Mês: Novembro 2021

  • POEMA DE RUY BELO

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    Quero uma mesa e pão sobre essa mesa
    na toalha de linho nódoas de vinho
    quero só isso nem isso quero
    Quero a casa de terra à minha volta
    cães altos na noite a minha mãe mais nova
    quero só isso nem isso quero
    Quero a casa do forno onde eu me escondia dos relâmpagos
    e trovões quando um ferro no cesto garantia uma feliz cria à galinha chocadeira
    quero só isso nem isso quero
    Quero de novo fundir ao lume os soldados de chumbo que no natal me punham no [sapatinho
    e tirar chouriço e toucinho do guarda-comidas
    quero só isso nem isso quero
    Quero fazer pequeninos adobes e construir casas pelo quintal
    ver chegar o verão e comermos todos lá fora na varanda de tijolo
    quero só isso nem isso quero
    Quero uma aldeia umas pedras um rio
    umas quantas mulheres de joelhos brancos esfregando a roupa nas pedras
    quero só isso nem isso quero
    Quero escrever fatais cartas de amor à rapariga dos meus oito anos
    rasgar essas cartas deixá-las pra sempre dentro do tronco oco da oliveira
    quero só isso nem isso quero
    Quero umas cabras um pastor rico um pastor pobre
    o leite quente na teta o cabrito morto soprado e esfolado
    quero só isso nem isso quero
    Quero a courela as perdizes no ovo a baba do cuco
    laranjas de orvalho no ano novo colhidas na árvore
    quero só isso nem isso quero
    Quero dois montes e um paul de malmequeres a cheia na primavera
    a asma o ruído dos ralos as pernas sombrias das raparigas
    quero só isso nem isso quero
    Quero os espargos os pinheiros bravos o primeiro pôr-do-sol
    as noites de baile no carnaval as bandeiras da safra
    quero só isso nem isso quero
    Quero que voltem os que morreram os que emigraram
    matar com eles o bicho com aguardente pela manhã antes da pega
    quero só isso nem isso quero
    Quero ver ao vento o véu das noivas apanhar os confeitos nos casamentos
    saber pelos papéis dos registos o tempo da prenhez palavra misteriosa
    quero só isso nem isso quero
    Quero um pátio meu e da sombra e galinhas pedreses e árvores
    uma mina de avencas uma horta uma sebe de cana umas casas caídas
    quero só isso nem isso quero
    Quero uma enxada uma gadanha calos nas mãos cuspo nos calos
    a cava mais funda da vinha o capataz a fazer o vinho correr
    quero só isso nem isso quero
    Quero ajudar na rega do fim da tarde calcar os buracos das toupeiras
    e dirigir com o sacho a água morna nos pés até aos regos do feijão
    quero só isso nem isso quero
    Quero em dezembro o varejo final da azeitona o búzio a tocar
    a azeitona a cair dos ramos nos panos de serapilheira
    quero só isso nem isso quero
    Quero o meu pai de chapéu de chuva aberto nos dias de sol
    o meu pai de manhãzinha a lavar-se e a explicar-nos latim e história
    quero só isso nem isso quero
    Quero nu em pelota entre todos tomar os banhos no marachão
    os ninhos dos pássaros as andorinhas de asas escuras no céu azul
    quero só isso nem isso quero
    Quero o pátio da escola a roda das raparigas a cantar à volta do plátano
    o primeiro sonho de amor as primeiras palavras gaguejadas trocadas
    com uma rapariga
    quero só isso nem isso quero
    Quero as feridas nos pés para poder sair à rua descalço
    o pão com conduto entre os meninos pobres no recreio
    quero só isso nem isso quero
    Quero ir ao vale barco a malaquejo à marmeleira
    roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso
    quero só isso nem isso quero
    Que quero tanto que quero um mundo ou nem tanto só agora reparo
    quero morder para sempre a almofada quente e densa da terra
    quero só isso nem isso quero.
    (Ruy Belo)
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