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Fonte: (29) Falemos de rigor e de seriedade
Uma análise do discurso de Nuno Crato, antes e depois de ser ministro,
tropeça profusamente na recorrência com que se encontra o termo “rigor”. Mas o
rigor é inatingível sem conhecimento profundo do universo em que se opera e sem
seriedade intelectual e política. Em fim de mandato, Nuno Crato não será
recordado pelo rigor.
A ignorância a que me refiro, sobre a complexidade de um sistema de ensino,
está particularmente patente na escabrosa reforma curricular que Nuno Crato
promoveu, marcada por reminiscências doutrinárias do seu debute político. Com
efeito, adoptou o clássico princípio do materialismo dialéctico (aumentando a
quantidade transformamos a qualidade da realidade) ao desenvolvimento
curricular. Aumentou a carga horária das disciplinas a que chamou de estruturantes
(desconhecendo que a natureza estruturante ou instrumental das disciplinas se
altera em função de contextos e não resulta de simples enunciação mas sim de
fundamentação, coisa que nunca fez) e despejou avalanches de exames sobre as
escolas, convencido de que, assim, o saber aumentaria. Mas não aumentou nem
aumentará, só por isso.
O tempo para aprender é importante. Mas mais importante é o que se faz com
esse tempo. Aumentar a carga horária a um aluno que não entende o que lhe dizem
é, tão-só, aumentar-lhe o suplício e desenvolver-lhe o ódio à Escola. Manter
sentado, durante o mesmo tempo, um infante de 10 anos ou um jovem de 18, um
aluno interessado ou um aluno justificadamente desinteressado, dá resultados
diferentes.
A revisão curricular de Nuno Crato obedeceu a uma lógica invertida:
iniciou-se com a distribuição das horas por cada disciplina, prosseguiu com a
definição das metas de aprendizagem e terminou com a aprovação de novos
programas. Ou seja: sem se saberem as razões da necessidade de consignar determinado
número de horas a determinada disciplina, porque programas e metas ainda
estavam para vir, consignou-se. O recém homologado programa de Português para o
ensino básico, com as suas quase 1000 metas (leu bem, leitor, mil metas) é um
belo paradigma da insanidade pedagógica a que chegámos. O problema é que a
inadequação deste e de outros programas aos estudantes a que se destinam é algo
impossível de explicar a quem chamou ocultas às ciências da Educação e
substituiu a pedagogia pela contabilidade. A quem privilegiou umas ciências em
detrimento das outras, que explicam o sentido da vida e a natureza do Homem. A
quem, em nome da formação técnica, estreitou a porta de entrada das
humanidades, das artes, do desporto e da cidadania completa.
A falta de seriedade intelectual e política supera a ignorância. Colhamos
exemplos neste fecho de ano escolar. A subida da média do exame de Matemática
A, acabada de conhecer, um dos melhores resultados de sempre, diz o quê? O que
se afirmou no editorial do Público de segunda-feira,
isto é, que sim, os exames são um instrumento político. Só que o ministro é
neste momento o comentador que, em 2008, acusava Maria de Lurdes Rodrigues de
fazer o mesmo que agora se verificou. É aquele que vociferava no Plano Inclinado contra a impossibilidade de se fazerem comparações de resultados de um ano
para o outro, exactamente como agora, no dizer do presidente da Sociedade
Portuguesa de Matemática, a mesma que era presidida por Nuno Crato em 2008. É
aquele que nos toma por tolos, invocando a independência de um IAVE que ele
paga, cujos órgãos de direcção, com uma única excepção, são nomeados pelo
Governo, sob proposta dele. E que disse o presidente do Conselho Científico do
IAVE, o único órgão não nomeado pelo Governo, em Coimbra, em 16 de Maio
passado? Que o Ministério da Educação e Ciência condiciona o IAVE, preordenando
o resultado dos exames. Como acabamos de verificar.
A diminuição da taxa de reprovações nos anos de exame, tão celebrada pelo
Ministério da Educação e Ciência, tem uma razão para quem não se fica pelas
letras gordas: é que, em contrapartida, está a aumentar o número daqueles que
ficam retidos nos anos intermédios. Penalizadas pelos resultados das
classificações (créditos de horas), pressionadas pela febre dos exames, as
escolas deixam para trás os que têm dificuldades de aprendizagem e os que
pertencem a famílias social e economicamente mais débeis. Circunstância para
que contribui, do mesmo passo, a crescente desmotivação dos professores,
sobrecarregados de trabalho, sujeitos há anos ao congelamento de carreiras e a
cortes salariais, muitos sem projecto de vida e expostos a despedimentos
sumários.
Se na próxima legislatura a Educação continuar governada apenas por
paradigmas utilitários e econométricos, não conseguiremos compreender
socialmente, quanto mais resolver, os grandes problemas que se colocam aos
alunos, às famílias, aos professores, numa palavra, ao país.
In “Público” de 15.7.15