem 7 metros de dimensão bastante visível.
Lava AA (Biscoito) – este tipo de lava está associado ao final da erupção, é muito viscoso, tem muitos gases dissolvidos com uma temperatura não muito elevada e vem um pouco como cascalho.
Por instantes foi preciso rastejar tendo em atenção a cabeça e os membros inferiores desnudos para evitar o contacto com os dilacerantes “biscoitos”. O interior é rico em estalactites e estalagmites de lava. A estalactite tubular é um pingo de lava normal que sofre uma fusão de gases ou de vapor de água; depois começa a esticar, até ficar fina e oca por dentro, daí a sua fragilidade. As estalagmites lávicas formam-se a partir das tubulares. O solo natural da gruta é formado por blocos irregulares e soltos que caíram do teto sendo constituídos por lavas de vários tipos. A gruta encontra-se muito bem preservada. As paredes estão revestidas por óxidos de sílica nalgumas zonas. As estalactites vermelhas são uma bagacina vermelha formada por piroclásticos com erupções estrombolianas, onde são dissolvidos bastantes gases e muito ferro.
Na gruta, existem apenas dois tipos de espécies de animais:
Trecus Picoensis (espécie de escaravelho) – endémicos das grutas, mas é muito difícil vê-los porque vivem sob as pedras.
Cicus Azopicaias (espécie de cigarra) – vive nas raízes das plantas.
O restante tempo, dias, tardes e noites picoenses foram ocupados com leituras, discussões e uma enorme aprendizagem. Surgiam em catadupa nomes e obras dos últimos quarenta anos sobre os Açores. Os autores eram açorianos, descendentes, emigrados e outros. Admiti a “mea culpa”. Talvez não existisse “literatura açoriana” per se mas sim uma literatura de matriz açoriana. Muito descobrira naqueles dias com essa enciclopédia devoradora de conhecimentos e de livros que é o escritor Cristóvão de Aguiar, convidado especial do 8º Colóquio Anual da Lusofonia em Bragança. Espera-se que ele possa ajudar com tão vastos conhecimentos para que a cadeira de Estudos Açorianos criada pelos Colóquios e a UNISUL de Santa Catarina (Brasil) seja um sucesso. E que o Breve Curso de Estudos Açorianos da Rosário Girão na Universidade do Minho seja outro. Não ficaria bem numa Crónica deste género acrescentar algo mais que não fossem pequenas notas de viagem como a seguir se explicitam.
As gentes do Pico são afáveis e hospitaleiras como nas restantes ilhas que já visitaram. Um incidente ao almoço num restaurante da Prainha leva a algumas interrogações. Domingo. Salão com todas as mesas ocupadas, mais o andar de baixo. Restavam duas mesas ao ar livre. Uma funcionária veio servi-los. Pelo sotaque era descendente de africanos escravos no Brasil. Disse ser de Pernambuco, que se apaixonara por um Picaroto e em má hora para ali fora viver. Sem rodeios afirmou que os locais eram racistas tratando mal os de fora e desdenhando dos que aceitam empregos que os da terra recusam. A viagem desta jovem seria um tema interessante para desenvolver.
Podia-se fantasiar que em frente a um globo terrestre se interrogara para onde ir. Uma terra começada com a letra “P”. O dedo mindinho que tudo sabe caíra no meio do oceano. Sob a lupa via uns pequenos pontos de terra. Neles estava inscrito o nome Pico. E também Prainha. Ambos começados por “P”. Uma viagem de navegação curiosa entre Pernambuco – Pico – Prainha.
Já afirmei antes que os portugueses eram preconceituosos, racistas quanto à cor e origem dos que com eles se cruzam, olvidados que andam das suas origens e dos seus percursos pelo mundo. Mas são esses mesmos portugueses que sempre denotaram um invulgar caráter e inventividade. Atualmente, é proibido por força de lei, anunciar nas viaturas particulares que as mesmas estão à venda. Pois bem, na longínqua ilha, afastada dos centros de poder inventaram uma nova modalidade comercial “TROCO POR EUROS”. Não infringem a lei pois não vendem a viatura nem anunciam a venda. Apenas a trocam por euros. A troca não é proibida.
Saí do restaurante devastado pela mácula nas gentes da Prainha face à compatriota que ali arribara, mas simultaneamente enternecido pela invenção da “troca por euros”. Ao chegar a casa e parando no café Refúgio, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, ofereceram-me graciosamente o café por ser o último que ali tomava.
Andados uns passos rumo à casa do escritor deparei com uma camioneta de passageiros estacionada aguardando o começo da semana para voltar a trabalhar. Acorreu-me a ideia peregrina de como seria uma aventura “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos seus passageiros. Não seriam cobrados bilhetes. Pararia em todos os locais, podendo deter-se para que fossem contadas as histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos.
Assim me despeço da ilha prometendo voltar um dia, com mais tempo. Voltarei para alugar casa por um mês inteiro e visitar as ilhas ainda desconhecidas pelo navegador sem barco (Graciosa, Flores, Corvo). Há qualquer coisa de mágico, um íman secreto, que atrai e me faz querer viver naquele vulcão. Talvez seja a vontade de ouvir as histórias dos passageiros da camioneta sem rumo. Terei de consultar um especialista para me tratar desta eterna infidelidade, cada nova ilha se transforma em amor, paixão ardente, desejo irreprimido.