Bom dia. Exames algo que precisa de ser repensado. Escrito durante o último Conselho Coordenador do sistema Educativo Regional, tendo ao meu lado ilustres colegas como, por exemplo, Manuel Rodrigues e Miguel Gameiro Silva . Um caso, entre muitos outros que mostra a injustiça dos exames.
Este texto foi produzido no segundo dia do conselho coordenador do sistema educativo regional. Uma jornada que começou com um dia cheio de boas intervenções, com temas atuais e pertinentes. Destaco pela excelência do discurso e do tema a do Professor Álvaro Laborinho Lúcio. Com muita pena minha e de muitos dos presentes, o Professor David Justino voltou a defender os exames nacionais do 12ºano com um argumento pobre: são provas para aferir! Como se todos os que andam no ensino secundário fossem pobres de espírito e não se soubesse que os exames são provas de seleção. Em resposta, escrevi a estória que se segue e que é uma entre dezenas que vivenciei na primeira pessoa, enquanto professor ou explicador.
A Maria soube no 6º ano de escolaridade o que pretendia fazer quando fosse adulta. Nesse ano, no decorrer de uma aula aberta com uma psicóloga convidada, ficou encantada. Naquela aula ouviu falar de crianças que aprendiam de forma diferente, agiam de maneira distinta ao que ela estava habituada: o mundo de neurodiversidade. Ali, naquele momento, o seu desejo foi conhecer mais sobre essa realidade, estudar para ser psicóloga. Com o decorrer dos anos cimentou esta ideia, aprofundou os seus conhecimentos e sentiu que o destino lhe tinha reservado a opção de tentar compreender e ajudar as crianças que não eram compreendidas. Ano a ano, foi cumprindo a sua escolaridade com classificações muito boas, marcando no seu calendário imaginário os dias que faltavam para poder ingressar na universidade e fazer a licenciatura que iria permitir realizar o seu sonho. No secundário, estudou intensamente, uma vontade férrea fazia com que, nos momentos de cansaço ou de pouca motivação, os estudos tivessem prioridade. Mas aquela Matemática manchava a sua média e, por mais que se esforçasse, os resultados não eram animadores, oscilavam entre o nove e o onze. Não entendia a necessidade de ter de saber calcular limites, levantar indeterminações e calcular derivadas. O que a alegrava era ser das melhores alunas nas outras disciplinas, onde as sua notas roçavam o excelente. Ao fim de 3 anos de esforço e de apoios suplementares conseguiu a média de 11 a Matemática. Faltava, para atingir os seus objetivos, realizar os exames onde, para mal dos seus pecados, a disciplina de Matemática tinha de ser ultrapassada com êxito. Os 3 anos onde, semanalmente, tinha aulas e explicações tinham, afinal, um peso relativo, os 180 minutos da prova, que equivalem a duas aulas de uma semana eram decisivos. Aquele momento assustava-a. Dia a dia a sua preparação era máxima, abdicou do divertimento e do convívio, tudo pela obtenção do sucesso no exame. Aproveitava todos os momentos dos apoios e das explicações. Com o aproximar do exame o medo de não conseguir êxito começou a tirar-lhe o apetite e o sono. Os chás e mesinhas da avó já não faziam efeito, assim como os incentivos dos pais. No dia D, aquele que para ela não tinha sentido, o medo de falhar era enorme, cada segundo de espera pelo início da prova pareceram-lhe uma eternidade. Tentava disfarçar o nervosismo, sorrindo, mas quem a conhecia e olhava para o seu rosto via nele a dor e o sofrimento. A prova estava ali, à sua frente. Em cada enunciado, as palavras são um puzzle e não se revê naqueles símbolos, não consegue relacionar com as centenas, milhares de exercícios que realizou. Por cada passo de escrita surge uma rasura, o pânico de não estar a conseguir fazer nada bloqueia as suas ideias. Apetece-lhe chorar, desaparecer. Cada segundo, cada um daqueles minutos são uma eternidade. Por fim, as lágrimas correm-lhe pelo rosto e, com elas, sente que tem de arriscar, fazer o que sabe e tentar inventar o que pensa saber. Finalmente o suplício, o tormento, chega ao fim. Sai da sala num pranto incontrolável e sente uma infinita injustiça pelo que lhe aconteceu. Nas férias, ao invés de se divertir, tem de tomar comprimidos para dormir e os pais levam-na ao psicólogo. No dia da saída da classificação não quer ir à escola. Tem a ténue esperança de que alguma amiga lhe ligue ou envie mensagem a dizer: “Maria conseguiste, foi mesmo à justa!”. Mas o milagre não ocorre. O pior cenário, aquele que tinha a esperança de não lhe bater à porta aconteceu: tem de repetir o ano, vencer aquela Matemática. Consegue agora compreender melhor a agonia dos seus colegas que repetiam o exame, alguns pela primeira vez, outros pela segunda. Com a ajuda do explicador, da psicóloga e dos pais, consegue vencer a frustração de ter de adiar o sonho e a tristeza de ver os seus colegas irem para a universidade. Durante o ano ela estuda, obtém uma ligeira melhoria na classificação, uma almofada para a tranquilizar perante o possível revés no exame. O ano decorre com a integração na turma, com a gestão dos tempos mortos. De quase todos ouve: “Afinal só estás a repetir uma disciplina e tudo é mais fácil, tens tempo para estudar”, como se no ano transato e nos outros não tivesse estudado! À medida que se aproxima o exame, a angústia vai aumentando, os exercícios de relaxamento e as técnicas para diminuir a tensão ajudam, mas o peso de tornar a falhar é mais forte. Por cada exercício que não consegue realizar durante os apoios, o papão exame vem-lhe à mente. No dia do exame a angústia é semelhante. A prova é feita sem choros, mas com muitos bloqueios. No final fica, a medo, a rever o exame com o professor. O coração quase lhe salta do peito: feitas as contas, está dependente de um valor para passar. Tenta não pensar no dia da saída dos resultados, sai com as amigas que estão de férias, sonha através dos relatos delas com sua ida para Lisboa e para a universidade. Desta vez, decide com coragem ir ver a classificação. Afinal, tem de acreditar nas suas capacidades. Ao chegar à escola sente, no silêncio dos colegas, que não conseguiu. Fica gelada, inerte ao ler na pauta que perdeu o comboio por meia décima. Os colegas admiram-na pela sua entrega ao estudo, pela sua solidariedade nas aulas, e tentam dar-lhe alento: “Pede revisão de prova! Por meio valor, de certeza que vais conseguir!”. Em estado de choque vai para a fila dos pedidos de revisão de prova, na esperança de que o seu exame tenha sido mal cotado. O explicador e o professor, depois de verem a prova, escrevem o recurso. Afinal é possível, embora com baixa probabilidade de sucesso, conseguir obter aquele valor. Recurso feito, mais uma espera de angústia. Aquela menina com sonhos, alegre, entusiasmada com os estudos e o conhecimento está um farrapo. Afinal, a meia décima não veio! Tantos anos pelo cano! Mas a Maria é heroica, não desiste, o sofrimento e a injustiça não a vão derrotar! Mais um ano, com mais maturidade e com a ajuda de um explicador e dos pais e, finalmente, consegue vencer. No dia seguinte à notícia da passagem no exame de Matemática comemora: queima todos os cadernos e livros de matemática, afastando aquele pesadelo, como se exorcizasse os espíritos malignos que a perseguiam. A Maria vai para a universidade, é uma das melhores alunas, na disciplina de estatística, aquela que tem alguma semelhança com o que aprendeu a Matemática e tem uma das melhores médias. Hoje, é uma das melhores profissionais que conheço, daquelas que faz a diferença e que contribui diariamente para a felicidade de muitos pais e crianças. Roubaram-lhe, a ela e à sociedade, dois anos! Afinal, os exames são apenas para aferir… Não é, David Justino?