Querem batatinhas…
Os mais novos não se lembrarão, mas houve lugares onde apenas eram vendidos combustíveis, chamados “bombas de gasolina”.
Depois os tempos mudaram e esses espaços passaram a chamar-se “estações de serviço”, nas quais se vende montes de coisas. Já todos penámos em filas para pagar tão só a “gasosa” metida no tanque, barrados pelas costas de cidadãos que querem tomar café, comer doces ou registar a última aposta do placard.
Foi numa dessas estações que presenciei uma cena muito triste. Um pai segurava pela mão um filho pequeno, enquanto a bicha ia lentamente progredindo em direcção ao empregado e à caixa registadora. Ao longo desses largos minutos, o puto nunca se calou. “Quero batatas fritas”, repetia, num tom cada vez mais lacrimoso, roçando-se nas pernas do pobre progenitor, que lhe ia respondendo “hoje não”.
O que levou o estupor do rapaz a começar a gritar o desejo, agarrado à perna direita do pai, tentando dificultar-lhe a marcha. Mas o homem manteve que naquele dia não. Pago o que tinha a pagar, teve de arrastar literalmente o filho pelo chão até ao carro, agora a criatura num pranto gritado pelas desejadas batatas fritas.
Ai palmadaria pelo rabo fora, já ouço alguns leitores a pensarem ou mesmo dizerem, nesta parte da crónica. Ai tal vergonha, se fosse meu filho… Mas óbvia só se revela a falta de educação em casa. “Sim é sim, não é não”, ensinou-me meu pai desde pequeno. À conta de respeitar este princípio e nunca ser malcriado em casa, muito menos diante de gente, levei mais “sins” que nãos” e até vi transformados em “sins” “nãos” primeiros, aceites estes em silêncio, por vezes com um bonga ao canto do olho.
Na minha vida de advogado, não fui muitas vezes advertido pelos juízes. Aprendi nas primeiras audiências que havia regras nos interrogatórios e que, se delas me desviasse, lá vinha reprimenda para me cingir aos factos, não me tornar argumentativo, não conduzir as testemunhas para onde queria que elas fossem. Mas nunca me passou pela cabeça desprezar as advertências dos magistrados, fingir que não era nada comigo e continuar numa linha de interrogatório não aceite pelo tribunal.
Na última semana, na Assembleia Regional, uma deputada do Partido Socialista, Sandra Faria, subiu à tribuna para justificar um pedido de urgência, para debate de uma proposta de resolução sobre os apoios às juntas de freguesia, que visava a continuidade dos programas ocupacionais.
Tratava-se apenas disto: justificar a urgência, sem entrar na substância da proposta de resolução. Esta seria discutida posteriormente, se a maioria dos deputados achasse que era urgente a matéria.
É isto que estabelece o Regimento da Assembleia. Mas a senhora deputada não queria saber. Toca a apresentar a proposta, como se já estivesse em tempo disso. O Presidente da Assembleia avisou uma vez. A deputada continuou, como se não o tivesse ouvido. O Presidente alertou segunda vez para a violação da lei, desta vez já acrescentando que lhe retiraria a palavra, se a senhora persistisse. Sandra Faria continuou a ignorar o Presidente, e este acabou por lhe desligar o microfone.
Desconhecia a deputada o Regimento da Assembleia, que a obriga a acatar a autoridade do Presidente da mesma (artigo 12º, alínea e)? Não sabia que lhe podia ser retirada a palavra, já que persistindo numa atitude ilegal (artigo 80º, nº 2)? Mesmo que desconhecesse a lei, não lhe ensinaram em pequena o que é respeito? Terá sido arrastada pelo pai para fora da estação de serviço, quando criança, a berrar por batatinhas?
Claro que não. A deputada estudou o Regimento e teve pai certamente educador. Apenas está integrada num grupo parlamentar onde impera a arrogância, depois de vinte anos de maiorias absolutas. Uma bancada onde têm assento dois antigos Presidentes da Assembleia (Ana Luís e Francisco Coelho), um antigo Presidente do Governo Regional (Vasco Cordeiro) e vários ex-Secretários Regionais.
Nenhum deles avisou previamente ou censurou depois a colega. Nem o presidente do grupo parlamentar, Vasco Cordeiro, sempre zeloso a cobrir o flanco de alguma ovelha tresmalhada, pediu a palavra para pedir desculpa pelo excesso. Foi a própria deputada quem pediu essa desculpa, pedido no qual ninguém acreditou, pois fora por duas vezes advertida, logo podendo evitar ter de pedir desculpa depois.
Durante duas décadas foi isto. Cumprimento da lei só quando dava jeito. Protecção dos deputados da maioria e cavalo-marinho para cima do lombo dos da oposição. E agora, que as coisas mudaram, não conseguem abdicar dos maus hábitos. Eles podem tudo, dentro das suas cabeças.
Preferem encher jornais com artigos e as redes sociais com comentários. Os partidos da maioria não querem programas ocupacionais nas juntas de freguesia, são culpados pela degradação de espaços públicos, da paisagem de que tanto nos orgulhamos. Quando isso nem foi discutido e muito menos votado…
Não fazem a mínima ideia do que é socialismo. E menos ideia fazem do que é democracia. Querem batatinhas. E, mais uma vez, terá de ser o povo a ensinar-lhes que… sim é sim, e não é não!
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)