Mês: Setembro 2022

  • recordemos NORBERTO ÁVILA

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    A CASA DOS AÇORES EM LISBOA CONTINUA A DIVULGAR AUTORES AÇORIANOS
    FOLHETIM
    Norberto Ávila
    FRENTE À CORTINA DE ENGANOS
    Romance
    Capítulo 7
    Na esplanada, bem junto a uma floreira de argila
    transbordante de petúnias e pelargónios, Claudite
    Marlene pespegava nos seus postais as consabidas
    trivialidades. E, quando em quando, interrompendo-se
    na escrita (não isenta de pequeninos e grandíssimos
    erros de ortografia), descontinuava também a leitura do
    paciente Corujão, sem entender quanto isso lhe era
    perturbador. Retenhamos apenas um exemplo:
    “Dou o dito por não dito, Zebedeu.”
    “E mais concretamente…? É que disseste tantas coisas!”
    “Quando subimos todos ao 3.º andar, a dar uma
    espreitadela ao quarto individual, lembras-te?, o Bruno ia
    connosco.”
    “Pois se íamos todos…”
    “O Bruno levava ao ombro (tenho quase a certeza) o
    saco de viagem azul escuro, aquele com que ele
    desembarcou no aeroporto e trouxe à sua conta no táxi
    aquático.”
    E Corujão, emergindo da leitura acidentada, por isso
    mesmo superficial: “O que eu não compreendo, Claudite,
    é porque hás-de carregar e transportar essas
    preocupações miudinhas. Que te interesses um
    bocadinho pelas condições de alojamento concedidas ao
    parzito vencedor do concurso, vá que não vá. Sempre é
    um compromisso, uma despesa da TV Planeta.”
    “Afinal tudo bem. Os nossos pombinhos ficam mesmo
    juntos (assim é que é bonito) no quarto que lhes foi
    reservado pela produção do programa! Pronto, já fico
    mais descansada.”
    “E eu volto a dizer-te, Claudite, que não entendo bem
    esses teus pruridos. Que te importa a ti que eles durmam
    juntos ou separados?, na varanda ou em cima do telhado?
    Isso é lá com eles. Contanto que a TV Planeta não te falte
    com o pagamento do serviço…”
    E, vendo o seu Thomas Mann constantemente
    salpicado de claudíticas baboseiras, tratou de o pôr a
    salvo no esconderijo do bolso. Meteu-se então a estudar,
    muito pela rama, um mapa de Veneza, para se aperceber
    das distâncias entre os vários locais de visita mais ou
    menos provável. O que poderia ser feito ou não a pé.
    (Gostava muito de andar. O pior seria suportar o peso da
    câmara…)
    E aconteceu que Claudite Marlene, passeando o olhar
    em redor, como se buscasse inspiração para o chorrilho
    de lugares-comuns, viu que saíam do hotel os festejados
    ganhadores do concurso Amor com Amor se Paga. E por
    que motivo Marco e Sandra, necessariamente? Tenha-se
    na estratégia romanesca do autor a boa resposta.
    Na verdade (a verdade da ficção, entenda-se), Marco
    descera do seu quarto e, passando pelo de Bruno e
    Sandra, chamara por eles, por sinal já prontos para a
    saída. Tanto que chegaram os três à recepção, indo para
    remeter as chaves, lembrou-se Bruno de que lhe seria
    muito conveniente telefonar para Lisboa, aos pais, pelo
    que voltaria atrás, por um instante. E assim a namorada
    e o respectivo irmão decidiram ir andando para a
    esplanada. Mas sobre isto não diga o leitor a mínima
    palavra à nebulosa Marlene, sob pena de produzir
    naquela cabecinha escusadas e ridículas confusões.
    A repórter, portanto, vendo surgir Marco e Sandra do
    hotel: “Olha, lá vêm eles, os dois borrachinhos! Preparate para captar esta imagem enternecedora!”
    Mas primeiro que Zebedeu se aprontasse já eles
    vinham a meio caminho. De pronto lhes saiu ao encontro
    a espalha-brasas, com o seu câmara, pedindo-lhes
    voltassem a entrar no hotel e logo saíssem agarradinhos,
    como grandes apaixonados que deveriam mostrar-se,
    num exemplo indesmentível para as vastas audiências
    televisivas.
    “E já agora, se não se importam,” recomendou ela, “vão
    trocando uns beijinhos ternurentos. Melhor ainda:
    fogosos!”
    “Haverá bombeiros nas redondezas?” gracejou Marco
    Galisteu.
    “Água não há-de faltar nesses canais!” argumentou a
    Marlene.
    Entraram no Marconi os pretensos amorosos, lado a
    lado. Ressaíram abraçados, com manifesta firmeza.
    Satisfizeram o pedido da apresentadora.
    “Perfeito!” exclamou ela.
    Só então compareceu Bruno Santiago. E Claudite
    propôs aos dois rapazes e à rapariga que se sentassem
    um instante na esplanada, a saborear uma bebida
    qualquer. Até porque ela e o Corujão ainda não haviam
    pago os seus cafés. Mas Bruno, sensato, sugeriu-lhes que
    pagassem a despesa e, já que aquela tarde “não seria
    infinita”, tratassem todos de alcançar o vaporetto, na
    direção de San Marco.
    Transpuseram então a Ponte do Rialto, que àquela
    hora fervilhava de coloridas roupagens em apressado
    movimento. Encaminharam-se para o embarcadouro e,
    por sorte, bem poucos minutos tiveram de aguardar o
    transporte pitoresco, no qual entraram com manifestos
    sinais de boa disposição.
    E, espontaneamente, foram-se acomodando sob o
    toldado da proa, de modo a usufruirem o melhor possível
    as preciosidades arquitectónicas ainda não apreciadas
    em pormenor, em tão elevado número erguidas na
    margem esquerda do Canal.
    Ainda o autocarro aquático não havia desencostado e
    já o Bruno chamava a atenção dos companheiros para a
    frontaria clássica do Palazzo Manin-Dolfin, construído
    por Jacopo Sansovino, em 1538-40. E que não
    confundissem este arquitecto com o outro Sansovino
    (André), émulo de Miguel Ângelo, que o próprio
    Lourenço de Médicis recomendara ao nosso D. João II,
    vindo a trabalhar para ele e para D. Manuel I uma boa
    meia dúzia de anos, com o título de escultor e arquitecto
    régio. (Referência um tanto ou quanto desnecessária
    para quem, como eles, era menos versado nestas artes.)
    O elegante edifício de pedra branca, sólida arcaria e altas
    janelas, – acentuava ainda o cicerone –, estava ligado ao
    último doge de Veneza, Ludovico Manin, falecido nos fins
    do século XVIII.
    Logo a seguir inculcava-se, impunha-se o Palácio
    Bembo, gótico do século XV, um tanto ou quanto pesado
    com seus cinco pisos, abundante em janelas de moldura
    branca recortadas no rosa velho da parede. “Aqui nasceu
    o eminente Cardeal Pietro Bembo, que foi amante de
    Lucrécia Bórgia,” informou o Santiago.
    “Ai o devasso malandreco!” soltou Claudite Marlene,
    benzendo-se, fingidamente escandalizada.
    Acrescentou então o jovem cicerone: “Favorito dos
    Papas Leão X e ClementeVII, correspondia-se com o
    nosso D. Manuel I e escreveu até uma História do Novo
    Mundo Descoberto pelos Portugueses.”
    “Ena!” espantou-se o Marco, sentando-se ao lado da
    irmã. E a simplacheirona apresentadora de Amor com
    Amor se Paga: “Isso, isso. Fica aí muito bem, junto da sua
    namorada. E veja lá se vão agarradinhos, como convém
    às imagens que Corujão irá colhendo de vez em quando,
    hã?”
    Tanto que viram o repórter erguer a câmara ao ombro,
    prestes a reiniciar o trabalho, cumpriram os
    pseudonamoradinhos as patarocas recomendações.
    “Assim é que é bonito,” asseverou a Marlene. “Quero
    que mostrem mesmo aquilo que são: dois apaixonados
    portugueses numa cidade maravilhosa, nuns prelúdios
    (muito antecipados, creio) de fogosa lua-de-mel! De vez
    em quando… uma carícia, um beijinho. Pode ser?”
    Zebedeu registou um beijo boca-a-boca, num plano
    aproximado, e depois os dois Galisteus num plano mais
    amplo, cujo fundo era o Palazzo Farsetti, agora ocupado
    pelo Conselho Municipal.
    “Este palácio tem mais de 800 anos,” disse Bruno, “mas
    sofreu alterações ao longo do tempo, como bem se
    percebe. Nele faleceu, nos meados do século XVI, o poeta
    Pietro l’Aretino, muito famoso pela desmedida
    licenciosidade.”
    Claudite Marlene afitou a orelha. No entanto, como o
    cicerone prosseguisse noutra via, limitou-se a gravar na
    memória o espectro fugaz daquela arquitetura
    luminosa.
    “Aí funcionou também uma academia para jovens
    artistas. Dentre as que a frequentaram recordarei
    António Canova, o célebre escultor, esse que, conhecido
    por muitas obras notáveis, ousou criar uma estátua nua
    de Napoleão Bonaparte (diabos o levem, ao imperador!),
    que bem pode ser vista num museu de Milão.”
    “Napoleão? Nu?” procurou logo certificar-se a Marlene.
    “Quem visse! E é que passámos ontem por Milão,
    carago!”
    “Claudite,” resmoneou Corujão, “não sejas libidinosa.”
    “E o ‘instrumental’… é de mármore ou de bronze?”
    tornou ela, tilintando pulseiras e braceletes.
    “De bronze,” respondeu o rapaz. “Pelo que… de
    qualquer forma… não funciona, minha boa amiga.” E,
    receando tornar-se fastidioso, deixou passar sem
    referência o Palácio Grimani, austero edifício
    renascentista, com suas colunas coríntias e arcos
    semicirculares. Quanto ao Palácio Mocenigo, já quase na
    volta do Canal, chamou apenas a atenção para o facto de
    existir uma placa em honra de Byron, que ali se hospedou
    em mil oitocentos e tal. (1818 – confirma e certifica agora
    o autor do romance , após compulsar uns apontamentos
    sobre as andanças do poeta.)
    Bruno deixou passar outrossim uns tantos exemplares
    de excelente arquitectura mas que lhe não
    proporcionariam os desejáveis, acessíveis comentários
    culturais. Pelo que só muito depois, ficando já para trás a
    Ponte da Accademia, se dignou selectar o Palácio
    Barbaro, construção requintada do século XV, colorada
    de ocre, com seus dois delicados balcões de pedra branca,
    sobrepostos. “Ali teve o pintor Claude Monet, durante
    não sei quanto tempo, o seu local de trabalho. E assim
    também o romancista Henry James, onde escreveu The
    Aspern Papers.”
    Bastante mais abaixo apontou aquele que é um dos
    mais distintos e luxuosos hotéis de Veneza: o Gritti
    Palace, em que costumava instalar-se Ernest
    Hemingway.
    “Havemos de lá ir,” desejou o jovem Galisteu, profundo
    admirador do laureado escritor norte-americano.
    Tratava-se de um equilibrado edifício quatrocentista,
    de cujas paredes de tijolo aparente ressaltava a pedra
    branca das molduras góticas. E na ampla esplanada, ao
    rés do Canal, toldada de azul e creme, recortavam-se
    alguns hóspedes sentados às mesas, em ameno convívio.
    Poucos metros sulcados na superfície turquesa daquelas
    águas mansas, já o prestimoso guia turístico exclamava:
    “Atenção, muita atenção! Aquele palacete, ContariniFasan de seu nome, é também do século XV ( e peço
    desculpa se tenho de referir tantas vezes os séculos XV e
    XVI). É tradicionalmente considerado como a ‘Casa de
    Desdémona’. Para utilizar uma bem conhecida expressão
    italiana, si non e vero e ben trovatto.” (E a luz do Sol
    declinante dourava os rendilhados das varandas.) “Em
    todo o caso, imaginemos numa gôndola o perverso Iago,
    proclamando ao pai da donzela que a sedução de Otelo se
    consumava, acentuando a frase preparatória: Look to
    your house, your daughter, and your bags!”
    Bruno mostrou ainda outro palácio da família
    Giustinian. “E aí temos a sede da Bienal.
    Nos séculos XVIII e XIX foi um hotel bem conceituado,
    em que se hospedaram algumas celebridades: o inglês
    William Turner, incansável a pintar Veneza e a divulgála, mas também Giuseppe Verdi e Marcel Proust.”
    Ia o vaporetto chegando ao desembarcadouro de San
    Marco Vallaresso quando o jovem cicerone apontou uma
    rua que partia do cais: “Ali, naquela rua…” Mas logo se
    arrependeu do encaminhamento da revelação. “Nada.
    Isto há-de ser uma pequena surpresa, sobretudo para um
    lisbonense do Alto de Santo Amaro.”
    Ficaram os outros intrigados, na expectativa.
    Passaram desta vez muito mais cerca daquele conjunto
    arquitectónico deveras singular, com a Zeca (antiga Casa
    da Moeda, segundo explicou Bruno), o Campanile, a
    Basílica e o Palácio dos Doges. E, como o cicerone
    insistisse para que se apeassem em San Zaccaria, que era
    a próxima paragem, assim fizeram. Deambularam então
    pela Riva degli Schiavoni (que Bruno traduziu por Cais
    dos Esclavónios), recordando-se ele próprio, tão
    intensamente, do quadro de William Turner sobre
    aquele motivo, que vira há dois ou três anos no Museu
    Britânico. E muito a propósito citou mesmo o pintor
    referindo-se a Veneza. “Cito de memória,” disse o rapaz.
    (Mas não o autor do romance, que se documentou a
    respeito:) “…uma cidade branca e rosa, surgindo de um
    mar de esmeralda e sob um céu de azul safira.”
    Tinham ali em frente o Hotel Paganelli, pelo que
    Claudite Marlene perguntou aos jovens acompanhantes
    se queriam entrar um instante. Eles porém, mais por
    sentirem falta de tempo que falta de curiosidade,
    decidiram adiar essa pequena visita.
    Depois, de um bloco de prédios de semelhante porte,
    adossados ao Convento de San Zaccaria, Bruno apontou
    aquele em que o supracitado Henry James completou o
    romance Retrato duma Senhora, aí por volta de 1880. E
    apreciaram a vigorosa estátua equestre de Vítor
    Emanuel II, primeiro rei da Itália unificada, erguida
    precisamente em face de outro hotel de muita nomeada:
    o Londra Palace.
    “Tchaikovsky, na sua permanência veneziana,”
    explicou o jovem erudito, “ficou aqui instalado, gozando
    desta vista encantadora sobre a ilha de San Giorgio
    Maggiore.”
    “Tal como nós, Corujão!” comentou a Marlene ‘DiaTriste’, passando-lhe o braço pelo ombro.
    “Mas da estadia do russo,” respondeu o jovem
    irreverente, “resultou a composição da Quarta
    Sinfonia…”
    Subiram e desceram então a Ponte del Vin, e
    detiveram-se junto ao Palácio Dandolo, este do século
    XIV, de amplo frontispício rosa, com uma belíssima
    galeria de pedra floreada. “Este edifício,” revelou Bruno
    Santiago, “é particularmente relevante para a história da
    Música. Em Veneza foi aqui que se cantou a primeira
    ópera. Tratava-se de Proserpina Rapita de Cláudio
    Monteverdi, em 1630. Aliás, não sei se estarei a maçá-los
    com estas miudezas…”
    “Eu por mim,” respondeu Sandra (e Claudite pareceu descobrir-lhe algum embevecimento), “não me cansarei
    de escutar-te.”
    “Já agora,” acrescentou o providencial guia turístico,
    convém lembrar que Monteverdi, mestre de capela de
    São Marcos, viveu em Veneza os seus últimos anos, e para
    os teatros públicos da cidade escreveu outras duas
    óperas, belíssimas, ainda hoje do repertório universal: O
    Regresso de Ulisses e A Coroação de Popeia.”
    O excelente Palácio Dandolo tornara-se, em 1822, no
    Hotel O Danielli, um dos mais famosos da Europa. “Por
    aqui passaram,” prosseguiu Bruno, “escritores e artistas
    de grande nome, como Balzac, Dickens, Proust, Cocteau,
    Wagner e Debussy, por exemplo. Nos anos 30 do século
    XIX, – no quarto nº 10, para ser mais preciso –,
    desencadeou-se um grande escândalo.” (E Marlene afitou
    a orelha.) “A romancista francesa George Sand, trintona
    por essa altura, empreendera uma viagem à Itália
    trazendo o amante de então a título de secretário.
    Tratava-se do jovem poeta Alfred de Musset, meia dúzia
    de anos mais novo. O que é certo é que, estando aqui
    hospedados, Musset (autor de uma primeira comédia
    que fora um fracasso: A Noite Veneziana) resvalou, dias
    seguidos, nas orgias que o levaram ao leito, enfermo, mas
    gravemente enfermo. Foi então que a doidivanas da
    George Sand o abandonou e deitou a fugir com um
    médico conhecido entretanto.”
    “Talvez o que foi chamado a tratar do doente…?”
    aventurou Marco Galisteu.
    “Isso não sei,” respondeu o amigo.
    Súbito avançou Claudite um passo destrambelhado.
    “No quarto n.º 10, diz você?”
    “Exacto. Assim rezam as crónicas desse tempo.”
    E logo ela se lançou para a porta do Danielli e entrou,
    expedita, num rompante. Olharam-se os outros
    reciprocamente, perplexos com semelhante atitude. E ali
    ficaram, aguardando.
    Mas não tardou que perguntasse o Zebedeu Corujão:
    “Essa tal George Sand foi a que se tornou amante de
    Chopin, não foi?”
    “Um ano depois, se tanto,” confirmou Santiago.
    Passados uns 5 minutos reapareceu a bisbilhoteira,
    acelerada, sacudindo pulseiras e braceletes: “Espreitei
    pelo buraco da fechadura. Não se vislumbra grande coisa.
    Uma doce penumbra. Mas pelo menos levo na retina um
    ligeiro vestígio daquele amor desgraçado.”
    ***
    Muito embora os tivessem por locais de visita
    obrigatória nos dias seguintes, com mais vagar,
    decidiram-se por uma olhadela à Praça de São Marcos e
    à Basílica da mesma invocação. E, transitando pelos
    Giardinetti Reali, o jovem cicerone encaminhava os
    companheiros para a Calle Valaresso e, mais
    concretamente, para o Harry’s Bar, que nisso consistia a
    surpresa por certo agradável ao Marco Galisteu. “Tratase do primeiro Harry’s Bar, dos vários que agora se
    dispersam por esse mundo. E este ganhou renome a
    partir de 1931, ano da sua fundação, pela frequência com
    que nele se foram mostrando figuras principescas e
    chefes de estado, estrelas de cinema, músicos e escritores
    consagrados.
    Recordo os nomes de Aga Khan, Orson Welles, Chaplin,
    Toscanini, Truman Capote, além de outro representante
    muito destacado da Literatura Norte-Americana…”
    Pouco depois, abancados à volta duma pequena mesa,
    optaram todos por cocktail Bellini, por sugestão e a
    convite de Bruno, que o classificou como um aperitivo de
    vinho espumante do Véneto, misturado com sumo de
    pêssego. E sobejamente louvada foi a refrescante bebida.
    “Uma excelente ideia, Bruno, esta de nos trazeres
    aqui,” reconheceu Marco.
    “Sim? Pois ainda não sabes a razão desta primordial
    investida no domínio dos bebestíveis regionais.”
    Ainda que o bar fosse propriedade de um italiano, o
    financiamento da iniciativa partira de um americano de
    Boston, Harry Pickering de seu nome, informou o solícito
    guia turístico. E acrescentou: “Agora o mais importante
    do caso.” Fez uma pausa geradora de expectativa. Ingeriu
    mais um golinho de aperitivo. “O bravo Ernest
    Hemingway, que muitas vezes andava por aí a caçar na
    laguna, era frequentador assíduo deste local.”
    Marco Galisteu, por mais motivado quanto ao assunto,
    procurava guardar na retina aquele quadro vivo de luz
    atenuada. Mas não tardou que voltassem à Riva degli
    Schiavoni, para o jantar, ao ar livre.
    E, porque algum leitor mais acepipeiro e inclinado aos
    prazeres da mesa não me desculparia se eu não
    inventariasse aqui os pratos seleccionados pelos
    convivas portugueses, darei breve notícia a tal respeito.
    Para Sandra Galisteu escolhi (porque ao fim e ao cabo
    será sempre o autor a ter esse privilégio) escolhi
    medalhões de vitela com espargos e alcachofras. E para
    o irmão? Esturjão cozinhado com sal grosso. Galinha-daguiné com molho de pimenta (dado ser condimento de
    vocação afrodisíaca) para Bruno Santiago. Para Claudite
    Marlene hesitei entre rodovalho com manteiga negra e
    risotto de lagosta com alho-porro e cebolas. E acabei por
    deixar-lhe o rodovalho. Resta-nos então saber a sorte de
    Zebedeu Corujão. Pois esse… exultou sobremaneira ao
    ver pousar na mesa o seu pato-bravo com fettuccine. Para
    acompanhamento dos peixes trouxeram-lhes vinho
    branco Gambellara; para coadjutor dos medalhões de
    vitela e do pato-bravo, vinho tinto Bardolino. Quanto à
    sobremesas, tiveram à disposição três especialidades:
    crepes de framboesa, crema frita alla veneziana e
    gelatina de uvas moscatel com molho de pêssego, e de
    todas elas fizeram amistoso intercâmbio.
    No decurso do jantar foi a conversação animada. E
    Claudite, tendo ao lado um bloco-notas de papel cor-derosa, aproveitava a registar alguma sugestão de Bruno
    para os dois dias seguintes, em que ela e Corujão ainda
    permaneceriam em Veneza, porque os outros
    companheiros, melhor afortunados, não partiriam antes
    que se completasse a prevista estadia de uma semana.
    “Já nos vai faltando uma pequena volta de gôndola pela
    cidade,”considerou Santiago, deliciando-se com uma
    garfadinha do oloroso crepe que a Sandra, do seu próprio
    prato, lhe foi levar à boca.
    (E a Marlene deteve-se uns segundos, avaliando o grau
    de intimidade que entre ambos poderia haver.)
    Mas o rapaz concluiu o seu raciocínio: “Uma passeata
    de gôndola por esse labirinto de canais e canaletes é uma
    experiência inesquecível. Poderíamos talvez começar
    pela parte que ainda não vimos do Canal Grande, acima
    da Ponte do Rialto.”
    Concordou plenamente a apresentadora de Amor com
    Amor de Paga. E pareceu-lhe que o grupo deveria seguir
    em duas gôndolas, uma após outra. A saber: na primeira,
    o parzinho de apaixonados, Marco e Sandra; na outra,
    além do gentil cicerone, ela própria e Zebedeu Corujão,
    que iria colhendo as imagens mais aliciantes de cada
    circunstância, partindo dos referenciados protagonistas
    e regressando a eles de quando em quando, para a
    expressão de uma carícia, de um beijinho, etc. (Afincava
    muito neste pormenor.)
    Mas o Santiago pediu licença para divergir: “Não sei
    qual a vantagem em ocuparmos duas gôndolas a não ser
    a de fazer pagar à TV Planeta o dobro do que poderia
    gastar. Porque a gôndola é mesmo um transporte de luxo,
    para turistas endinheirados. Basta dizer que alguns
    venezianos só a terão utilizado em dia de casamento, seu
    ou de algum familiar.”
    “Caramba! Será assim tão caro?” interrogou-se Marco,
    e consumiu a última gota de Gambellara.
    Zebedeu prestou então ao diálogo o seu pequeno
    contributo: “Na verdade creio que vi, não sei se ontem se
    hoje, pelo menos uma gôndola com 5 passageiros.”
    “É o máximo que podem levar,” esclareceu Bruno.
    “Se há conveniência em alugar duas gôndolas,
    conforme justificou a Marlene… nenhum problema! Uma
    delas seguirá a expensas de Marco Galisteu,” declarou o
    próprio. “Melhor dizendo: a expensas e com o patrocínio
    do papá Fortunato. As duas que fossem, Santo Deus!”
    “De modo nenhum!” barafustou a das muitas pulseiras
    e braceletes, “A TV Planeta deu-me rédea solta para estas
    e quaisquer outras despesas!”
    “Pois seja,” aceitou o Bruno. “Um pormenor apenas, mas
    de certa importância. A gôndola dos namoradinhos irá
    atrás da nossa e não o contrário. Para que o Corujão os
    possa apanhar de frente, ou pelo menos a três quartos.”
    Chegados a esta concordância, ocorreu a Bruno
    recordar-lhes que Verona, imortalizada por Shakespeare
    nos trágicos amores de Romeu e Julieta, era cidade
    próxima e de fácil acesso, lugar sobejamente significativo
    para um apontamento de reportagem.
    Claudite Marlene delirou com a sugestão: “Bravo,
    Santiago! Lá iremos nós então na quarta-feira. Depois de
    amanhã, portanto.”
    Satisfeita a conta do restaurante, Bruno, Sandra e
    Marco acompanharam Claudite e Corujão ao Hotel
    Paganelli. Por ser já um pouco tarde não quiseram subir.
    E, prosseguindo a noite deveras agradável, decidiram-se
    os três por um passeio a pé, de regresso ao Marconi.
    “É longe?” perguntou a rapariga, lançando o braço, por
    trás, à cintura do namorado verdadeiro.
    “Meio quilómetro, talvez, ou pouco mais,” respondeu
    ele retribuindo-lhe o gesto afetuoso.”
    Cruzaram depois a Praça de São Marcos. (Fosse em
    pleno dia, erguer-se-ia um bando de pombos, num
    alvoroço de asas.) Foram cortando a direito para a
    margem esquerda do Canal Grande. E então, passando
    pelo Campo de San Bartolomeo, prestaram breve
    homenagem à estátua do dramaturgo Carlo Goldoni,
    veneziano dos mais ilustres. Súbito tiveram vista da
    Ponte do Rialto, com a sua pedra branca suavizada pelas
    luzes nocturnas. E, antes de a atravessarem pela segunda
    vez, Bruno dispôs-se ainda a facilitar-lhes um mínimo de
    informações sobre a história do monumento.
    “É uma ponte muito original, como vêem. Além das
    escaleiras junto às balaustradas, tem duas alas de
    pavilhões com seus arcos de volta inteira, e nesses
    pavilhões, abertas para a passagem central, haverá umas
    duas dúzias de pequenas lojas comerciais. As pontes
    anteriores, neste local, eram de madeira. Uma delas,
    cheia de populares que assistiam ao casamento do
    Marquês de Ferrara, em 1444, abateu estrondosamente,
    fazendo muitas vítimas. Outra, posterior, com uma parte
    levadiça, deixava passar os galeões de altos mastros. Mas
    no século XVI foi aberto um concurso para o projecto de
    construção duma ponte de pedra. A ele se apresentaram
    artistas famosos: Miguel Ângelo, Andrea Palladio e
    Jacopo Sansovino, por exemplo.”
    “E quem foi o escolhido?” quis saber a Sandra.
    “Nenhum dos três. (Isto porque os desaires também
    acontecem aos grandes criadores da Humanidade.) O
    projecto preferido foi o de António da Ponte. Esse que aí
    vemos concretizado.”
    Alcançado o Hotel Marconi, subiram os três ao
    aposento destinado a Marco, onde Bruno recuperou o
    seu saco azul de viagem. Convencionada a hora do
    reencontro na manhã seguinte, desejaram-se boas noites
    e bons sonhos. Só então o verdadeiro par de apaixonados
    desceu ao seu quarto do piso imediatamente inferior.
    Marco chegava entretanto à janela, para apreciar um
    pouco o movimento nocturno das gôndolas, táxis
    aquáticos e outras embarcações. Nas esplanadas da Riva
    del Vin havia ainda algum convívio de naturais e
    forasteiros. Reparou então na janela da louraça, cuja
    presença fora naquela tarde apercebida. Nenhum traço
    de luz. Andaria ainda por fora ou estaria já recolhida a
    vale de lençóis.
    (Aqui ficaria a matar o esboço de um vago sentimento
    de solidão. Porém o autor não se mostra, nesta
    circunstância, propenso a semelhantes lamechismos,
    pelo menos em referência ao bravo Galisteu.)
    Por sua vez Bruno e Sandra, no quarto duplo do 2.º
    andar, contemplaram também o Canal Grande, as
    esplanadas da Riva del Vin, a Ponte do Rialto. Mas foi
    apenas um momento breve. Porque não tardaram a
    deitar-se, e nos braços um do outro. Não para o descanso
    incontestavelmente merecido: antes para os deleitosos
    combates que o Amor lhes vinha preparando.
    E o autor, por uma estratégia narrativa, neste quase
    final de capítulo, retransfere a ação para a zona de San
    Marco.
    Zebedeu Corujão andará por ali perto, num bar
    qualquer. Será talvez o mesmo da véspera? (Cujo nome
    agora sabemos: Riviera, a dois passos do local de
    hospedagem.) Ou talvez o Harry’s Bar…
    E Claudite Marlene? Sozinha no seu quarto,
    pesadamente esparramada na cama alta e lêveda,
    tentando conciliar o sono, olhos persistentes na parede
    que a separa do bebedanas Zebedeu. Num devaneio
    romântico, quase uma quimera, acorria-lhe à imaginação
    uma fascinante e irresistível hipótese: a de que fora bem
    sucedida numa sedução a Marco Galisteu, que acabara
    recebendo-a no seu quarto do Hotel Marconi. Ai, mas a
    realidade era bem outra, e muito triste. Àquela hora
    estaria ele na doce companhia de Sandra, “usurpadora”
    (que já assim lhe chamava em pensamento). Ai, que
    pretexto plausível poderia congeminar para subtraí-lo
    momentaneamente aos afectos da felizarda? E então,
    abandonando-se aos caprichos da fantasia, já admitia
    que a Sandra pudesse ser atormentada por uma forte
    enxaqueca, pelo que resolveria recolher ao Hotel
    Marconi, ficando livre o jovem Galisteu, por uma hora ou
    duas. Do que resultaria ele desviar-se um poucachinho
    da sua rota amorosa, e aceitar subir por um instante
    àquele mesmo quarto do Hotel Paganelli, em que ela, a
    incandescente, a vulcânica Claudite Marlene, agora se
    encontrava, ai, inconsolável.
    E (porque o imaginar não custa dinheiro e está ao
    alcance do mais simples mortal) já a lambisgóia admitia
    outra hipótese, não menos lisonjeira. E era Marco que
    evidenciava sinais de cansaço ou desencanto em relação
    à Sandra. E daí aquela irresistível atracção pela sua
    “Claudidite” (como já ela o ouvia sussurrear-lhe ao
    ouvido).
    Mas afinal, pobre insensata, porque haveria ela de
    perder tempo com tão desmiolados pensamentos? Triste
    realidade: Marco estava inevitavelmente nos braços da
    sua querida Sandra.
    Porém o devaneio prosseguia. E a vítima era agora o
    inocente Bruno, que ela acreditava disponível por
    inteiro. Assim, regressava ao voluptuoso cerimonial da
    sedução, de que era oficiante o jovem cicerone, em cujos
    braços ela não tardava a sentir-se aconchegada. E porque
    ao jantar ele lhe havia contado (por insistência dela)
    certas passagens da vida licenciosa de Pietro l’Aretino,
    via-se, ao deslizar no sono, concubina favorita entre as
    seis ou sete que o poeta mantinha no seu opulento
    Palácio Farsetti.
    Esvoaçante, entrava e saía pelas altas janelas, envolta
    em veludos macios e rendas vaporosas. E fervilhava-lhe
    no espírito a maneira subtil (mas não menos prática) de
    como haveria de eliminar as companheiras suas
    concorrentes…
    Continua …
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  • De Covide a Solteiras: os nomes estranhos das terras de Portugal

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    Fomos em busca dos nomes estranhos de terras em Portugal. E há muito por onde escolher neste país com interiores para lá de curiosos.

    Source: De Covide a Solteiras: os nomes estranhos das terras de Portugal

  • era uma vez a praia da areia na caloura s mig açores

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    PRAIA DA AREIA NA CALOURA
    O sítio da Caloura é um lugar de “veraneio” e uma das principais atracções turísticas, pertencente ao município de Lagoa, localizando-se a meio da costa Sul da ilha de S Miguel, entre Água de Pau e Água de Alto e constituída por uma paisagem deslumbrante que rodeia a sua linda enseada.
    É um lugar, facilmente, acessível para ali chegarem, vindos de qualquer ponto da Ilha de S. Miguel.
    A Caloura deverá, definitivamente, ocupar uma referência especial, numa lista de sítios a serem visitados.
    Este maravilhoso lugar é constituído, sobretudo, por duas zonas distintas:
    – a nascente fica o seu Porto de pesca com barcos de boca aberta (alguns tradicionais), tendo uma piscina de água do mar (natural) com uma boa acessibilidade, feita através de um pequeno molhe, onde no seu topo há um Farol de apoio à navegação.
    Junto ao Porto de pesca como apoio gastronómico, existe um aprazível restaurante panorâmico, servindo, sobretudo, excelentes grelhados (peixes e carnes) e com uma linda vista para o mar, entre outras pitorescas estruturas;
    – a poente (lado oposto ao Porto de pesca) existe uma pequena praia de areia com cerca de 100m de extensão mas que, anualmente, devido às correntes marítimas, ondulação e respectivas ressacas em tempo de invernia perde a sua areia, ficando na praia uma série de calhaus basálticos rolados.
    Mais tarde o mar tornará a repôr (ciclicamente), a dita areia que de lá havia sido retirada.
    Na zona acima da praia há uma série de estacionamentos, balneários, WC, grelhadores colectivos que servem como infraestruturas de apoio aos visitantes.
    A Caloura tem um microclima sui generis que a torna um lugar predilecto, escolhido, sobretudo, pelos micaelenses e considerada por eles como sendo o “Algarve”, desta nossa linda Ilha.
    Não poderei deixar de fazer uma referência ao microclima por ser favorável à plantação de vinhas, sendo o respectivo vinho de excelente qualidade.
    * Registo neste momento o facto da autarquia, após a conclusão da grande obra de consolidação das arribas, não tivesse feito a manutenção desejável que vinha sendo normal, no que respeita à limpeza daquela praia, retirando dela os pequenos calhaus basálticos, até agora “espalhados” para que naquele espaço se pudesse disfrutar como um aprazível ambiente “exótico”.
    03-10-2022
    De: Ludgero Faleiro
    May be an image of coast, nature and the Carrick-a-Rede Rope Bridge
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    • Vitor Dinis

      Mais uma praia destruída pelos ambientalistas que autorizaram a dragagem de areia no mar dos Açores. É o mesmo por toda a parte desde que proibiram a exploração de areia nas praia e autorizaram dragas ao largo. Estas fazem buracos no fundo do mar depois de retirarem a areia e o mar volta a encher os mesmos buracos com areia dos lugares mais altos, as praias.
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  • Centenário de Pedro da Silveira

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    A festa do Centenário de Pedro da Silveira
    No âmbito das celebrações do centenário do nascimento de Pedro da Silveira, a Direção Regional dos Assuntos Culturais promove no dia 5 de setembro (dia do nascimento de Pedro da Silveira) a exibição do documentário “Os Livros que Ficaram por Ler” sobre a sua vida e obra. Em simultâneo, em todas as ilhas do arquipélago.

    Um justo reconhecimento a um homem que foi incansável na divulgação dos autores açorianos.
    21h00 | 5 setembro | ENTRADA LIVRE
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  • ingleses e nativos indianos

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    May be an image of 1 person, outdoors and text that says "Mulher indiana carregando um imperialista britânico em uma cesta em suas costas, em 1903."