CRISTÓVÃO DE AGUIAR, PASSAGEIROS COM POUCO TRÂNSITO, CRÓNICA 104 – 12 AGOSTO 2011

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7.3.2. CRISTÓVÃO DE AGUIAR, PASSAGEIROS COM POUCO TRÂNSITO, CRÓNICA 104 – 12 AGOSTO 2011

Parado no aeroporto da Horta, não sou o Passageiro em trânsito do Cristóvão de Aguiar, nem transporto o Fogo Oculto do Vasco Pereira da Costa, antes deixo que os ponteiros do relógio caiam lentamente, minuto após minuto, por entre o linguajar dos que, comigo, esperam um avião. Como sempre acontece, quando excursiono nestas ilhas atlânticas, nunca tenho vontade de partir: impérvio, permaneço sentado, quase imóvel, no pátio de observação do aeroporto da Horta. Estou de frente para o Pico que me pisca o olho, sorrateiro, por entre as nuvens, escondendo-se, amiúde, dos meus olhos perscrutadores.

Ao contrário do Cristóvão não carrego comigo a ilha e a que transporto não é outra. Não trago a reboque este arquipélago, mas deixar a ilha é sempre uma partida sem regresso marcado, como quem faz um luto indesejado ao correr dos dias. Não levo comigo a dor nem a lágrima furtiva, apenas acalento o desejo do regresso numa noite de luar como o de ontem. Quando houver estrelas no céu quero que sejam as minhas, colar de pérolas para afagar pescoços. Há por aqui passageiros dos quatro cantos do mundo com especial enfoque para os de pé descalço ou mochileiros. Nem a todos descortino as línguas que falam, embora as mais comuns sejam o italiano, francês, alemão e castelhano. Nos intervalos ouvem-se sons que não descodifico. Todos inventam formas diferentes de esperar, mas hoje, a maioria está silenciosa, como o país em luto prolongado pela crise. Já são poucos os que falam.

Uns leem, outros brincam com novos gadgets de tecnologia avançada, tablets, telemóveis de última geração, I-pads, I-pods. Dizia-me há dias o Victor Rui Dores em Londres “devo ser o único aqui sem PC nem outro instrumento.” Não há português a viajar sem computador ou similar. Eu também viajava assim no início dos anos 90, mas agora que é comum, prefiro viajar sem eles e aproveitar para me desligar do mundo, sentir-me em férias de notícias, desgraças, calamidades e correio eletrónico.

Há um casal de meia-idade sentado a uma mesa, não muito distante, ele escreve à moda antiga em grafia rápida com um cigarro na mão, ela lê um livro em papel. Parecem calmos e não temem a passagem do tempo, nem tampouco o apressam para apanharem o avião. Ele olha o Pico de frente, como um toureiro frente ao animal e espera que invista. Ela mantém-se na sombra sob o guarda-sol de costas para a montanha, embrenhada na leitura.

À volta, uma família emigrada prepara o regresso aos EUA com a avó a tiracolo, meio atarantada com o bulício e com as netas que não param de teclar. Mais à direita, um casal alemão aparenta ter acabado de sair das quentes águas do mar e ter-se esquecido de tomar banho na última quinzena. Um pequeno grupo de italianos, de ambos os sexos, fala incessantemente na sua toada musical tão típica. Não sei distinguir pelos sotaques de que regiões provêm. Um casal francês, ao lado permanece, silencioso. Nem uma palavra trocou na última hora. Provavelmente já disseram tudo o que tinham para dizer ao longo dos anos e faltam as palavras para colmatar os silêncios. Nunca um silêncio alheio me tinha doído tanto. Que mistérios se encerrariam naquele emudecimento?

Há espanhóis espalhafatosos, sempre a falarem alto como é seu apanágio, talvez pensem que estão num “comedor” ou num “mesón” a degustar “tapas.” Um açoriano pai ouve a filha com atenção, talvez não tivesse tido tempo durante o ano para a escutar e nem se dá conta do zangão que voa agressivamente tentando pousar numa garrafa de cerveja abandonada na mesa que partilham. Entretanto, com a chegada do voo TAP de Lisboa, muitos se levantaram para o verem aterrar, debruçados nas amuradas de cimento vermelho e azulejos azuis. Muitos não voltaram às mesas da esplanada, deviam ter encontro marcado no voo de regresso. Outros, prosseguiram as suas atividades como se nada se tivesse passado, como se aquele avião não lhes dissesse respeito, ou como se já tivessem visto demasiados aviões, e só aguardassem outra ligação interilhas.

Lentamente, os carros de aluguer enchiam o parque de estacionamento que estivera vazio toda a tarde. Os táxis, carrinhas de transporte e autocarros iam chegando e esvaziando o bojo de passageiros com encontro marcado com o destino.

A senhora que lia um livro em papel, de vez em quando, erguia os olhos para o marido com um sorriso enigmático que só o casal deveria conseguir traduzir, enquanto ele fitava o Pico em busca de uma oportunidade fotográfica que a montanha continuava a recusar. Ambos vestiam roupa do Peter’s da cabeça aos pés e carregavam mais vestuário em duas sacas da mesma marca. Piores ainda que eu. Seria preferência obsessiva ou falta de alternativas?

Esta e outras perguntas jamais seriam feitas, pois passado algum tempo, levantaram-se, deitaram o lixo no contentor e prosseguiram para a sala de embarque.

7.4.1. PICO 2008, CRÓNICA 49, JANEIRO 2008

Ia começar a falar-vos outra vez da magia do Pico e de olhar o Pico pelos olhos de quem está no Faial, Horta.

Tentar transmitir-vos essa atração irreprimível que aquelas duas ilhas exercem sobre mim e que me desejam levar a empacotar a casa e mudar-me para lá, não obstante as mil e uma ameaças de tremores de terra catastróficos e de vulcões semiadormecidos.

Ia falar-vos de como era o Pico com neve em pleno natal. De como era difícil jantar na véspera de Natal, no dia de Natal e dia seguinte (a que os anglófonos chamam de Boxing Day ou para nós prosaicos dia 26 dezembro).

Ia contar-vos como era o vento nos Capelinhos a fazer lembrar o frio que os termómetros não marcavam, assinalavam sempre entre 14 e 17 °C. Dizer-vos que o meu filho benjamim, João, adorou esta visita já que ali não fora em agosto connosco.

Ia dizer-vos que descobri cento e uma crateras na ilha e andamos a ver as pequenas lagoas nas caldeiras de vulcões extintos (dizem 440 mil anos, podem ser menos…). Houve uma paisagem que não esqueço, bucólica e mágica, encantada mesmo, dava a paz interior que nos fez desejar construir uma cabana, naquele sopé do Pico voltado a norte.

Isto pouco depois de ali termos chegado dia 23 de dezembro. Levantamo-nos pelas seis da manhã, o barco da Horta para a Madalena arrancava pelas 07.40 da manhã, que ainda não nascera, armados com o farnel e máquina fotográfica. Levantámos o carro de aluguer, e mal nele entrámos, a chuva começou a cair, a princípio hesitante e depois assertiva, duma forma continuada e sem desfalecimentos. Não me amedrontei, pois, nas ilhas chove, chove, chove e depois brilha o sol outra vez…

Só que no Pico quando chove assim, nunca mais cessa e andamos duas horas ao longo de sinuosas estradas, estreitas, cobertas de água, com a visibilidade reduzida a 10, 20 ou 30 metros, sem saber para onde ir e sem nada ver. Houve um momento, decisivo, em que estávamos a altitude considerável já nas faldas sul do maciço central, em que o vento abanava de forma ameaçadora o carro. Havia mais montanha, pela frente e a chuva impiedosa nada deixava ver.

Indecisos e a medo, retrocedemos, convencidos de que o melhor era voltar à Madalena e apanhar o barco das 13 horas de regresso. Descemos, devagarosamente que a visibilidade era nula, até Santo Amaro e fomos redescobrir por onde andáramos em agosto. Parou-se para um café, a chuva abrandou, o nevoeiro levantou e a esperança de descobrirmos o que faltava conhecer surgiu. Acabámos por voltar à estrada que atravessa o Pico transversalmente e nos sítios por onde andáramos havia lagoas que não tínhamos visto, não obstante estarem a escassos metros da estrada. Estivéramos no sopé do Pico sem o vislumbrarmos.

Recuperamos o sorriso e fomos mostrar ao filhote o resto da ilha que sabíamos iria gostar, nomeadamente os Lajidos do Verdelho com as veredas estreitas tal qual o labirinto de Creta ou Micenos. Regressámos à Horta pelas 18 horas com 300 km de estrada em poucas horas. A promessa de voltarmos ficava então lavrada na lava vulcânica que a todo o passo encontrávamos.

Ia falar-vos do jantar de dia 24 de dezembro, no Hotel Canal, a única unidade hoteleira aberta, pois na sala de jantar imensa éramos apenas nós três e a funcionária. Ia quase pedir-lhe desculpa de a obrigar a estar ali na noite santa, quando um grupo de 7 alemães e outro de 5 espanhóis entrou e deixei de me sentir responsável pela reserva efetuada em outubro. Dia de natal cozinhou-se na pequena kitchenette que tínhamos na habitação (da alemã Ruth Bartenschlager, a “Estrela do Atlântico”) e conseguimos sair duas vezes para tomar um café. Rapidamente se passou a semana que decidíramos passar e tivemos de regressar ao rural meio onde vivemos o resto do ano.

7.4.2. A MAGIA E O MAGNETISMO DO PICO (2009) ATRAEM-ME DE NOVO, SERÁ AQUI O ABISMO? CRÓNICA 74, 09 09 09

Deixei a Lomba da Maia de noite pois nunca se sabe quando se encontram vacas, tratores e carros agrícolas ou, se pelo contrário, se viajará sem transtornos. O trânsito pela sete da manhã era constante. Bem distinto da calma que conheci à minha chegada em 2005. Parte do novo influxo de viaturas deve-se ao empreendimento da SCUT (via rápida sem custos para o utilizador) que avança, lentamente, da Ribeirinha para o Nordeste, desbastando montes, encurtando vales, quebrando rochas milenares, alterando definitivamente a pacata paisagem da costa norte, imutável ao longo de gerações e melhorando, ao de leve, o traçado da estrada centenária.

Há quem sinta nostalgicamente que este progresso avassalador destruirá paisagens milenares intocadas, mas será um alívio para quem conduz do Nordeste à Ribeira Grande. Enquanto durar a construção é dinheiro vivo injetado nos locais por onde a estrada passa. A casa em frente à minha, está para venda há 4 anos, e foi alugada a trabalhadores das obras. Estes irão gastar mais energia da EDA, mais água dos SMAS, indo abastecer-se no minimercado local e no café da esquina…o circuito económico do desenvolvimento alastra-se até à conclusão da obra. Este é, afinal, o ciclo de quatro décadas que a Austrália inventou para ter uma economia sempre crescente.

Era apenas dia 27, mas no aeroporto concentravam-se já cinco voos neste final de agosto, dois para Lisboa, um para o Porto, o do Pico e o das Flores. Apenas sete pessoas antecediam na fila de “check-in” quando os computadores avariaram. As filas pararam mais de 40 minutos e rapidamente cresceram. Mais de uma centena de pessoas. O ar era irrespirável com o calor e humidades próprios da época e do local. A habitual cortesia e hospitalidade dos operadores aéreos (SATA e TAP) para com os clientes e passageiros levou-os a nada comunicarem sobre o acontecido. Fizeram bem, pouparam preocupações aos passageiros sobre assuntos que lhes não diziam respeito.

A turba acumulava-se incomodada naquela sala que bem podia ter sido retirada duma cena de “O Passageiro em trânsito,” opus magister, do Cristóvão de Aguiar. As línguas entrecruzavam-se com os idioletos dos emigrados que não falam nem português nem inglês. Numa banda desenhada os olhares atónitos dos estrangeiros surgiriam acompanhados de balões com pontos de interrogação descomunais. O silêncio imperava nos altifalantes contrastando com o alvoroço dos candidatos a viajantes. O sistema sonoro do Aeroporto Papa Paulo II, Ponta Delgada, ainda é tão arcaico que ninguém consegue entender as mensagens por entre o alvoroço habitual. As pessoas movem-se, umas atrás das outras, num espírito cego do carneirismo em resposta a apelos imaginados ou anúncios que a SATA nunca fez…A partida prevista para as 08.30 aconteceu pelas 10.20. Avisara já o meu anfitrião cujo banho matinal nas Poças de São Roque do Pico estava irremediavelmente arruinado.

É sempre imponente ver o avião aproximar-se do cume do Pico, 2 351 m acima do mar, o mais alto de Portugal e da dorsal mesoatlântica. Medido a partir da zona abissal tem quase 5 mil metros de altura. O vulcão é recente (750 mil anos), em atividade pela última vez no séc. XVIII a sueste (São João). A Ilha estende-se por 447 km², 42 km de comprido e 15,2 de largura. Não se sabe a data exata da sua descoberta, alvitrando-se que a sua colonização se terá iniciado por 1480, com gente oriunda da região norte de Portugal. A importante vinha, que alterou a paisagem e a cultura ocidental da Ilha, foi classificada em 2004 Património da Humanidade pela UNESCO. Outra atividade está patente no Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico.

A caça à Baleia, desenvolvida e influenciada pela presença norte-americana desde finais do século XVIII, hoje transformada em viagens de observação destes cetáceos a que pomposamente se chama de “whale-watching” como se não houvesse equivalente lusófono.

A arquitetura típica é de casario simples, branco com blocos de lava preta, que espelha a origem vulcânica da Ilha. Lugares como Lajes, São Roque e Madalena, estão cheios de história e património, ou encanto natural como a Gruta das Torres, as Furnas de Frei Matias ou o Arco do Cachorro. A Ilha oferece uma boa gastronomia baseada em peixe e marisco, sendo famosas as caldeiradas. A saborosa carne provém dos pastos abundantes e é afamado o queijo (São João e do Arrife). Tudo regado pelo Vinho Verdelho. Convirá recordar, para quem não saiba, qual a gesta das gentes do Pico ao longo da conturbada história da ilha, que durante séculos foi considerada uma “quinta” da fidalguia da ilha do Faial.

Comecemos pelas desgraças naturais

1562-1564 — Erupção na Prainha do Norte – Em 21 de setembro de 1562, após prolongado tremor de terra, que terá durado um “terço de hora,” acompanhado de grande estrondo, & logo em hum lago, & por cinco bocas arrebentou tal fogo, que delle, & de polme ardente correo huma ribeyra por espaço de huma légoa, até se meter no mar do Norte, & no mesmo mar formou, com entrada nelle de hum tiro de arcabuz, aquele grande caes de pedraria abrazada, […] e affirma o douto Fructuoso, que foi taõ grande o fogo, que todas as mais Ilhas Terceyras se allumiaraõ com elle, & até na de São Miguel fez da escura noyte claro dia”[1],

1713-1714 — Um mau ano agrícola, após o ciclone tropical de 25 de setembro 1713, levou a que o povo comesse “socas e raízes” para sobreviver. A epidemia de peste provocou milhares de mortos, 5 mil no Pico e no Faial 500 das quais 49 religiosos dos conventos da Horta.

1718 — Erupção em Santa Luzia – A 1 de fevereiro, pelas 6 da madrugada, ouviu-se uma “espantosa trovoada que encheu de terror os hortenses” e iniciou-se uma erupção vulcânica entre Bandeiras e Santa Luzia, surgindo torrentes de lava que formaram um extenso mistério (Santa Luzia) que penetrou mar adentro.

1720 — Erupção, Lajes do Pico – A 10 de julho iniciou-se por “dezasseis bocas nas faldas do Pico, por detrás do cabeço do Soldão” uma erupção que “inundou de fogo” perto de uma légua quadrada, consumindo terras e vinhedos e destruindo 30 casas “cujos moradores salvaram as vidas fugindo precipitadamente.” A erupção foi precedida de numerosos sismos e perdurou até dezembro daquele ano.

1744 — Ciclone tropical, grandes cheias – 5 de outubro “caíram copiosíssimas chuvas que inundaram as terras em caudalosas ribeiras.” Na Prainha do Galeão (Pico) morreram 7 pessoas arrastadas ao mar; na Prainha do Norte (Pico) morreram 6 e outras 5 pereceram em S. Roque.

1745-1746 — Mau ano agrícola – Provoca fome e emigração em massa – como resultado das cheias de 1744 e do mau ano agrícola que se seguiu, em 1746 faltaram os cereais, havendo fome generalizada. No Pico, o povo “recorreu a socas e raízes para manter a vida e faltando-lhe esse mísero alimento emigrou para as mais ilhas.” Em resultado da desnutrição grassavam as doenças, fazendo grande mortandade. Face a esta situação, por alvará régio foi autorizada a emigração para o Brasil, tendo partido pelo menos 1600 pessoas.

1757 — Grande terramoto de São Jorge – Em 9 de julho de 1757 um dos mais violentos, senão o mais violento, dos terramotos atingiu S. Jorge causando destruição generalizada e formando muitas das atuais fajãs, entre elas a de Santo Cristo, conhecido na tradição popular pelo Mandado de Deus. Dos grandes deslizamentos resultou um maremoto que atingiu todo o Grupo Central. Pelo menos 1053 pessoas morreram em S. Jorge e 11 no Pico. “O terramoto foi tal que a norte desta ilha, distância de 100 braças, pouco mais, se levantaram dezoito ilhotas, umas maiores que outras na manhã do dia 10 [ julho].”

1963 — Crise sísmica e erupção submarina frente a Santo Luzia – Entre os dias 12 e 15 de dezembro um tremor vulcânico com foco ao largo do Cachorro, Santo Luzia, costa norte. O tremor foi contínuo nos dias 13 e 14 de dezembro. A 15, com bom tempo e boa visibilidade, pessoas do Faial e Pico avistaram “bolas ou nuvens de vapor” saindo do mar frente ao Cachorro. Não foi recolhido qualquer material e o fenómeno não voltou a ser avistado, não se registando quaisquer danos.

1973 — Crise sísmica no Pico e Faial – A partir de 11 de outubro começaram a ser sentidos numerosos sismos no Pico, Faial e São Jorge, com destaque para a freguesia de São Mateus e o lugar da Terra do Pão, no Pico. A 23 de novembro, pelas 12 h 36 min registou-se um violento sismo (grau 7/8 da escala Wood-Neumann) com epicentro próximo a Santo António, que provocou graves danos, com muitas casas parcialmente destruídas, muros caídos e estradas obstruídas, nas freguesias de Bandeiras, Santa Luzia, Santo António, e São Roque, na costa norte, São Mateus, na costa sul do Pico, e ainda nas freguesias de Conceição, Matriz e Flamengos, no Faial.

1998 — Sismo de 9 de julho, Faial, Pico e São Jorge – Pelas 5:19 da madrugada um sismo de magnitude 5,6 na escala de Richter com epicentro a NNE do Faial provocou destruição generalizada nas freguesias de Ribeirinha, Pedro Miguel, Salão e Cedros no Faial e fortes danos em Castelo Branco (Lombega), Flamengos e Praia do Almoxarife, no Faial e várias localidades do Pico. No extremo oeste de São Jorge (Rosais) o sismo provocou grandes desabamentos. Morreram 8 pessoas, no Faial. Ficaram desalojadas 1700 pessoas.

Para que os primeiros colonos cultivassem as terras foi necessário desbastar densos arvoredos que proporcionavam matéria-prima para exportação e para construção naval (cedro). O cultivo de cereais, sobretudo o trigo, e a criação de gado foram as atividades predominantes. A produção de pastel e a sua industrialização para exportação destinada a tinturaria também desempenhou um papel relevante na economia do arquipélago que atingiu o auge quando a cana-de-açúcar (sem grandes resultados económicos) e o trigo entraram em decadência. No século XVII, as matérias-primas tintureiras foram substituídas pelo linho e laranjas. Foi introduzido o milho, para melhoria alimentar da população e apoio à pecuária. A exportação de laranjas surgiu no século XVIII, com a introdução da cultura da batata. Em finais de Setecentos, regista-se o início de uma expressiva e emblemática atividade económica açoriana: a caça ao cachalote. No séc. XVIII, os Açores já tinham uma população suficientemente grande para que a Coroa incentivasse a emigração para terras brasileiras.

No ano de 1460 foi concedida a Álvaro Ornelas, Capitão-Donatário da Madeira, a carta de primeiro Capitão-Donatário do Pico, cabendo-lhe a responsabilidade pelo povoamento. Nunca demonstrou interesse pela ilha, sabendo-a inóspita e por viver na Madeira. Houve duas abordagens à ilha, uma a sul, Lajes em 1460, e outra a norte, São Roque, em 1470. A zona oeste continuou totalmente desabitada, coberta por lava sem qualquer terra cultivável, nem corria água que permitisse abastecer quem se quisesse instalar. Entre São Mateus e Santa Luzia não havia qualquer ribeira.

O flamengo Jos Hurtere (Dutra), Capitão-Donatário do Faial, pediu à Coroa portuguesa a carta de Capitão-Donatário para o Pico, concedida em 1482, tornando-se no seu segundo Donatário. Dutra organizou o primeiro grupo de povoadores, em São Mateus. Reza a história que Frei Pedro Gigante, primeiro pároco da ilha, plantou as primeiras videiras no lugar de Silveira, vindas da Madeira dizem uns, ou de Chipre dizem outros. Há relatos que dizem que a plantação de vinhas se estendeu para sul (Santa Bárbara) e norte (Prainha do Norte). A comunidade do Faial iniciou o ciclo do vinho verdelho, plantando bacelos de vinha nas rochas de lava, tendo obtido bons resultados com boas parreiras e uvas de qualidade. Os habitantes trabalharam arduamente e à força de barra de ferro e marrões, quebraram a lava, abriram covas onde colocaram terra para plantar vinha obtendo um vinho muito bom e de grande teor alcoólico. A plantação das vinhas era feita a partir da costa desabrigada, estando sujeitas ao rossio de água salgada entre os meses de abril e junho.

Para combater o problema e amanhar a lava retirada para a plantação dos bacelos, assistiu-se a outra tarefa gigantesca: a construção de muros de pedra solta com um metro de altura. Tendo em conta a orientação predominante dos rossios do mar foram-se construindo paredes com cinquenta metros de comprido, paralelas umas às outras, distando entre si dois a três metros, terminando junto a uma vereda transversal, a servidão. A área entre duas servidões paralelas e contíguas chamava-se “Jarrão.” Em cada canada construíram muros transversais, “traveses” que distavam entre si cinco metros e em que de um dos lados não chegava à parede da canada, dando lugar a uma passagem, a “bocaina” sendo colocadas em posições alternadas para maior proteção dos ventos. O espaço na canada entre dois “traveses” contíguos chamava-se curral.

Produziam-se mais de duas mil pipas de vinho por ano no final do séc. XVI. A produção foi crescendo. Relatos do clero afirmaram, exageradamente, que a produção chegou a trinta mil.

É nesta época áurea que os proprietários, quase todos do Faial, constroem os solares junto à costa, verdadeiras casas de veraneio, com armazéns, lagares e alambiques. Foram construídos poços de maré para fazer face à falta de água. Também se construíram em lugares públicos, para permitir à população o abastecimento, nomeadamente no verão. A tarefa não era fácil pois as casas situavam-se acima das áreas das vinhas e distantes da costa onde se situavam os poços. Neste período construíram-se pequenos portos ou embarcadouros, junto aos locais onde o vinho era produzido.

Para lá chegar foi necessário aplanar as rochas para levar o vinho, chamam-lhes “rola-pipas.”

A quase totalidade do vinho produzido era transportada para o Faial em pequenos barcos, até ao fim do verão, aproveitando os mares calmos. Ali ficavam armazenados até à exportação para o norte da Europa, Índias Ocidentais, América do Norte ou Brasil. Uma das mais importantes casas do Faial na exportação foi “De Sobradello & Co.” No séc. XIX a Casa Dabney foi outro grande exportador do vinho e a que mais contribuiu para que fosse pago a um preço mais justo para o produtor.

Em 1852 um pó branco cobriu as uvas, desde a floração até à maturação, destruindo-as inteiramente e alastrando a todas as vinhas. A produção caiu para uma centena de pipas. As casas ricas do Faial, cuja fonte de rendimento era o vinho, viram-se obrigadas a vender as vinhas ao desbarato. Passou-se do pequeno latifúndio para o minifúndio. Os trabalhadores perderam os rendimentos ficando sem dinheiro para comprar os cereais do Faial, para a sua alimentação. Assim, se empreendeu nova proeza, a de desmanchar terras, partindo e separando a pedra, fazendo pequenas hortas e serrados, onde se cultivava milho, batata, inhame, etc. Amontoou-se a pedra de forma organizada em enormes “maroiços” autênticos monumentos num rendilhado de paredes.

Diz Susana Goulart Costa da Universidade dos Açores [2]

Da década de 1480 até ao século seguinte, o crescimento populacional terá decorrido num ritmo positivo. Nos finais do séc. XV, surge nas Lajes o primeiro município e em meados do séc. XVI, a norte, S. Roque.

Em 1542, os habitantes pedem ao rei D. João III a criação da segunda vila, apresentando-lhe a “opressão que os moradores das freguezias de N. Sra. d’Ajuda e de São Roque da ilha do Pico da banda do norte recebiam em ser mal providos de justiça por os ditos lugares serem longe da vila das Lages de cuja jurisdição eram e o caminho ser muito mau de montanha e serra aspera e se faziam muitos males e roubos em suas terra por a justiça da dita vila não poder a isso acudir a tempo.

A origem dos primeiros povoadores foi determinante na sociedade, transplantando-se a organização social reinol: uma pequena nobreza, que se distingue pela posse de terras; uma forte presença do clero secular e regular (franciscanos); e um terceiro grupo, de mercadores, artífices, trabalhadores rurais e artesãos. Há presença de judeus, comprovada nas Lajes nos inícios do século XVI e na Madalena, no século XIX; e de escravos para o trabalho rural e doméstico. Ao longo do tempo foram-se misturando deixando de constituir um grupo identificável. Desta amálGama se formou o caráter picoense, descrito por António Lourenço da Silveira Macedo[3],: “São os picoenses geralmente dotados d’uma indole pacifica, laboriosos, engenhosos e robustos, sobretudo as mulheres, que muito ajudam os homens nos trabalhos rurais.”

Nos finais do século XVI, a população era de 3432, no final da centúria seguinte 8720 com aumento relevante em S. Roque. Do século XVI para o XVII, surgem cinco novas freguesias, quatro no novo município: Santa Luzia, Santo António, Santo Amaro e Bandeiras.

Em 1871, São Roque tem 6674 pessoas, Lajes 9733 e a Madalena 9025. Na Regeneração, as reformas na contribuição predial geraram levantamentos populares protagonizados por mulheres. Perante estes “barulhos,” o poder central enviou uma esquadra do Continente para acalmar os levantamentos femininos na Candelária e na Madalena.

Na segunda metade do século XIX, o cultivo de laranjas, maçãs, pêssegos e figos (produção de aguardente) tornou-se uma importante alternativa.

Tornou-se hábito diário a deslocação de picoenses para o Faial para venda da fruta. A criação de gado foi uma importante atividade desde a descoberta.

As caraterísticas da orla marítima explicam a reduzida faina, mera atividade de subsistência, mais representativa na Madalena e Santo Amaro.

No séc. XIX há uma efetiva exploração, com a caça à baleia e se formou a imagem do baleeiro, como caraterística tradicional do Pico.

Esta era, aliás, a história que já aprendera em visitas anteriores. Levantei a viatura de aluguer no aeroporto, depois de ter tomado a “italiana” habitual, café de má marca e de sabor indistinto num bar pachorrento como as vacas picoenses, enquanto me ajustava ao calor e humidade. Metemo-nos a caminho por essas boas estradas que a ilha do Pico tem. Fazem inveja às restantes ilhas, pois nenhuma outra foi bafejada com tanta reta asfaltada. A maior terá mais de 9 km.. Apesar de cá ter estado, apenas por duas vezes, senti que a ilha era uma velha conhecida e o mapa continuou guardado na pasta dos documentos dentro do porta-luvas. Fomos almoçar ao Clube Naval de S. Roque, um bom serviço de “buffet” a 7.00€ e café incluído. O Cristóvão de Aguiar proclamou-se nosso guia e levou-nos às Lajes à “Semana dos Baleeiros” que ocorre sempre após a “Semana do Mar” na Horta. Tive de mudar a anterior opinião sobre as Lajes logo que visitamos o que resta das muralhas do forte (ora reconstruídas e aproveitadas como espaço turístico[4] e o Centro de Artes e Ciências do Mar (ex-SIBIL). [5]Havia lá uma moderna livraria, a única digna desse nome no triângulo. Nela encontramos inúmeros livros na coleção de autores açorianos.

Isto das ilhas tem muito que se lhe diga, algumas estão de costas voltadas para o mar, como S. Miguel, enquanto outras há que não vivem sem ele, como o Pico.

Sabe-se que é uma questão de tempo até começarem a zurzir nos forasteiros que ousam opinar sobre o arquipélago, basta discordarem deles. Ou quando os forasteiros veem nas falsas promessas de milagres e de progresso, algo mais, dissimulado, mais do que se diz e pensa… . Quando se perora sobre as nove filhas de Zeus urge não melindrar os interesses estabelecidos. As visões críticas ou não conformadas aos cânones podem acarretar sérios riscos para a saúde mental dos seus autores. Por isso, ao longo da História, vozes críticas ou arredadas dos estereótipos não abundam nem são benquistas. As elites dominantes e os poderes caciqueiros logo se insurgem. A ingratidão, vergonha e falta de patriotismo são epítetos comummente usados para denegrir os que ousam. Citam-se páginas relevantes da heroica gesta açoriana, com destaque para as guerras liberais e inúmeras desventuras de emigrantes que triunfaram. Surgem editorais e recensões violentas nos jornais locais. Os caixeiros-viajantes da cultura logo se arrogam o direito de defender a açorianidade ofendida. Tais declarações de repúdio raras vezes saem dos quatro cantos do arquipélago que falar dos Açores ainda não se tornara moda na grande capital do Império. Foi isto que, por mais de uma vez, aconteceu ao amigo, o mal-amado escritor Cristóvão de Aguiar. Apodaram-no de tudo e mais alguma coisa, pois convém sempre ser mais papista que o papa. Em meios pequenos é consabida a tendência para apoucar aqueles que das leis do esquecimento se desembaraçaram, como diria o vate, enquanto o imperador e séquito distribuem viagens e mordomias.

Terras pequenas, invejas grandes, a reprodução do mote popular “a minha festa é maior que a tua.”

7.4.3. SOBRE O PICO…CRÓNICA 74, 9.9.2009

A respeito desta recente paixão pelo Pico a Rosário Girão compilara textos que partilhara:

“Sopraram sobre a ilha os ventos da mudança, seguidos de pássaros metálicos que têm pousado para as bandas das Lajes; mas o iate arrimado ao Porto de Pipas prolonga o cirandar periclitante dos barcos do Pico através do Arquipélago.

São ousados e de pouca segurança técnica, os iates, e mesmo assim raramente enjeitam carga. Têm mastros e motor, […]. Navegam num passado recente igual ao meu presente e resistem às leis ditadas por senhores engravatados em gabinetes sem horizontes.[6]

“A montanha, pano de fundo de variado colorido, caprichava no moldar das nuvens. No inverno cobria-se de neve até aos baldios. E em raras tardes límpidas de verão, anilava-se de encontro à abobada. Muita gente jurava ter avistado em madrugadas serenas uma coluna de fumo a emergir da cratera, embora os mais sábios falassem dum vulcão extinto e remetessem para um passado efetivamente findo os grandes arrotos de lava.[7]

“Pela primeira vez reparei na ameaça instalada no cimo do Pico. A montanha não era essencialmente a beleza, como certas fotografias nos davam a entender. Era, sim, um rosto autoritário, guardando o segredo da próxima erupção. Metia medo sob a luz leitosa das manhãs.

Vivíamos, no Pico, de costas voltadas para a montanha. Vista do Faial, cara a cara, a montanha parecia uma permanente ameaça. Talvez por medo inconsciente se falasse tanto dos fins dos tempos. […] E contudo, na tarde límpida, o cume anilado do Pico parecia sorrir, bondoso. Deus e o Diabo podiam bem revezar-se no comando dos nossos destinos, consoante as flutuações do segredo da montanha.[8]

“Ao dobrarem, já com umas duas horas a navegar, o Castelete, do lado leste da vila, que domina, surge-lhes, para além do casario dos povoados, a majestade assombrosa da Montanha, toda branca de neve que a cobre, sempre a mudar de aspeto enquanto deixando para trás as Lajes com sua fidalguia de pataco, atravessam a longa Baía da Vila, passam, ao largo, pelo porto de S. João queijeiro, adiante pela Terra do Pão, depois pela afamada Baía da Prainha do Galeão, a seguir abicam à lendária Ponta de Santa Catarina, não sei se também chamada Ponta do Espartel, com isto entram em águas de S. Mateus, o grosso da freguesia um tanto arredada mais para o interior, aqui a Montanha, de que se não avista o cume, como que se torna uma inimaginável mole a querer sobre ela se abater e esmagá-la, e logo estão a entrar no porto. O pequeno porto de S. Mateus. […]. Foram. No céu limpo de nuvens havia sol. Na terra calor. Viria só dele, do Sol, ou também refletido pelo colosso da Montanha com o Sol entretanto aquecida?[9]

“Era um lastro de mistério:

pedra ardida

preta e roxa.

Mas o homem, esse tal

Fernão Alvres Evangelho

e os que vieram após,

com seu saber de flamengos,

‘Vai ou racha’ – portugueses,

e hábeis mãos de italianos,

dos tufos fizeram terra

e, sem milagre nenhum,

semeando e aplantando

multiplicaram por mil

as sementes e as estacas

na casca daquele invento,

para as covas e os tonéis. […]

Antes, e continuando

sem mais nomes sobre os feitos,

direi que feito o milagre

(e cá me torna a palavra!)

de mudar em terra pedras,

o Picaroto (assim mesmo)

desceu às praias do mar,

que são negrume, calhau,

fez-se à água, navegou-a,

foi de ilha em ilha, passou

para lá dos pegos delas:

longes de longes nos olhos

e mais nos calos das mãos: […]

… E não acabo – não posso! –

a conta dos contos idos,

mais d’agora e que hão de vir,

desta gente picarota

feita de lava e salmouras,

mole na fala, de ferro

nos arriscos do trabalho.

Não posso, não há palavras! […][10]

Na livraria existente no espaço museológico da antiga fábrica da baleia, SIBIL, em amena cavaqueira dizia o Cristóvão que tinha conseguido algo que eu almejava, um dia ia a andar e viu alguém a ler um livro seu num jardim de Coimbra, mas – para mim – esta visita teria uma surpresa irrepetível, que foi ver o meu último livro “ChrónicAçores vol. 1,” incluído na “literatura açoriana.” Foi, então, que a jovem funcionária, Cláudia de sua graça, muito animada, declarou que tinha adquirido o livro e estava a lê-lo em casa. Autografei logo, outra cópia, com o ego exultante por estar ao lado dum célebre autor e ser eu a autografar a pretensiosa trilogia. Claro que após este incidente, as Lajes do Pico pareceram mais bonitas, soalheiras e convidativas do que em visitas anteriores. Vi a expansão do Museu dos Baleeiros instalado nas três casas originais de botes do séc. XIX. Este Museu é único na Europa, além de expor a interessante coleção de “scrimshaw” tem uma pequena biblioteca com documentos, mapas, cópias de livros de bordo e uma “tenda de ferreiro” onde é possível aprender como eram fabricados diversos utensílios usados na caça da baleia.

Sentamo-nos numa esplanada na marginal a dessedentarmo-nos enquanto se punha a conversa em dia, antes de subirmos ao Alto da Rocha do Canto da Baía para visitar a “Cabana do Pai Tomás.” Satisfaria a curiosidade de visitar a casa de Dias de Melo. Nas viagens anteriores ainda não conhecia o autor. Ali, espartanamente vivera, numa casa pequena e humilde, ora telhada, como nova, mas com o desconforto da minúscula casa de banho exterior no piso térreo. Em cima, o autor dormia, comia e escrevia. Do pátio exterior avistava-se a imensa mancha de Mar Oceano ponteada pelo pequeno farol da Calheta de Nesquim que serviria de inspiração a tantos dos seus livros. Em linguagem cinematográfica chama-se a isto um “fast-forward” em que se rebobina a imagem e se passa adiante.

Após 4 dias e cinco noites de convívio intenso e aprendizagem ilimitada na ilha do Pico, estava já em posição de aceitar que Cristóvão tinha razão ao afirmar sobre a literatura açoriana… Depois de ler quase todas as obras de Dias de Melo, salvavam-se as baleias, outro livro mais intimista como “À Boquinha da Noite (2001) e pouco mais. Li e detestei “O Menino deixou de ser menino” (1995) e “Pena dela, saudades de mim” (1994) dum neorrealismo primário que nada tem a ver com os livros sobre os baleeiros. Daniel de Sá tem como uma das melhores obras, a novela “O Pastor das Casas Mortas” e “Ilha grande fechada” (1992). Excluía a obra religiosa por razões óbvias, não a podia apreciar. Ressalvava bons textos que surgiram em guias de turismo como “Santa Maria Ilha-Mãe,” “S. Miguel, a ilha esculpida” e outro a “Terceira, Terra de Bravos”. Entretanto, já lera outros poetas e escritores açorianos espantosos de quem poucos falavam. Martins Garcia era um deles…O problema é que sem querer metera-me (e aos Colóquios) numa toca de lobos de interesse esconsos e panelinhas em que pontificam menos valias.

Ora bem, a minha autocrítica ao fim de quatro dias perante o Cristóvão, escritor maldito e malquisto nas hostes açorianas, era a seguinte: embandeirara eu em arco, louvando exageradamente, adjetivando em excesso e elevando aos píncaros alguns sem separar o trigo do joio. Gostava do Cristóvão, do Daniel e do Onésimo. De todos era amigo, mas existiam outros para desvendar. De dezenas já lidas e folheadas a maioria não tinha a tal qualidade de que Cristóvão tanto falava. Sendo um forasteiro deixara-me iludir pela açorianidade, pela beleza narrativa das ilhas e costumes ancestrais. Embalara-me no canto das sereias. “O Pastor das Casas Mortas” fora já traduzido por mim para inglês. Dias de Melo até para japonês fora traduzido. Cristóvão ainda não. Nem outros escritores e poetas que o mereciam. Um crime de lesa literatura. Iria concentrar os esforços dos Colóquios para os editar e traduzi-los. Teria de ler os restantes para apreciar a sua universalidade, além da matriz açoriana que a todos permeia. Sei que incorrera numa possível falácia de tomar a nuvem por Juno e louvaminhado em excesso os autores que os Colóquios divulgaram. Teríamos de ser mais parcos nos encómios. Dias de Melo e Daniel de Sá já têm uma editora a traduzi-los e divulgá-los, falta fazer o mesmo para Cristóvão de Aguiar, um escritor universal com uma vastíssima obra. Em Bragança no 8º Colóquio iria iniciar a campanha para o traduzir (Bulgária, Roménia, Polónia, Eslovénia). Iria tentar a editora Almedina, no Brasil, para apresentar “Tabuada do Tempo” e de “Torga Lavrador das Letras” do Cristóvão de Aguiar. Se pudesse concentrar esforços talvez conseguisse algo até abril 2010. (nota do autor: falhanço total, nada se conseguiu)

Faltava apenas ver duas coisas da lista de visitas essenciais, e uma delas não a consegui encontrar apesar de ter perguntado aos locais: a Furna de Frei Matias. Andei em círculos e em ziguezague por estradas de terra e de asfalto, segui as placas indicativas e as orientações, mas faltou sempre encontrar uma placa azul final, para a trilha última, que seria o “Abre-te Sésamo” para me levar ao local que garantem merecer visita obrigatória. Na última manhã abdiquei doutras atividades para fazer mais uma tentativa de encontrar a elusiva furna, mas apenas consumi gasolina e CO2 sem resultados.

Mais aturdido fiquei nesse passeio ao rever as belas lagoas, ao ver totalmente seca a mais bela lagoa: a do Paul, mirrada, sem as manifestações espontâneas de árvores endémicas, os espigos-de-cedro (Arceuthobium Azorica) nas margens e onde dantes havia água pastavam agora uns três cavalos.

No segundo dia da estadia, abusando da paciência do Cristóvão que as conhecia e não queria visitar de novo (ficou no ar condicionado na sala da receção), descemos às catacumbas do vulcão do Pico. Conhecida pela altura e beleza do Pico que lhe deu nome e das paisagens que se desfrutam do alto das suas vertentes, a Ilha tem na Gruta das Torres[11] o verdadeiro contraponto das alturas e um atrativo não menos pitoresco. Durante a visita, parem para apreciar o projeto arquitetónico do Centro de Apoio aos Visitantes. As Grutas da Torre estavam fechadas na estadia no natal de 2007, pois usam horário de verão.

Ainda só 500 m estão abertos ao público. Em boa hora as visitei. Não vi as trilobites ou descendentes, de tamanhos não observáveis a olho nu. Todos os minutos foram de uma descomunal aprendizagem e de algum temor. Há rochas enormes prestes a descolarem do teto. Uma visita surreal que parecia retirada de uma cena do filme “À procura da Arca Perdida” sendo os visitantes os “salteadores.” O momento culminante foi quando se apagaram as lanternas de mão e as luzes do capacete de mineiro. Ficamos trinta segundos à luz natural daquele enorme tubo lávico. As cores, as formas e a explicação científica da jovem guia ajudaram a perceber a formação daquele e doutros vulcões. O interior é rico em formações e estalagmites lávicas, bancadas laterais, lava balls, paredes estriadas e lavas encordoadas. Estas visitas fazem sentir a pequena dimensão humana face à natureza mãe que tudo cria e destrói.

A Gruta fica à saída da Criação Velha (Madalena) na encosta ocidental. O sistema formou-se quando a lava pahoe-hoe [12]desceu do cone parasítico do Cabeço Bravo há 500 – 1500 anos. São um conjunto interligado de tubos lávicos que transportaram a lava pahoe-hoe e a lava a ā em épocas distintas. Trata-se da maior gruta açoriana (5 439 m.) com uma altura que chega aos 15 m. na entrada que se faz por um algar. O Governo declarou-as monumento regional em março de 2004, um ano antes de abrirem ao público. Ainda não fizeram os reconhecimentos de todos os restantes quilómetros esperando-se que possam abrir mais um segmento em breve.

Por instantes foi preciso rastejar tendo em atenção a cabeça e os membros inferiores desnudos para evitar o contacto com os dilacerantes “biscoitos,” o interior é rico em estalactites e estalagmites de lava. A estalactite tubular é um pingo de lava normal que sofre uma fusão de gases ou de vapor de água; depois começa a esticar, até ficar fina e oca por dentro, daí a sua fragilidade. As estalagmites lávicas formam-se a partir das tubulares. O solo natural da gruta é formado por blocos irregulares e soltos que caíram do teto constituídos por lavas de vários tipos. A gruta encontra-se muito bem preservada. As paredes estão revestidas por óxidos de sílica. As estalactites vermelhas são uma bagacina vermelha formada por piroclásticos com erupções estrombolianas, onde são dissolvidos bastantes gases e muito ferro.

Na gruta, existem apenas dois tipos de espécies de animais:

Trecus Picoensis (espécie de escaravelho) – endémicos das grutas, porque vivem sob as pedras.

Cicus Azopicaias (espécie de cigarra) – vive nas raízes das plantas.

O restante tempo, dias, tardes e noites picoenses foram ocupados com leituras, discussões e uma enorme aprendizagem. Surgiam em catadupa nomes e obras dos últimos quarenta anos sobre os Açores. Os autores eram açorianos, descendentes, emigrados e outros. Muito descobri nesses dias com essa enciclopédia devoradora de conhecimentos e de livros que é Cristóvão de Aguiar, convidado especial do Colóquio da Lusofonia. As gentes do Pico são afáveis e hospitaleiras como nas ilhas que já visitei.

Um incidente ao almoço no restaurante Canto do Paço, Prainha, leva a interrogações. Domingo. Sala com todas as mesas ocupadas, mais o andar de baixo. Restavam duas mesas ao ar livre. Uma funcionária veio servir. Pelo sotaque era afrodescendente de escravos na terra de Vera Cruz. Disse ser de Pernambuco, apaixonada por um Picaroto e em má hora para ali fora viver. Sem rodeios afirmou que os locais eram racistas tratando mal os de fora e desdenhando dos que aceitam empregos que os da terra recusam. A viagem da jovem seria um tema interessante para desenvolver em romance. Podia-se fantasiar que em frente a um globo terrestre a girar sem parar, se interrogara para onde ir. Uma terra começada com a letra “P.” O dedo mindinho que tudo sabe, caíra no meio do oceano. Sob a lupa uns pequenos pontos de terra. Neles estava inscrito o nome Pico. E depois de nova rotação da terra, Prainha. Ambos começados por “P.” Uma viagem de navegação curiosa entre Pernambuco – Pico – Prainha. Já afirmei que os portugueses eram preconceituosos, racistas quanto à cor e origem dos que com eles se cruzam, olvidados que andam dos seus percursos e sua miscigenação.

Mas são esses mesmos portugueses que nunca deixam de me surpreender pelo seu humor e que sempre denotaram um invulgar caráter e inventividade. Atualmente, é proibido por força de lei, anunciar nas viaturas particulares que estão à venda. Pois bem, na longínqua ilha, afastada dos centros de poder inventaram uma nova modalidade comercial “Troco Por Euros.” Não infringem a lei pois não vendem a viatura nem anunciam a mesma venda. Apenas a trocam por euros. A troca não é proibida. Saí do restaurante devastado pela mácula nas gentes da Prainha face à compatriota que ali arribara, mas simultaneamente enternecido pela invenção da “troca por euros.”

Ao chegar a casa e parando no café Refúgio, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, ofereceram-me graciosamente o café por ser o último que ali tomava. Gesto simpático de gente que há dias eu desconhecia mas que na oferta de um último café demonstraram a sua hospitalidade. Andados uns passos rumo à casa do escritor deparei com a camioneta de passageiros estacionada aguardando o começo da semana para voltar a trabalhar. Acorreu-me a ideia peregrina de como seria uma aventura “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (aqui nas ilhas , são freguesias, senhor) e a encher de passageiros de cada uma para gravar as estórias que os passageiros fossem contando, cada um à sua moda e jeito, com vagar. Uma espécie de Arca de Noé de histórias. A viagem, obviamente, não teria destino. Duraria tanto quanto durassem as histórias dos passageiros. Seria um ano ou mais. Não seriam cobrados bilhetes. Pararia em todos os locais, podendo deter-se para que fossem contadas as histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria o compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem esse autocarro dos sonhos. Para o comum dos mortais a vida prosseguiria o seu rumo, enquanto nós estaríamos a perpetuar a vida e as lendas das gentes.

Mas os Açores são uma réplica miniatural da corte lisboeta. As elites não perdoam aos que não comungam da verdade única com força de dogma e o meu guia e hospedeiro desta aventura, o Cristóvão escreve com uma pluma incómoda. Reservou-se um papel de narrador que pensa, fala e escreve sem recorrer aos lugares comuns que tanto gáudio causam na população. Não reivindica verdades absolutas ou duradouras, limita-se a descrever o que sente e vê. Criaram-lhe a fama de irascível (quantas vezes com justas e fundadas razões? Claro que algumas, ferve em pouca água, dizem-me). Eu recebi “avisos amigos” para os perigos de abrir essa volátil Caixa de Pandora, quando o convidara a estar na Lagoa em março de 2009 para o 4º encontro açoriano da lusofonia (11º Colóquio da Lusofonia) . Congratulo-me que, relutantemente, Cristóvão tenha acedido. Ao longo de cinco meses trocamos correios eletrónicos e telefonemas criando uma amizade saudavelmente aberta e crítica. Estava eu carecido de aprender mais com este enigmático personagem que tantos cuidados incutia aos defensores da paz podre açoriana. Como acumulei milhas no cartão de viandante frequente aceitei a hospitalidade para uns curtos quatro ou cinco dias no Pico que Cristóvão assumiu como segunda pátria. Foram dias irrepetíveis e que guardo ciosamente grato. Nove dias após partir de São Miguel Arcanjo na ilha mágica de regresso à ilha de S. Miguel ainda reverberam os encantos daquela estadia. Assim me despedi prometendo voltar um dia, gostava de poder voltar e alugar casa por um mês e visitar as ilhas ainda desconhecidas pelo navegador sem barco (Graciosa, Flores, Corvo). Há qualquer coisa de mágico, íman secreto, que atrai e me faz querer viver ali no Pico. Talvez a vontade de ouvir as histórias dos passageiros da camioneta sem rumo. Terei de consultar um especialista para me tratar da eterna infidelidade, cada nova ilha é um novo amor, paixão ardente, desejo irreprimido.

[1] Diz o padre António Cordeiro na História Insulana das Ilhas a Portugal Sugeytas no Oceano Occidental (pág. 477 edição Prínceps).

[2] http://www.inventario.iacultura.pt/pico/s-roque/historia.html

[3] na obra História das Quatro Ilhas que formam o Distrito da Horta, de 1871

[4] (mas que infelizmente foram abandonadas e ninguém fez a manutenção, pelo que em 2020 estavam um “caco,” lamentável)

[5] (na antiga fábrica da baleia SIBIL, equipamento industrial de transformação dos grandes cetáceos em óleos e farinhas).

[6] (GARCIA, José Martins, O Medo, Angra, Secretaria Regional da Educação e Cultura, col. Gaivota 25, 1982, pp. 11-12).

[7] (GARCIA, José Martins, A Fome. Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 2ª edição, 1978, p. 12).

[8] (GARCIA, José Martins, Contrabando original. Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 1997, 2ª edição, pp. 85-86).

[9] (MELO, José Dias de, A montanha cobria-se de negro. Ponta Delgada, Ver Açor, Lda, 2008, pp. 143-144-170).

[10] (cf. SILVEIRA, Pedro da, fui ao mar buscar laranjas 1, “Diário de Bordo”, “Costeando o Pico”, pp. 167-168-169).

[11] Graças às suas caraterísticas inovadoras, foi selecionado para o prémio oficial da União Europeia em parceria com a Fundação Mies van der Rohe de Barcelona, “European Union Prize for Contemporary Architecture Mies van der Rohe Award 2007”.

[12] Lava pahoe-hoe – é uma lava mais fluida, os seus gases estão menos dissolvidos e fluí mais rapidamente, esse tipo de lava formou os lajidos. Na gruta também verifica uma escoada lávica do tipo pahoe-hoe que tem 7 metros de dimensão bastante visível.

Lava AA (Biscoito) – este tipo de lava está associado ao final da erupção, é muito viscoso, tem muitos gases dissolvidos com uma temperatura não muito elevada e vem um pouco como cascalho.

 

16.4. DA INGRATIDÃO E DA LITERATURA, CRISTÓVÃO DE AGUIAR, UMA CRÓNICA AMARGA. UMA VERGONHA – CRÓNICA 149 – PONTA DELGADA 16/6/2015

Em 15/6/2015 na apresentação, pela diretora da Biblioteca Municipal de Ponta Delgada e pelo Dr Carlos Riley da Universidade dos Açores, dos dois primeiros volumes das obras completas de Cristóvão de Aguiar (50 anos de vida literária) éramos 10 na assistência e 2 eram do governo…

há um mês houve uma sessão de homenagem com casa cheia (18 de abril na Casa Museu Guerra Junqueiro, Porto), em colaboração com a Casa dos Açores e o Dept.º de Letras da Universidade do Minho onde lançaste a Obra Completa, composta por 13 volumes, a cargo das Edições Afrontamento, do Porto, que ganharam o concurso lançado pelo Governo Regional dos Açores.

Sei que tu, Cristóvão, insigne autor do Pico da Pedra, tens fama de ser difícil, poucos dominam a língua portuguesa como tu, poucos burilam a palavra até à exaustão e perfeição como insistes. Sei que a maioria das pessoas – embora possa cantarolar a popular Naufrágio imortalizada por Duarte e Ciríaco – desconhece que a letra dessa canção universal é tua. Cristóvão “é um autor difícil e o seu mau feitio é conhecido. Claro que sim, frontal e crítico, não entrou, nem quis, em cliques, claques ou pseudo-tertúlias de intelectuais açorianos.” Radicado em Coimbra desde os 1960, foi incorporado no exército colonial português para a Guiné e terminou os estudos em Filologia Germânica, Cristóvão mudou-se em 1996. Em vez de voltar ao torrão natal de Pico da Pedra, foi para S. Miguel Arcanjo (Pico), onde é carinhosamente tratado pelos seus novos conterrâneos.

Mas depois de 15/6/2015, estarei para sempre chocado e desiludido com Ponta Delgada. Como se compreende que a oportunidade de terçar palavras com um dos mais importantes escritores do século XX ficasse sem assistência nem interesse das pessoas da ilha? Como se entende que um dos mais ricos e prolíficos autores da identidade dos Açores ficasse a celebrar os seus 50 anos de vida literária para uma plateia com uma mão cheia de presenças?

Claro está que depois, na morte, serás aclamado e a TV e rádio estarão lá para falar de ti, o autor que – como ficou demonstrado – não é benquisto na sua terra. Pequenez de mentes. Insensibilidade, incultura. País pequeno de mentes pequenas, arquipélago ingrato a quem tanto fez para dar a conhecer a identidade açoriana e não o postal ilustrado que se vende aos turistas sobre hortênsias e lagoas…Não fiquei surpreendido, mas fiquei esclarecido sobre o valor que este país dá a um dos mais representativos ícones literários…fosse um cantor pimba ou qualquer personalidade famosa pelos pés de barro de fama fácil e o anfiteatro seria pequeno.

Ontem ao despedir-me rapidamente de ti, estava emocionado pela amizade que nos une e envergonhado dos concidadãos da ilha que aceitei como nova pátria. Queria pedir-te desculpa em nome dos 68 748 habitantes de Ponta Delgada e dos restantes 137 699 cidadãos da ilha (Censo 2011). Queria dizer-te que há quem te leia e ama os teus escritos, mas não estavam lá para to demonstrar. Queria dizer-te que escreves melhor que muitos adulados, lisonjeados, sabujados, louvaminhados, engraxados, incensados, engomados, apajeados[1], bajoujados, escribas de Portugal e do arquipélago, mas só gerações futuras saberão reconhecer o teu valor. Queria dizer-te que mereces muitos dos prémios que são anualmente distribuídos embora deles não precises. Queria dizer-te que nos Colóquios da Lusofonia somos poucos, mas muitos te apreciam e entendem, mas não estavam lá ontem para to demonstrarem. Queria dizer-te que o teu invejável percurso nestas cinco décadas de escrita não tem paralelo, mas lá estaria eu a adjetivar-te e tu não gostas disso. Não faz mal, sem menosprezo dos restantes, há quem afirme que és um dos mais notáveis da segunda metade do século XX e que soubeste transmitir a alma micaelense e quiçá açoriana.

Bem hajas meu amigo pelos livros que nos deste e de que agora compilaram em Obras Completas estes dois volumes. Dito isto à laia de introdução tenho uma declaração de interesse pessoal a fazer:

Sou amigo incondicional do Cristóvão de Aguiar, meu mentor na casa do Pico onde me recebeu, a mim e à minha mulher, como se de amigos de longa data se tratasse, nós que éramos de amizade recente surgida em colóquios da lusofonia. Durante os primeiros tempos cavaqueei longamente com o Cristóvão. Ambos, éramos e permanecemos, exaltados e revoltados contra a injustiça, quimera ensinada em verdes anos. Com ele aprendi e compreendi a canga que os cachaços insulares carreavam, muitas vezes, sem o saberem.

Fica-se refém da tua escrita, que não sendo fácil, enleia e se insinua na tentativa de forçar o leitor a buscar a compreensão do que lhe está subjacente. Embrenhei-me nos escritores que fui desbravando. Ao longo dos anos falei e escutei a maior parte deles (entretanto, já nos deixaram Fernando Aires, Daniel de Sá, Dias de Melo). O dilema da pequenez das ilhas para um autor se afirmar sem ser reconhecido fora delas, a atração pelo mercado continental mais vasto como forma de afirmação e alforria literária criando um misto de desligamento e aportuguesamento dos autores que se mudaram de armas e bagagens para fora das ilhas, a inveja e ciúme dos que não conseguiram atingir esse patamar de reconhecimento continental, a emancipação de outros que venceram nos EUA e Canadá e a tarefa ingente dos que permanecendo conseguiram alcandorar-se a um reconhecimento externo.

O que muitos deles não acreditavam era que por serem açorianos podiam aspirar a serem universais, não apenas insulares, não apenas portugueses, em mercados mais vastos da Europa e do mundo. Poderiam chegar bem mais longe e libertar-se da prisão invisível que é a pequenez das 9 ilhas. Para isso, teríamos de mondar mercados novos e virgens, como a selva amazónica antes dos bandeirantes. Se não chegassem às novas gerações, poderiam alcançar descendentes, e expatriados que aprendem hoje o orgulho da nação açoriana, na cultura, tradição e valores primordiais que tão arredados das escolas andam. Mas os colóquios queriam levá-los a mercados e leitores insuspeitos, incluindo a antiga Cortina de Ferro onde há gosto e apetência por escritores lusófonos. Para isso, idealizamos a série de Antologias, uma bilingue para o mercado norte-americano e canadiano, outra maior, em dois volumes, uma coletânea de textos dramáticos para o ensino secundário e a antologia no feminino dado que as autoras são sistematicamente esquecidas na comunidade conservadora e machista como é a açoriana. Todas as obras são didáticas para se propagar este vírus altamente contagioso da escrita açoriana para leitores neófitos.

Depois, deparámos com um fenómeno típico das sociedades insulares e bairristas, a existência de “capelinhas”, cliques e claques, em torno das quais gravitavam alguns. Nem todos de qualidade despicienda, mas dependendo dessas cliques para artigos de jornal ou recensão crítica. Na década de 1990, lentamente, os escritores açorianos foram encontrando o seu espaço, não havendo míngua de quantidade. Na maioria, sem projeção para além das ilhas, com exceções contemporâneas. Falta destrinçar, entre centenas, os que realmente merecem ser incluídos em coletâneas e os que se serviram do rótulo da açorianidade para terem visibilidade que, de outro modo, não teriam.

A solução foi ignorar quem era quem, e sermos nós e os autores dos nossos projetos, a avaliar, com a ajuda dos que conhecíamos e em quem confiávamos. Daí as escolhas das antologias que serão alargadas à medida que os formos descobrindo, sob o enorme guarda-chuva da Açorianidade que a todos alberga. Nem sempre é fácil, pois ao lado de autores como Fernando Aires, Cristóvão de Aguiar e Eduíno de Jesus surgem os que podemos designar como a Maria das Capelas, o António da Lomba e o José de Rabo de Peixe. Importantes poderão ser de um ponto de vista de cultura popular, regional ou local, mas nunca sob um rótulo de literatura.

No 9º colóquio da lusofonia (4º Encontro Açoriano da Lusofonia, abril 2009), Cristóvão de Aguiar rejeitou (mais uma vez) o rótulo de literatura açoriana, por considerar que faz parte da produção literária lusófona.

«O título (literatura açoriana) é equívoco, porque pode parecer que é uma literatura separada da literatura portuguesa», afirmou à agência Lusa o escritor.

Está um tempo caramonico, como dizem em Terras de Miranda, sem necessidade de escarrabunhar os pés por estarem carraspudos. Sinto a falta do sol que me anima e vitaliza nesta humidade entorpecente que amolece corações e fenece almas. Assim desabafava mutuamente na guerrilha verbal contra a falta da função clorofilina que cerceia as musas e embota mentes como a minha. E era então que me contrapunha Cristóvão de Aguiar “O tempo está mesmo abafado. Abafa o corpo e sobretudo a mente. Nunca mais há tempo decente”. Concentro-me numa conceção positiva rumo à realização dos objetivos durante o curto passeio terreno que me deram a oportunidade de usufruir. Os problemas, por maiores que sejam, são meras contrariedades. Umas maiores que outras. Assim repito para crer no que digo. O tempo as curará retirando-lhes o relevo e importância ou resolvendo-as. Os momentos incomuns de felicidade e alegria devem ser fruídos em plenitude. Comemorados, celebrados, prolongados e recordados. Para isso sirvo-me da escrita, reviver momentos bons. Como são normalmente raros convém que perdurem, cinzelados nas pedras da lembrança. Criam trejeitos, esgares de sorrisos nas comissuras dos lábios.

Está provado que Cristóvão de Aguiar não dá votos a ganhar. Ainda bem. E termino com palavras que lhe dediquei em 2013

  1. Ao Cristóvão, Pico, 9 ago 2011/13 out 2013

descobriram no pico

maroiços milenares

piramidais construções

galerias ocultas

sem múmias nem tesouros

sem origem nem fim conhecido

falaram de fenícios, cartagineses

gente da pré-história

mas a verdadeira pirâmide

reside mais a norte

em s miguel arcanjo

numa atulhada falsa

com vista para s. roque

é a universal biblioteca

da nova alexandria

é lá que todas as noites

os livros se põem a dançar

debatem e trocam impressões

dão conselhos e admoestações

referem prodigiosas citações

partilham bailhos e saber

da universidade da açorianidade

[1] a·pa·je·ar – verbo transitivo, 1. Acompanhar (como pajem).2. Lisonjear, adular.”Apajeados”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,