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O mundo está perigoso, costumava dizer Vasco Pulido Valente, sabendo, de ante-mão, que o Mundo, sempre, foi perigoso. Mas, como bem ensinou Shakespeare, ou Sófocles antes dele, a dramatização é a arma de toda a grande literatura. Esta utilização do presente do indicativo convoca a uma sensação de urgência, um temor pela nossa própria existência e circunstância, fazendo-nos esquecer, ou pelo menos ignorar, os séculos, o passado e a História. Vivemos um presente permanente, mas um presente paliativo, como explica Byung-chull Han, uma emergência constante, ligados às máquinas, viciados numa solução de morfina, gotejando, uma gota a seguir à outra, na corrente sanguínea, somos todos pacientes em cuidados intensivos, o mundo todo é, hoje, uma gigantesca UCI. E não é só o abismo pandémico, feito de assintomáticos, essa condição paradoxal da não-condição. É o aquecimento global, a polarização, os extremismos. Putin e Ping contra o ocidente, ou será o contrário? O mundo segue num frémito, num constante solavanco e nós somos como inúteis condutores de carrinhos de choques, enganando-nos com uma falsa sensação de condução, achando que controlamos o carrinho, com bruscas guinadas de um volante de um carro que está desenhado para não ser controlado e ser permanentemente abalroado pelos outros carros da pista numa balbúrdia excitada e caótica girando incessante até ao toque da campainha. Sim, o mundo está perigoso. Como sempre esteve. Aqui há dias escrevi que o PREC nunca acabou. Quem assista à polémica com Pacheco de Amorim não pode deixar de concordar. Ao ponto de um reputado historiador como Rui Tavares ir para a televisão confundir, propositadamente, Locke com Burke e meio tweeter se convulsionar com isso, mesmo os próprios liberais, porque nenhum deles sabe quem foi Burke, ou Locke ou Adam Smith. Ninguém já sabe que o liberalismo é progressista e fundador do Contrato Social entre o cidadão e o Estado e que uma coisa é o Estado e outra, bem diferente, é o Mercado. Bastava regressar ao velho Abbagnano para perceber as nuances da história e da sua filosofia, mas hoje o Nicola é só um café e já ninguém lê livros e as estantes são decorativas e estupidamente organizadas nos backdrops do Zoom, adereços para as videochamadas da CNN. Não há artefacto mais triste do que livros com as lombadas inteiras, impecável e permanentemente hirtas porque nunca foram dobradas, muito menos lidas. A história caiu em desuso, é um artigo em fim de stock, vendido ao desbarato numa qualquer liquidação total. Generalizamos tudo e cada sound byte é como um êxito pop, permanentemente ofuscado pelo próximo, numa infindável e cacofónica sucessão de cintilantes preciosidades cujo brilho se esgota num pestanejar de olhos, como o doce de uma pastilha cujo sabor se perde na boca, como o balão da pastilha rebentando, pop, no ar. 50 anos depois do 25 de Abril ainda mastigamos se Otelo foi mais terrorista do que Júdice. Se o Padre Max é mais mártir do que Gaspar Castelo-Branco. Armadilhamos o debate entre a Esquerda e a Direita com o explosivo da ignorância e não sabemos distinguir as linhas essenciais entre a defesa da Liberdade e o ataque ao Totalitarismo. Estamos presos em 74 como o Bill Murray preso no dia 2 de Fevereiro. Estamos refugiados num passado que se repete indefinidamente, capturados por um pânico do futuro, incapazes de abraçar o desconhecido, de resgatar o outro para o nosso centro comum. Como pode uma comunidade de certificados ser verdadeiramente livre? Como pode uma sociedade de vencedores ser absolutamente justa? Quem, em última instância, vigia os vigilantes? Ontem foi divulgado um estudo da reputada Universidade de Johns Hopkins que verificou afinal que os confinamentos na Europa e nos Estados Unidos foram responsáveis apenas por 0,2% das quebras de mortalidade no combate à Covid. Ao mesmo tempo destruíram milhões de empregos e de vidas com o peso opressivo e obliterador do fascismo sanitário. Estão a salvar as nossas vidas paliativas com o elixir do medo e da ignorância. O mundo não está perigoso, o mundo sempre foi e este país também. Regresso a George Santayana, filósofo esquecido, “aqueles que não se conseguirem lembrar do passado, estão condenados e repetí-lo”. Resta-nos decidir se, como postulou Marx, queremos repetí-lo como tragédia ou como farsa. Ou se, na verdade, já o estamos de facto a viver mas como loop trágico-cómico no flat screen da realidade onde passa, não sem uns quantos erros de ortografia, um rodapé anestesiante – keep calm, está tudo normal dentro da anormalidade…
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