Carrapetas e outras deambulações
Teria para aí uns dez anos, e corria as terras todas de Castelo Branco a caçar pássaros com carabina de pressão de ar.
Apenas habituados a fundas, às quais se chama igualmente fisgas, a melralhada andava por ali à confiança e eu ia distribuindo chumbo, enfeitando de penas a cintura. Canários da terra, tentilhões, melros pretos… Pardais ao tempo não havia, praga do caraças que depois dizimou o canário da terra, dando-lhe cabo dos ovos nos ninhos. Bicho teso, o pardal, já o vi a perseguir pombos pelos ares, deixando-os em sentido, se é que uma ave pode ficar em sentido…
Um fim de tarde aventurei-me pelas terras da costa à beira-mar, pé ante pé em silêncio para não espantar, quando comecei a ouvir gemidos. Alguém estava, notoriamente, a sofrer. Logo esquecida a arte venatória, estuguei o passo para tentar descobrir e ajudar quem tanto padecia. Pelo timbre, era mulher.
Até que vislumbrei, debaixo de um salgueiro, um rabo branco em movimento, para cima e para baixo. A gemideira vinha de debaixo do rabo e eu desatei a correr dali para fora, afastando-me depressa. Sem saber ainda o que era sexo, pressenti dentro de mim que algo de muito íntimo se passava na sombra daquele salgueiro e não quis de maneira nenhuma que o casal sequer cheirasse a minha presença. Era lá coisa deles, não me dizia respeito.
Seria aquilo o que padre Correia chamava pecado, na catequese? Havia os pecados mortais e veniais. Estes últimos nunca entendi o que seriam, o nome não indicava qualquer rumo de significado. Mas os mortais assustavam muito. Tinham morte lá dentro e eu, mesmo sem nunca ter visto gente morta, sabia que era coisa terrível. Que o dissessem os pássaros que me ensanguentavam as perneiras das calças, há tão pouco vivos, nos seus voos e chilreios, agora a caminho da frigideira de minha avó Olívia.
Confuso, suei a caminho de casa, sempre com a cena no juízo. Se era pecado mortal, muito prazer dava em vida. Nunca tinha visto nenhuma moça a gemer daquela maneira, nem mesmo a comer sorvetes na Pastelaria Ideal. Se no outro dia corresse na freguesia a notícia de um Romeu e de uma Julieta finados na beira costa, pronto, estava provado haver pecados que matam. Desconfiar-se-ia de raio fulminante ou coisa parecida, ficaria em mistério por uns tempos e depois entraria no domínio das estórias que se contam, sem se saber bem se são ou não verdade, com o passar do tempo. Mas eu saberia! E guardaria segredo. Tinham pecado, era mais que justo serem eles a morrer.
Alguns anos mais tarde, foi inaugurado o Hotel Faial. Na altura já sabia bem o que era sexo, já tinha gemido entre as minhas mãos. Amigos adolescentes contavam: à noite, escondiam-se nas traseiras das casas dispersas que compunham a unidade hoteleira e viam mulheres nuas lá dentro. Nunca alinhei. Apesar de ainda não ter visto uma mulher nua e desejar muito preencher essa lacuna nos meus sonhos húmidos, não me passava pela cabeça violar a privacidade de desconhecidas, mirando-as sem elas sequer saberem da minha presença.
Já jovem, apresentou-se na Praia de Porto Pim uma estrangeira linda, que deixou aquelas areias a levitar com um par de seios que nem no cinema vira. Quando saiu da água e se dirigiu para o único duche que havia na praia, levou consigo uma romaria de machos, munidos de sabonetes e champôs, fingindo quererem adoçar-se, quando nem tinham ido ainda à água. Mantive-me na minha toalha e dei as costas ao sol, recusando somar mais um par de olhos na pele da atónita diva, que faria Tabucchi escrever “A mulher de Porto Pim 2”.
Já homem, tendo ido tocar à Calheta do Nesquim, uma modelo francesa que tocava bateria nos New Princess, decidiu ir para a Poça com as carrapetas de fora. Os calhaus em volta encheram-se de rapazes e homens, olhos feitos binóculos assestados nos gloriosos mamilos daquela dádiva inesperada, quais caranguejos fidalgos doidos para largar a casca. Preferi ir conversar para a sede da filarmónica com o Luis Bettencourt, que tinha trazido mais aquele fenomenal grupo às ilhas.
Na minha já longa vida, nem um piropo saiu desta boca. Abomino quem apalpa rabos à socapa, sem saber a apalpada quem apalpou. Só não prometo fechar os olhos se, no meu velório, se apresentar uma delegação de coelhinhas da Playboy. Nesse último momento, o decoro e o respeito cederão, perante a vontade enorme de ressuscitar…
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)