512.1.foi há 50 anos. PARTIDA PARA TIMOR, CHEGADA A DILI setº 1973

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512.1.foi há 50 anos. PARTIDA PARA TIMOR, CHEGADA A DILI setº 1973

 

Éramos um grupo díspar de seis pessoas naquele voo (19 setembro 1973), a primeira vez que tropas portuguesas iam para Timor de avião, rumo ao Oriente exótico e desconhecido, mas a primeira noite seria passada em França onde dormimos. A primeira noite em Montmartre, num hotel económico, a centenas de metros do trottoir onde as senhoras da noite tinham o métier. As galerias Lafayette eram um magneto a atrair as pessoas em busca de moda, perfumarias, comida ou souvenirs. A memória não ajuda. Creio que foi, mas não tenho registo, no Antin Trinité. As Galerias Lafayette em frente. Muito perto da “Opera”, do Louvre e de Montmartre. O hotel de 46 quartos rodeado de bons restaurantes, teatros e cinemas. Toda a animação noturna que se podia desejar.

Como conhecia a cidade levei uns camaradas (Gomes, Rebimbas e outros cujo nome perdi) para jantar num pequeno bistro. Pude fazer as honras de connaisseur (Borgonha e Bordéus avisando-os de que eram fortes e não estando habituados, corriam o risco de não acordarem na manhã seguinte). Jantamos mesmo ao lado do hotel (Hotel Antin Trinité Opéra Paris, nº 74, rue de Provence), a curta distância do Boulevard Haussman.

74, rue de Provence 75009 Opéra Paris France

As mesas de xadrez, vermelho e branco, evocavam tabernas portuguesas. O vinho era servido em carafes de litro que se esvaziavam rapidamente. Os pratos servidos eram de tamanho normal, comida abundante, e não enormes pratos com uma amostra de comida que caraterizam a rapinagem da “nouvelle cuisine française” (nem sei se esta já tinha sido inventada). Na manhã seguinte havia o pequeno-almoço típico: café, chá ou chocolate, sumos de frutas, cereais, iogurtes, queijo, fiambre, Viennoiseries, pão com manteiga, compota ou mel.

Quando me levantei, já todos estavam no autocarro que nos iria levar ao aeroporto de Orly. Eu a fazê-los esperar e desesperar, durante mais de uma hora, indeciso, observando-os da janela do 1º andar. Ponderava se os 16 contos que levava dariam para sobreviver seis meses em Paris. Era o momento de aceitar o destino ou lutar contra ele e a tropa que me apavorava. Sim, já pensava em desertar. Inicialmente, considerei que o pai (apesar de frustrado por não ter sido admitido para o serviço militar por ser demasiado magro) me poderia apoiar financeiramente. Idealizava uma fuga escandinava, Países Baixos ou França. Nem o meu pai nem o meu padrinho e mecenas (administrador do Banco Totta & Açores) se haviam mostrado dispostos a condescender. Adorava Paris. Já lá estivera. Tinha um medo irrefreável do desconhecido nos orientes exóticos. Tantos conhecidos meus haviam desertado. Pois bem foram esses pensamentos que me ocorreram durante a hora em que não abri a porta a ninguém nem atendi o telefone interno que tocava incessantemente. A minha avó paterna sempre me disse que como nativo do Dia do Anjo da Guarda nada de mal me aconteceria. Estava convicto de que o pai consideraria a fuga desonrosa. Dispus-me, por fim, a partir. Resolvi descer as escadas, para alívio dos restantes e consternação do senhor Neves, representante e guia da Air France, que temia perdermos o voo do 747.

Apenas o capitão Manuel Alberto Botelho dos Santos Clara (ficaríamos amigos, um dos poucos militares com quem me dei socialmente após o SMO ((Serviço Militar Obrigatório), que sempre respeitei e de quem me tornei amigo apesar de não o ver desde 1982 ou 1988) teve direito a primeira classe pois os restantes oficiais milicianos estavam destinados à classe económica… exceto eu que estava destinado (como sempre) a voos bem mais altos.

Com a habitual descontração, e umas palavras bem sussurradas em Francês, aliadas a um sangue latino quente, conseguiram que uma simpática hospedeira me levasse a mostrar o bar no 1º andar do Boeing 747 onde passei quase toda a viagem a beber champanhe francês e a apreciar as vistas magníficas do andar de cima do avião. Até aqui a viagem fora ótima na companhia da hospedeira que passou mais tempo comigo no luxuoso conforto do primeiro andar do que nas funções dela para espanto do Santos Clara que estranhava a minha presença. Não encontrei vestígios das cartas descritivas que escrevi, mas ficou o registo poético da primeira ida ao oriente:

Paramos em Telavive onde entraram tropas israelitas (armadas até aos dentes) que revistaram tudo e todos. Até se deram ao trabalho de desmontar a Braun, máquina de barbear elétrica, em busca de explosivos, e espremeram o topo da pasta de dentes…. Foi a primeira vez que vi medidas de segurança semelhantes às que passariam a vigorar, trinta anos depois, após as Torres Gémeas em 9/11 (11 setembro 2001). O cenário de guerra, aviões de combate na pista. Faltavam duas semanas da Guerra dos Seis Dias.

Em Banguecoque, pacata cidade asiática sem turismo de massas, mudou a tripulação e eu perdi os meus privilégios e a companhia simpática da gaiata hospedeira parisiense. Na pista ruminavam (nessa época) búfalos de água que era preciso afugentar à chegada de cada avião. Naqueles tempos, a capital do antigo reino do Sião era uma pacata urbe. Aterramos em Denpasar, capital da ilha de Bali, apavorados com o tamanho das baratas voadoras que pisávamos e o ruído delas ao serem esmagadas, enquanto andávamos rumo ao terminal, por entre o calor abrasador e húmido, semelhante ao de Banguecoque.

Dali partimos num pequeno bimotor de oito lugares para o aeroporto “internacional” de Baucau (o de Díli não estava operacional por qualquer razão). Apesar da beleza da trovoada e dos relâmpagos, que não cansavam de iluminar milhentas ilhas vulcânicas do arquipélago a viagem fez-se sem grandes sobressaltos. Tanta ilha, tanto mundo por descobrir sob a luz dos relâmpagos sobrevoando o arquipélago (à data pensava-se que a Indonésia teria 13 mil ilhas, hoje sabe-se serem mais de 18 mil).

EURASIAMENTE À VOL DE 747B

I DA EUROPA AO ORIENTE-DO-MEIO

 

alando de paris logo passamos o azur da côte

sem escândalos nem coroas arruinadas

escarpas e praias despidas de homem

nove mil metros restituem à natura

impolutas ficções

(depois, o mediterrâneo é um lago semeado de grécias

logo a seguir à itálica bota

corfu vigia em tons de ocre

em tempos creta foi nome de ilha

na mitologia de zeus).

da turca ankara sobrevoámos izmir

mandam-nos regressar

estamos no oriente-do-meio

a guerra volta dentro de dez dias

e só dura seis

 

telavive é um amontoar branco de colinas

um algarve deslocado

na planície árida velhos aero-despojos

entram comandos auto-metralhadorizados

importunam

espiam

revistam

obrigados e silentes

somos a abrasadora quietude do jumbo

partiremos

sempre mais tarde que previsto

no deserto amarelecido qual alentejo

repousam monstros de muitas lutas

nos kibbutz labutam formigantes sionistas

– este povo traz consigo o estigma

da aniquilação

própria e alheia

cheira a morte. –

cheiram a morte!

 

  1. A TERRA DOS PERSAS

embaixo sorriem sombras

minúsculos pontos rasgando a treva

quilómetros de fantasmas ancestrais

casas talvez brancas

bairros de adobe

avenidas ocidentais

mesquitas

na poeira do cansaço

um nome semimágico

teerão

a história do xá

um povo sem voz

à espera

o silêncio compungido do imperialismo

aterrámos lado a lado com estrelas ianques

estranho porto no coração do petróleo

persépolis foi há 2500 anos

o mito de alexandre

hoje.

III INDIANA UNIÃO

a meu lado um saxónico cacareja

o nojo imenso da miséria

suja imundície

estamos em delhi, a nova

capital das castas

ghandi morreu há muito e era mahtma

indira é mulher e déspota ao que dizem

país estranho de contrastes e civilizações

dele guardo esconsas imagens

fome e pobreza

estamos no subcontinente da morte lenta

aliviado respiro

ao deixar o hindustão

 

  1. NO REINO DO SIÃO

é já dia

os arrozais me espreitam

verde o país

castanho é banguecoque

em plena pista búfalos pachorrentos

a banhos de lama

camponeses debruçados

nos pântanos colhem o arroz

pequenas árvores dividem o asfalto

chove lá fora

sob 42º C de sol

lufadas de calor húmido nos penetram

densa respiração no ar por condicionar

lentas formalidades num inglês arrevesado

a vida possui aqui uma lenta ritmia

todo o tempo nos espera

nas autoestradas camionetas com jovens

patrulhas militares

todos os veículos se cruzam dos lados todos

coloridos templos incrustados de pedrarias

ouro maciço de budas

descalços com cintos sagrados

nos embasbacámos

este o país do mistério

igrejas e fortes portugueses

memórias de tratados reais siameses e lusitanos

o mercado flutuante é uma cidade imensa

longos canais pútridos nesta veneza oriental

sente-se o aroma do dólar nas ruas

por entre golpes de estado adiados

a cem quilómetros se combate

é o apelo do futuro

os thais são simpáticos e ardilosos

milhares de anos de sabedoria a explorarem europeus

os preços função da nacionalidade

no faustoso erawan hotel

o luxo grandiloquente oriental

a sofisticada comodidade do ocidente

uma volta rápida pela cidade dos mil-e-um-templos

para lá das faces mudas

se encerra

o mistério

o convite

voltarei um dia.

 

  1. TIMOR

timor cresceu cercado

lendas que a distância empolgou

o sonho

a quietude

as 1001 noites do oriente exótico

o sortilégio dos trópicos

para o europeu

chegar era já desilusão

desprevenido

sobrevoa estéril ilha

montes e pedras

agreste paisagem sulcada

leitos secos

abruptas escarpas

terra sem marca de homem

esparsas cabanas de colmo

será isto timor?

o avião desce o vazio em círculos

em vão os olhos buscam a pista

por trás de um montículo imprevisto

se vislumbra o “T”

e a torre de controlo dos folhetos de propaganda

nunca existiu (naquele formato)

a alfândega é o bar

a sala de espera

sob o zinco e o colmo

isto é baucau

aeroporto internacional

a vila salazar dos compêndios

que a história esqueceu

uma turba estranha se amontoa

à chegada do cacatua-bote[1]

o patas-de-aço

esta a cerimónia sagrada do deus estrangeiro

descendo dos céus

dia de festa para os trajes multicoloridos

o contraste do castanho de sóis pigmentados

cinco da matina

e é já o pó e o calor

o espanto mudo nas bocas incrédulas

as formalidades aqui com sabor novo

espera lenta e compassada

séculos de futuro por viver

antes que ele venha

antes não venha

num barracão zincado uma velha bedford

de carga com caixa fechada

vidros de plástico sob o toldo puído

pomposo dístico colonial

carreira pública baucau-dili

picada em terreno plano

mar ao fundo

baucau

cidade menina por entre palmares

densa vegetação tropical

connosco se cruzam estranhos homens de lipa[2]

galo de combate ao colo

entre torsos e braços nus

das ruínas do mercado se evocam

desconhecidos templos romanos

estrada nº 1 até díli

sulcam-se abruptas as encostas

ao mar sobranceiras

ali se adivinham cristais multicolores

em lugar de pontes se atravessam ribeiras

enormes

leitos secos

o tempo as converteu em estradas de ocasião

pedregoso solo

cores indefinidas

castanhos e verdes

palapas [3] dissimuladas na paisagem

imagens tristes de pedras e montes

baías primitivas

inconquistas

praias de despojos e conchas

paraísos insuspeitos

as gentes de sorrisos vermelhos

assusto-me

não é sangue nas bocas gengivadas

masca, mescla de cal viva e harecan[4]

placebo psicológico da alimentação que falta

um sorriso encarnado esconde a fome

súbito

por paisagens que só a memória

sem palavras descreverá

eis díli

a capital

larguíssima avenida semeando o pó nas palapas

casas de pedra com telhados de zinco

na ponta leste chinas e timores

partilham a promiscuidade da pobreza

díli

plana e longa

a vasta baía antevendo imponente

o ataúro ilha

um porto incipiente

a marginal desagua no farol

construções coloniais pós 1945

da guerra que ninguém quis

dos mortos que os japoneses quiseram

da neutralidade do país mãe calado e violado

albergam chefes de serviço

altas patentes militares

sem guerras para lutar

sem movimentos libertadores das gentes

 

quinze quilómetros de asfalto

três casas dantes da guerra grande

aeródromo em terra batida

um jipe de afugenta búfalo

a rua comercial atravessa díli senhora

de leste a oeste

espinha dorsal

o centro

o palácio das repartições

o do governo

perto um museu

o seu nome ostenta o vazio

riquezas sem fim

seus governadores exportaram

patriotas

colonizadores de séculos com nada para mostrar

um museu morto

dois sinaleiros nas horas de ponta

ociosos às portas dos cafés

à noite transfiguram-se

os bas-fond

o texas bar

da prostituição às slot machines

o submundo

a vida underground

afogar esperanças em álcool

sonhos há muito perdidos nunca sonhados

restaurantes poucos

melhor comida a chinesa

bares espalhados pela cidade

militares e álcool para calar distâncias

um portugal dos pequeninos

longínquo

cada vez mais

esquecido

nunca

perdido.

1973 numa cidade sem vida

morrendo nas cinzas

próprias de cada noite

por entre o silêncio e a voz triste dos tokés

o calor putrefacto

por entre o voo alado das baratas gigantes

carros poucos

de dia só do estado

motocicletas pululam por entre viaturas oficialmente pretas e verdes

esperando mulheres de oficiais

às portas dos cabeleireiros

do liceu

militares a pé

em berliets ou unimogs

chineses muitos

 

díli é isto

a desolação

na parte alta da cidade o complexo militar

barracas insalubres

sob a sombra dos hospitais

um civil um militar

fresco e verdejante vale

triste esta cidade

pretensamente euro-africana

palapas marginando ruas

nelas vive o timor

sem água nem luz

dez ou quinze filhos

que importa

a miséria é só uma e a mesma?

esta “a terra que o sol em nascendo vê primeiro”

aqui as imagens

e são já história

não se repetirão

aqui não daremos testemunho

como transfigurar

colónias pacíficas

em palcos de guerra.

Chrys Chrystello, Jornalista,

Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists’ Association – MEEA]

drchryschrystello@journalist.com,

Diário dos Açores (desde 2018)/ Diário de Trás-os-Montes (2005)/ Tribuna das Ilhas (2019)/ Jornal LusoPress, Québec, Canadá (2020)/ Jornal do Pico (2021)

 

[1] cacatua-bote ou patas-de-aço eram designações dadas pelos timorenses aos aviões

[2] lipa, saia de tecido colorido, típica, de origem malaia, os timorenses usam-na enrolada à cintura descendo até aos tornozelos.

[3] casas cónicas, quadradas ou retangulares em colmo

[4] folha de planta semelhante à do tabaco