Mês: Agosto 2020

  • o próximo presidente dos EUA quem o escolhe? o povo ou o facebook?

    Views: 0

    Quem escolherá o próximo presidente dos EUA – o povo americano ou o Facebook?

    Posted: 06 Aug 2020 10:50 AM PDT

    *Traduzido e publicado em português do Brasil

    Os titãs das mídias sociais são mais poderosos que os políticos. Mas não precisava ser assim

    Jonathan Freedland | Carta Maior

    Na semana passada, em uma audiência no Congresso americano, foi possível contemplar os homens com o poder de definir as eleições presidenciais de novembro e o futuro da democracia americana – mas os homens em questão não eram políticos. Eram os quatro titãs da tecnologia, convocados a falar a um comitê do congresso. Mesmo via link de vídeo, era possível observar o poder que irradiavam: os patrões do Facebook, Google, Amazon e Apple surgiam nos monitores como verdadeiros mestres do universo diante de seus inquiridores eleitos, meros terráqueos.

    Não se trata de exagerar seu poder. Juntos, com bilhões de usuários, o Facebook e o Google determinam boa parte do que a raça humana vê, lê e sabe. A autoridade de Mark Zuckerberg está espalhada pelo planeta, nenhum governo sendo capaz de constrangê-lo: ele é o imperador do conhecimento, o ministro da informação do mundo inteiro. Um mero ajuste de um algoritmo do Facebook pode decidir se discursos de ódio, mentiras e teorias da conspiração serão espalhadas ou extintas.

    Já é assim há algum tempo, mas em 2020 o tema ganhou urgência extra. Sabemos o impacto que as mídias sociais tiveram nas eleições americanas em 2016 – quando proliferaram mentiras e fantasias cada vez mais loucas sobre Hillary Clinton e quando, segundo o pesquisador de Oxford Philip Howard afirmou em um novo livro, Lie Machines (Máquinas de Mentiras, ainda sem tradução em português): “A proporção de notícias falsas para notícias verdadeiras compartilhadas pelos eleitores pelo Twitter foi de um para um”. Em menos de 100 dias, os americanos escolherão um presidente e nada garante que o mesmo cenário não vá se repetir.

    Além disso, hoje está claro que a disseminação de mentiras on-line é uma questão de vida ou morte. (Como já se sabia em Mianmar, onde a violência contra o povo Rohingya foi incitada via Facebook.) Em meio a uma pandemia, informações consistentes e verificadas são uma ferramenta essencial de saúde pública. Se afirmações falsas e teorias conspiratórias malucas – como aquelas veiculadas em pseudodocumentários como o Plandemic – começam a aparecer nos feeds de notícias das pessoas, é como se a água encanada estivesse contaminada. O Facebook e o Youtube acabaram tirando do ar o Plandemic e suas afirmações sem provas – como a acusação de que o Covid-19 é culpa de Bill Gates e da Organização Mundial de Saúde, que vacinas são ruins e que usar uma máscara é algo perigoso – mas só depois que milhões de pessoas já tinham ingerido esse lixo nessas plataformas.

    É claro que sempre existiram doidos e alucinados, mas as redes sociais lhes deram um alcance com que nunca tinham sonhado. Armado com o Facebook, os pretensos ativistas podem espalhar mensagens globalmente e instantaneamente e, também, enviá-las a um público selecionado com precisão graças aos dados abundantes que o Facebook mantém sobre seus usuários, cuja utilização permite que os anúncios (pagos) sejam microdirecionados. E lembre-se que esses dados não se limitam às atitudes que você pode ter expressado on-line, mas podem incluir as compras feitas no seu cartão de crédito até detalhes mundanos de sua vida, registrados pelos gadgets que compõem a Internet das coisas.

    De tempos em tempos, os gigantes da mídia social são compelidos a pelo menos parecer estar tomando alguma atitude, mesmo que só por uma questão de cuidar de sua reputação. Aconteceu esta semana, com a remoção do artista de grime Wiley de várias plataformas, depois que ele fez um longo discurso cheio de ódio contra os judeus: depois de um “boicote” de 48 horas de seu Twitter, organizado por um grupo de ativistas e celebridades, a rede pareceu perceber que hospedar racismo de famosos não cai bem. Depois, o Twitter removeu a conta do supremacista branco David Duke, o que suscita a pergunta: por que diabos demoraram tanto?

    Não se engane, a presença de mentiras e ódio nessas plataformas não é um bug lamentável. É uma característica delas. O modelo de negócios das mídias sociais requer atenção – olhos – e a melhor maneira de conseguir isso é pelo engajamento. Mensagens que despertam raiva, fúria e, sim, ódio, são mais eficientes para manter as pessoas on-line do que conteúdos meramente interessantes ou divertidos. É por isso que estudos mostram que as notícias falsas se espalham mais rápido que as verdadeiras: os algoritmos são projetados para privilegiar a viralidade em detrimento da veracidade.

    O que pode ser feito? Ideias não faltam. Alguns começam pelo fact-checking e, após as eleições de 2016, o Facebook deu passos nessa direção. Mas quando foi revelado que um de seus parceiros de fact-checking era o Daily Caller, um site de notícias de direita conhecido por divulgar informações erradas, a credibilidade do projeto despencou.

    Ou, mais simplesmente, o Facebook, o Youtube e o Twitter poderiam admitir que são editores de conteúdo e, assim, deveriam assumir a responsabilidade que acompanha o grande poder que detêm. Se isso significa ter que contratar um milhão de moderadores para verificar seu conteúdo, eliminando mentiras e discurso de ódio, que assim seja. O que não poderiam é alegar falta de recursos: são empresas de cerca de um trilhão de dólares.

    Se eles não gostam da analogia com editores, então talvez prefiram ser tratados como, digamos, fabricantes de automóveis, que, se entregarem um produto defeituoso, precisam fazer recall e consertar o produto, independentemente do custo. No momento, os gigantes das mídias sociais gozam de proteção legal que os exime dessa responsabilidade nos EUA.

    Os políticos poderiam mudar isso, assim como poderiam seguir as recomendações de Howard em Lie Machines e romper a “monopolização de informações” das grandes empresas, garantindo por lei o direito dos cidadãos de doar seus dados para organizações menores: esses grupos seriam, assim, mais capazes de competir com os gigantes da tecnologia e com aqueles que podem pagar por seus serviços.

    Mas, como mostrou a audiência da última semana, os representantes eleitos não têm poder suficiente para fazer isso sozinhos. Governos do mundo todo teriam que trabalhar juntos. Eles precisariam do apoio de anunciantes, para retirar suas libras e dólares de empresas que dão espaço para o ódio. E precisariam que todos déssemos um basta nesse veneno que corre nas redes, e que só descansássemos quando a última gota tivesse sido eliminada.

    *Publicado originalmente em ‘The Guardian‘ | Tradução de Clarisse Meireles

    Na imagem: Mark Zuckerberg aparece em vídeo durante audiência do sub-comitê judiciário dos EUA, ‘Online Platforms and Market Power’, em Washington, em 29 de julho (Rex/Shutterstock)

    Leia em Carta Maior: Especial ‘Eleições nos

  • o fim do sonho americano

    Views: 0

    Investigação sobre o fim do “sonho americano”

    Posted: 06 Aug 2020 11:20 AM PDT

    #Escrito e publicado em português do Brasil

    Dois economistas sondam o empobrecimento e depressão dos operários, na antiga potência industrial do mundo. Em sua tragédia, as ciladas da racionalidade neoliberal, num sistema em que a grande realização é o consumo

    Eleutério F. S. Prado* | Outras Palavras | Imagem: Lesley Oldaker

    Eis como, os autores – por meio do pensamento positivo – se consolam diante de um presente que se afigura como bem desconsolado: “mantemos o otimismo; acreditamos no capitalismo; continuamos a crer que a globalização e a mudança tecnológica podem ser orientadas em benefício de todos”. A situação social que descrevem em Mortos pela desesperança e o futuro do capitalismo1 se apresenta como desastrosa e mesmo indignante, mas ao invés de fazer uma crítica radical do sistema que, aliás, chamam pelo seu verdadeiro nome, preferem vê-lo apenas como mal administrado. Anne Case e Angus Deaton, dois economistas consagrados da Universidade de Princeton (EUA), documentam nesse livro, de certo modo corajoso, os infortúnios, os abatimentos e os bloqueios sociais que os trabalhadores brancos menos instruídos (classe operária) vêm enfrentando na sociedade norte-americana.

    O quadro deprimente que pintam está sintetizado na figura abaixo que apresenta estatísticas históricas de mortalidade nos EUA e em três outros países desenvolvidos (para pessoas entre 45 e 54 anos). Mas antes de poder analisá-lo melhor, ou seja, com maior extensão e profundidade, é preciso apresentar um contexto, uma rodada de contribuições analíticas em dois campos do conhecimento científico.

    Como esses dois autores põe o problema da compreensão dos resultados da globalização neoliberal para a vida material e mental dessa fração da população nos Estados Unidos, é necessário começar apresentando uma tese clássica sobre o homem moderno no campo da psicologia social. Para Erich Fromm, este último se sente como indivíduo, ou seja, com um ser centrado em si mesmo que possui liberdade, vontade própria e capacidade crítica, que se pauta pelo seu auto-interesse e que, para tanto, confia sobretudo em si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, ele se vê como um ser solitário, que está constantemente acossado pela concorrência e, por isso, encontra-se tomado por ansiedade, perturbações de caráter e medo do futuro. “A sociedade moderna” – diz Fromm – “afeta o homem de duas maneiras simultaneamente, ele se torna mais independente, autoconfiante e arguto, mas também mais só, isolado e temeroso”.2

    Eis que esse indivíduo é a contrapartida social de um sistema econômico que funciona automaticamente, sem um controle social efetivo, e que se afigura por isso como uma segunda natureza. Como diz o próprio Fromm: por meio dessa inserção, “o homem se torna uma roda dentada na imensa máquina econômica”. Em consequência dessa disposição societária, ele está posto como um ser falsamente para si que sofre de solidão, ansiedade e medo – um “fraco” que recalca a sua fraqueza, cuja origem é estrutural. Por isso mesmo está sujeito à certas síndromes psicológicas como as neuroses e as perversões, às mortificações depressivas.

    OUTRAS PALAVRAS é financiado pelas pessoas que o leem. Faça parte >>>

    Se esse indivíduo for um capitalista, ele pode se ver como alguém importante, tornando-se assim capaz de aplacar o seu sentimento de relativa impotência; se, porém, for um trabalhador, ele pode se sentir até mesmo como um ser insignificante que não consegue se realizar como indivíduo bem-sucedido no meio social. É preciso ver reflexivamente que as pessoas em geral se medem no capitalismo pelo seu sucesso profissional, pela sua capacidade de consumo conspícuo, enfim, por sua riqueza mercantil. Está última garante certa segurança para aqueles que se sentem bem-sucedidos nos períodos de boom econômico, mas costuma também perder parte desse atributo nos períodos de crise, quando então mesmos os mais ricos passam a temer a desvalorização do capital.

    Ora, esse quadro foi fortemente agravado pela vinda do neoliberalismo a partir dos anos 1980 do século XX. Com ele, a proteção social aos trabalhadores em geral, garantida pela socialdemocracia prevalecente até então nos países do Ocidente, passou a ser pouco a pouco desmantelada. E essa proteção é crucial porque, com a ascensão da sociedade urbana, os laços familiares se tornaram cada vez mais tênues. Em consequência, as pessoas se encontram, também cada vez mais, socializadas como unidades individuais. Como se sabe, o neoliberalismo se constitui sobretudo como uma nova forma de subsunção real do trabalho ao capital, uma forma que se tornou dominante após 1980 e que pode ser caracterizada como intelectual e societária. A subsunção material da fábrica perde força, mas cresce a captura da subjetividade dos trabalhadores aos propósitos associados à acumulação de capital.

    Assim, mais do que uma mera ideologia, o neoliberalismo se põe como uma racionalidade que procura moldar os indivíduos como seres mais bem adequados à concorrência capitalista, aos mercados, à produção mercantil. E essa lógica, como bem se sabe, espraia-se agora para todos os domínios da sociedade. O neoliberalismo aspira por todos os bens – sejam eles privados, comuns ou públicos – sob a forma de mercadoria, predicando que as pessoas devem se encarar como seres competitivos que buscam aumentar e valorizar constantemente o seu próprio “capital humano”.

    As consequências sociais da difusão da racionalidade neoliberal na sociedade norte-americana foram devastadoras. E o livro de Case e Deaton, com base em estatísticas de doenças, vícios e mortes, traça um quadro dantesco desse impacto, especialmente nas condições de vida da classe operária branca dos Estados Unidos – uma fração que até o final dos anos 1970 se encarava como classe média privilegiada, possuidora de um padrão de vida consumerista, o qual fazia inveja aos pobres de espírito do resto do mundo e era motivo de orgulho e propaganda imperialista.

    Os autores contam, na introdução, que foram levados a essa pesquisa empírica quando descobriram que as taxas de suicídio entre as pessoas de meia-idade estavam aumentando rapidamente nos Estados Unidos. O consumo de opioides, o alcoolismo e as mortes por overdose também cresciam desmedidamente. Na investigação, descobriram então que tais aumentos se deviam a uma pandemia de desesperança que tinha causas econômicas, sociais e psicológicas. Tratou-se para eles, então, de estudar o que os dados poderiam dizer sob a hipótese de que se tratava de um efeito da globalização na situação da força de trabalho nos Estados Unidos.

    Ao consultarem as estatísticas, eles notaram rapidamente que as mortes causadas pela desesperança se concentravam especialmente naquela fração da população que não tinha um título de curso superior. Constataram que a evolução do mercado de força de trabalho nos Estados Unidos, nas décadas mais recentes, passara a privilegiar aqueles que tinham algum título de curso superior (quatro ou mais anos) e a discriminar aqueles que tinham uma formação que chegava apenas aos graus médios, geral ou profissional. Numa leitura clássica, a classe operária desse país ganhava assim uma nova/ruim experiência no capitalismo – e ela contrariou a que tiveram no passado, especialmente no chamado “período de ouro” (1945 – 1975).

    O sistema meritocrático que governa esse mercado passara a contemplar melhor aqueles que tinham capacidade adquirida para trabalhar num mundo agora crescentemente informatizado, em que as mudanças tecnológicas ocorriam celeremente. Em consequência, enquanto esses trabalhadores tomavam a si mesmos como “vencedores”, todos aqueles com menos educação formal se viram como “perdedores” na corrida pelo sucesso. Como se sabe, na sociedade norte-americana impera como em nenhuma outra um individualismo competitivo que ajuda a ganhar títulos olímpicos, mas produz também muita ansiedade, frustração e obesidade mórbida, tal como observara já no passado Erich Fromm. Como se sabe, foi essa sociedade que lhe forneceu o material para o desenvolvimento de suas teses críticas no campo da psicologia social.

    O processo da globalização eliminou grande parte do emprego industrial baseado em trabalho manualmente intensivo, incrementando ao mesmo tempo a ocupação no setor serviços, o qual se tornou o grande absorvedor de força de trabalho pouco qualificada nos Estados Unidos. A revolução tecnológica da informática e da comunicação, por sua vez, promoveu um crescimento da demanda de trabalhadores com estudos superiores nas diversas áreas do conhecimento, deixando para trás aqueles com menores graus de estudo e que estavam melhor adaptados às rotinas fabris, agora em decadência. Assim, tal como constatam Case e Deaton, “os menos instruídos foram desvalorizados e mesmo desrespeitados, pois passaram a ser encorajados a se verem como perdedores, como seres manipulados por um sistema que ficara contra eles”.

    Os autores não investigaram apenas as estatísticas de mortalidade e, em particular, as de suicídios, mas também as que refletiam as ocorrências de doenças auto-infringidas, vícios com drogas psicotrópicas e desestruturação familiar. O número de crianças “sem” pais – só com mães – elevara-se enormemente na população, em particular, na coorte de pele branca, quando já era bem grande na população negra e hispânica. O uso de drogas contra a depressão, contra as dores do corpo e da alma crescera também de modo assustador nas últimas décadas.

    A situação encontrada mostrou-se grave nesses múltiplos aspectos. Entretanto, uma imagem dramática sintética do que ocorreu e vem ocorrendo nos Estados Unidos encontra-se no gráfico antes apresentado que agora precisa ser interpretado. Aí se mostra a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes, entre os anos de 1990 e 2019, da população branca norte-americana não hispânica (cerca de 60% da população norte-americana). Ora, o evolver dessa taxa apresenta um comportamento claramente anômalo: ela sobe ou se mantém quando deveria cair conforme a tendência histórica e conforme o que ocorrera nos outros países desenvolvidos.

    A comparação com o que vem ocorrendo na França, na Grã-Bretanha e na Suécia, presente nessa figura, mostra um resultado surpreendente: enquanto nesses três países a taxa mortalidade nas idades entre 45 e 54 continuou a cair, tal como vem o ocorrendo desde o começo do século XIX, ela cresceu um pouco nos Estados Unidos a partir de meados da década dos anos 1990 e, grosso modo, estabilizou-se desde então num nível bem acima dos outros três países. Ora, mas essa percepção imediata não diz tudo o que é preciso para compreender o que aconteceu e está acontecendo nesse país, um campeão na imposição da lógica da concorrência para toda a sociedade.

    A taxa de mortalidade da fração com educação superior caiu continuamente, quase do mesmo modo que naqueles três países citados. Portanto, o dado gráfico relativo aos EUA mostra, de modo implícito, que essa taxa aumentou extraordinariamente na fração que não possui curso superior (cerca de 38% da população norte-americana). Assim, uma parte significativa da população trabalhadora, dependente da “máquina de progresso” da potência imperialista hegemônica, regrediu econômica e socialmente. E essa degradação se somou à tradicional degradação das condições de vida de grande parte da população negra, que é mais pobre, tem menos empregos e recebe menos benefícios sociais. Em consequência, a visão idílica mantida por muitos ainda sobre as condições de vida nos Estados Unidos precisa começar a se desfazer.

    Por que a taxa de mortalidade teve aí uma evolução pior do que nos outros países desenvolvidos? Há várias razões. A principal delas, sem dúvida, tem por nome genérico “neoliberalismo”: “na América, mais do que em outros lugares” – dizem –, “o poder político e de mercado moveu-se do trabalho para o capital” nesse período. A globalização enfraqueceu os sindicatos e fortaleceu os empregadores em geral. As novas formas de subsunção do trabalho ao capital propiciadas pelas tecnologias da informática minaram o poder de barganha dos trabalhadores. Em consequência, a produtividade do trabalho continuou crescendo, mas os salários reais médios estagnaram. Já os salários médios dos trabalhadores com menores níveis de estudo formal tenderam a cair nesse mesmo período. Eis que a potência hegemônica tinha que continuar sendo hegemônica, inclusive por meio de um gasto militar extremamente alto e por meio do sacrifício de sua população trabalhadora.

    Case e Deaton põem grande parte da responsabilidade por essa piora no índice de mortalidade aludido no sistema de saúde aí existente. E essa constatação é interessante porque mostra a ineficiência e a ineficácia do setor privado quando se trata de produzir um bem público importante ao bem-estar das pessoas e das famílias. Se ele fracassa, quem fracassa junto são aqueles que dele dependem.

    Como se sabe, os serviços de proteção à Saúde são fortemente mercantilizados nos Estados Unidos. Mesmo estando entre os mais caros do mundo, são produzidos de modo insuficiente – porque mal orientados, mal distribuídos e mal administrados, apesar dos níveis de excelência técnica e tecnológica. Contribuíram, por exemplo, para uma epidemia no uso de opioides. Há cerca de 30 milhões de norte-americanos que não têm qualquer seguro de saúde, num país em que esse bem é fornecido quase que inteiramente de modo privado. “Sob proteção política” – afirmam esses dois autores –, “o sistema norte-americano de cuidados da saúde redistribui renda para cima, isto é, para os hospitais, os médicos, os produtores de equipamentos, as companhias farmacêuticas, ao mesmo tempo em que entrega à população os piores resultados em comparação com o que acontece entre os países ricos”.

    Os autores têm várias sugestões para redirecionar o capitalismo nos Estados Unidos. E é com base nessas propostas – mesmo diante do triste quadro que foram capazes de apresentar – que afirmam e reafirmam o seu otimismo mágico. Partem da ideia de que o sistema econômico está produzindo uma repartição da renda muito desigual e, assim, gerando injustiças sobre injustiças. Propõem que se regule melhor o setor produtor de medicamentos para estancar a crise no uso de opioides. Sugerem que se deve fazer uma reforma radical do sistema de saúde para refrear o seu grau de mercantilização. Aconselham que se legisle no sentido de aumentar a progressividade da tributação, para criar um sistema de benéficos sociais mais amplos. Recomendam que as oportunidades de ter curso superior precisam ser elevadas etc. Nada de muito original, frente às políticas socialdemocratas que foram abandonadas no passado.

    Para os autores, em resumo, deveria existir mais “futuro e não fracasso” para os trabalhadores norte-americanos. Ocorre que os economistas do “mainstream” – e mesmo aqueles que ganharam prêmios Nobel, como Angus Deaton – sofrem de um limite. Por se esmerarem na competência para analisar a realidade fenomênica, para construírem modelos abstratos cada vez mais sofisticados matematicamente, tornam-se incapazes de tomar ciência das condições estruturais do capitalismo realmente existente. É mérito desses dois autores terem sido capazes de tirar conclusões importantes meramente a partir de estatísticas descritivas – e não por meio de tortura (e picaretagem) econométrica.

    A verdade é que o sistema econômico desse país está estagnado desde 1997, quando acaba o período da recuperação neoliberal iniciado no começo dos anos 1980. A taxa de lucro média tem caído desde então; com ela, os investimentos em inovações, assim como na ampliação e modernização da capacidade de produção. Ora, o neoliberalismo e, com ele, a desindustrialização e a globalização nunca foram mais do que respostas do capitalismo norte-americano na tentativa de enfrentar tendência à queda da taxa de lucro que tem se manifestado na economia dos países desenvolvidos a partir do final dos anos 1960. Eis que ele não pode reduzir agora o grau de exploração da força de trabalho e, por isso, vai continuar a produzir mais “fracasso e não futuro” para os trabalhadores norte-americanos – a não ser que reajam contrariando a dominação do capital de que falam até mesmo Case e Deaton.

    Notas:

    1 Case, Anne; Deaton, Angus – Deaths of despair and the future of capitalism. Princeton University Press, 2020.

    2 Fromm, Erich – Medo à liberdade. Editora Zahar, 1983.

    Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS

    *Eleutério S. Prado — Professor titular e sênior do departamento de economia da FEA/USP. Mantém o blog Economia e Complexidade (http://eleuterioprado.wordpress.com). Correio eletrônico: eleuter@usp.br

  • john pilger Outra Hiroshima aproxima-se — se não a travarmos já

    Views: 0

    Outra Hiroshima aproxima-se — se não a travarmos já

    Posted: 06 Aug 2020 11:47 AM PDT

    #Publicado em português do Brasil

    Hiroshima e Nagasaki foram actos de assassínio em massa premeditados que deram início a uma arma de criminalidade intrínseca. Foram justificados por mentiras que constituem o fundamento da propaganda de guerra dos EUA no século XXI, lançando um novo inimigo e alvo – a China.

    John Pilger [*]

    Quando em 1967 fui pela primeira vez a Hiroshima, a sombra sobre os degraus ainda estava ali. Era uma impressão quase perfeita de um ser humano em descanso: pernas estendidas, cabeça inclinada, uma mão ao seu lado enquanto aguardava a abertura de um banco.

    Às oito e um quarto na manhã de 6 de Agosto de 1945, ela e a sua silhueta foram queimadas no granito.

    Olhei para a sombra durante uma hora ou mais, depois desci até ao rio onde os sobreviventes ainda viviam em barracas.

    Encontrei um homem chamado Yukio, cujo tórax fora gravado com o padrão da camisa que estava a usar quando a bomba atómica foi lançada.

    Ele descreveu um enorme clarão sobre a cidade, “uma luz azulada, algo como um curto-circuito eléctrico”, após o qual o vento soprou como um tornado e caiu chuva negra. “Fui atirado ao chão e reparei que apenas os caules das minhas flores tinham ficado. Tudo estava parado e silencioso e, quando me levantei, havia pessoas nuas, sem nada dizer. Algumas delas não tinham pele nem cabelo. Eu tinha a certeza de estar morto”.

    Nove anos mais tarde, voltei a procurá-lo e ele havia morrido de leucemia.

    Só um repórter, Wilfred Burchett, um australiano, enfrentou a perigosa jornada até Hiroshima no rescaldo imediato do bombardeio atómico, desafiando as autoridades de ocupação Aliadas, as quais controlavam o “pacote da imprensa”.

    “Escrevo isto como uma advertência ao mundo”, relatou Burchett no London Daily Express de Londres em 5 de Setembro de 1945. Sentado nos escombros com a sua máquina de escrever Baby Hermes, descreveu as enfermarias do hospital cheias de pessoas sem lesões visíveis que estavam a morrer do que ele denominou “uma praga atómica”.

    Por isso, a sua acreditação de imprensa foi retirada, ele foi posto no pelourinho e enlameado. O seu testemunho da verdade nunca foi perdoado.

    O bombardeamento atómico de Hiroshima e Nagasaki foi um acto de assassínio em massa premeditado em massa que desencadeou uma arma de criminalidade intrínseca. Ela foi justificada pelas mentiras que constituem a base da propaganda de guerra da América no século XXI, lançando um novo inimigo e alvo – a China.

     

    Durante os 75 anos desde Hiroshima, a mentira mais duradoura é que a bomba atómica foi lançada para acabar com a guerra no Pacífico e poupar vidas.

    “Mesmo sem os ataques por bombardeio atómico”, concluiu o United States Strategic Bombing Survey de 1946, “a supremacia aérea sobre o Japão poderia ter exercido pressão suficiente para provocar a rendição incondicional e evitar a necessidade de invasão. “Com base numa investigação pormenorizada de todos os factos e apoiada pelo testemunho dos líderes japoneses sobreviventes envolvidos, é opinião do Inquérito que … o Japão ter-se-ia rendido mesmo se as bombas atómicas não tivessem sido lançadas, mesmo se a Rússia não tivesse entrado na guerra [contra o Japão] e mesmo se nenhuma invasão tivesse sido planeada ou contemplada”.

    Os Arquivos Nacionais em Washington contêm documentadas aberturas de paz japonesas já em 1943. Anenhuma foi dado seguimento. Um telegrama enviado em 5 de Maio de 1945 pelo embaixador da Alemanha em Tóquio e interceptado pelos EUA deixou claro que os japoneses estavam desesperados a rogar por paz, incluindo “capitulação mesmo se os termos fossem duros”. Nada foi feito.

    O secretário da Guerra dos EUA, Henry Stimson, disse ao presidente Truman estar “temeroso” de que a US Air Force tivesse bombardeado tanto o Japão que a nova arma não seria capaz de “mostrar a sua força”. Stimson admitiu mais tarde que “nenhum esforço foi feito e nenhum foi seriamente considerado, para conseguir a rendição simplesmente a fim de não ter de usar a bomba [atómica]”.

    Os colegas de política externa de Stimson – a olharem mais adiante para a era do pós-guerra que estavam então a moldar “à nossa imagem”, como o famoso planeador da Guerra Fria George Kennan afirmou – deixaram claro estarem ansiosos “por intimidar os russos com a bomba [atómica] que mantinham ostensivamente a tiracolo”. O general Leslie Groves, director do Projecto Manhattan que fabricou a bomba atómica, testemunhou: “Nunca houve qualquer ilusão da minha parte de que a Rússia era nossa inimiga e que o projecto foi conduzido com base nisso”.

    No dia seguinte à obliteração de Hiroshima, o presidente Harry Truman manifestou a sua satisfação com o “sucesso esmagador” da “experimento”.

    O “experimento” continuou muito depois de a guerra estar acabada. Entre 1946 e 1958, os Estados Unidos explodiram 67 bombas nucleares nas Ilhas Marshall no Pacífico: o equivalente a mais do que uma Hiroshima todos os dias durante 12 anos.

    As consequências humanas e ambientais foram catastróficas. Durante a filmagem do meu documentário, The Coming War on China , fretei um pequeno avião e voei para o Atoll de Bikini, nas Ilhas Marshall. Foi ali que os Estados Unidos explodiram a primeira Bomba de Hidrogénio do mundo. Ali a terra permanece envenenada. Meus sapatos foram registados como “inseguros” no meu contador Geiger. Palmeiras erguiam-se em formações que não eram deste mundo. Não havia pássaros.

    Trilhei através da selva até ao bunker de betão onde, às 6h45 da manhã de 1 de Março de 1954, foi premido o botão. O sol, que já se havia levantado, levantou-se novamente e vaporizou uma ilha inteira na laguna, deixando um vasto buraco negro, que visto do ar é um espectáculo ameaçador: um vazio mortal num lugar de beleza.

    A precipitação radioactiva propagou-se rapidamente e “inesperadamente”. A história oficial afirma que “o vento mudou subitamente”. Foi a primeira de muitas mentiras, como revelam documentos desclassificados e os testemunhos das vítimas.

    Gene Curbow, meteorologista designado para monitorizar o sítio do teste, disse: “Eles sabiam para onde iria a precipitação radioactiva. Mesmo no dia do disparo, ainda tinham oportunidade de evacuar pessoas, mas [as pessoas] não foram evacuadas; eu não fui evacuado… Os Estados Unidos precisavam de algumas cobaias para estudar que efeitos a radiação fariam”.

    Tal como Hiroshima, o segredo das Ilhas Marshall foi uma experimento calculado sobre as vidas de um grande número de pessoas. Este foi o Projecto 4.1, que começou como um estudo científico de ratos e se tornou uma experimento sobre “seres humanos expostos à radiação de uma arma nuclear”.

    Os ilhéus das Marshall que encontrei em 2015 – tal como os sobreviventes de Hiroshima que entrevistei nas décadas de 1960 e 1970 – sofriam de um conjunto de cancros, habitualmente cancro da tiróide; milhares já haviam morrido. Abortos e natimortos eram comuns; os bebés que viviam estavam muitas vezes horrivelmente deformados.

    Ao contrário de Bikini, o atol vizinho de Rongelap não foi evacuado durante o teste de Bomba H. Directamente na direcção do vento de Bikini, os céus de Rongelap escureceram e choveu o que a princípio pareciam ser flocos de novo. Alimentos e água ficaram contaminados; e a população caiu vítima e cancros. Isto é verdade ainda hoje.

    Encontrei Nerje Joseph, que me mostrou uma fotografia sua de quando era criança em Rongelap. Elatinha terríveis queimaduras faciais e grande parte do seu cabelo estava a faltar. “Estávamos a banhar-nos no poço no dia em que explodiu a bomba”, disse ela. “Um pó branco começou a cair do céu. Consegui apanhar o pó. Usámo-lo como sabão para lavar o nosso cabelo. Poucos dias depois, meu cabelo começou a cair”.

    “Alguns de nós estavam em agonia”, disse Lemoyo Abon. Outros tinham diarreia. Estávamos terrificados. Pensámos que deveia ser o fim do mundo”.

    A filmagem do arquivo oficial dos EUA que incluí no meu filme refere-se aos ilhéus como “selvagens dóceis”. Depois da explosão, um responsável da Agência de Energia Atómica dos EUA é visto a jactar-se de que Rongelap “é de longe o lugar mais contaminado da terra”, acrescentando: “será interessante obter uma medida da absorção humana quando pessoas vivem num ambiente contaminado”.

    Cientistas americanos, incluindo médicos, construíram carreiras distintas a estudar a “absorção humana”. Lá estão eles a cintilar no filme, nas suas batas brancas, atentos às suas pranchetas. Quando um ilhéu morreu na sua adolescência, a sua família recebeu um cartão de simpatia do cientista que o estudou.

    Fiz reportagens de cinco pontos de impacto (“ground zeros”) através do mundo – no Japão, nas Ilhas Marshal, em Nevada, na Polinésia e em Maralinga, na Austrália. Ainda mais do que a minha experiência como correspondente de guerra, isto ensinou-me acerca da crueldade e imoralidade de uma grande potência: ou seja, a potência imperial, cujo cinismo é o verdadeiro inimigo da humanidade.

    Isto atingiu-me à força quando filmei no Ground Zero de Taranaki, em Maralinga, no deserto australiano. Numa cratera semelhante a um prato estava um obelisco sobre o qual estava inscrito: “Uma arma atómica britânica explodiu aqui a 9 de Outubro de 1957”. Na borda da cratera estava este sinal:

    AVISO: PERIGO DE RADIAÇÃO

    Os níveis de radiação durante algumas centenas de metros

    em torno deste ponto podem estar acima daqueles considerados

    seguros para ocupação permanente.

    Tanto quanto a vista podia alcançar, e mais além, o terreno estava irradiado. Plutónio bruto espalhado como pó de talco: o plutónio é tão perigoso para os humanos que um terço de um miligrama dá 50 por cento de probabilidades de cancro.

    As únicas pessoas que poderiam ter visto o sinal eram indígenas australianos, para os quais não havia nenhum aviso. Segundo um relato oficial, se tivessem sorte “eram enxotados como coelhos”.

    A ameaça duradora

    Hoje, uma campanha de propaganda sem precedentes está a enxotar-nos a todos como coelhos. Não pretendemos questionar a torrente diária da retórica anti-chinesa, a qual está rapidamente a ultrapassar a torrente da retórica anti-russa. Qualquer coisa chinesa é ruim, anátema, uma ameaça: Wuhan… Huawei. Quão confuso é isto quando o “nosso” líder mais vilipendiado diz isso.

    A fase actual desta campanha começou não com Trump, mas com Barack Obama, o qual em 2011 foi à Austrália para declarar a maior acumulação de forças navais americanas na região da Ásia-Pacífico desde a Segunda Guerra Mundial. Subitamente, a China era uma “ameaça”. Isto era um disparate, naturalmente. O que era ameaçado era a incontestada visão psicopática da América como a nação mais rica, mais bem sucedida, mais “indispensável”.

    O que nunca esteve em causa foram suas proezas como valentão – com mais de 30 membros das Nações Unidas a sofrerem alguma espécie de sanções americanas e um rastro de sangue a correr por indefesos países bombardeados, com governos derrubados, com eleições interferidas e recursos saqueados.

    A declaração de Obama ficou conhecida como o “pivô para a Ásia”. Uma de suas principais defensoras foi a sua secretária de Estado, Hillary Clinton, a qual, como revelou a WikiLeaks, queria renomear o Oceano Pacífico como “o Mar Americano”.

    Enquanto Clinton nunca ocultou o seu belicismo, Obama era um maestro do marketing. “Afirmo claramente e com convicção”, disse o novo presidente em 2009, “que o compromisso da América é buscar a paz e a segurança de um mundo sem armas nucleares”.

    Obama aumentou os gastos com ogivas nucleares mais rapidamente do que qualquer presidente desde o fim da Guerra Fria. Uma arma nuclear “utilizável” foi desenvolvida. Conhecida como B61 Modelo 12, significa, segundo o general James Cartwright, ex-vice-presidente do Estado-Maior Conjunto, que “tornar mais pequena [torna o seu uso] mais pensável”.

    O alvo é a China. Hoje, mais de 400 bases militares americanas quase circundam a China com mísseis, bombardeiros, navios de guerra e armas nucleares . Do norte da Austrália, passando pelo Pacífico, ao sudeste asiático, ao Japão e à Coreia, passando pela Eurásia, ao Afeganistão e à Índia, as bases formam, como me disse um estratega americano, “o laço perfeito”.

    O impensável

    Um estudo da RAND Corporation – a qual, desde o Vietname, tem planeado guerras dos EUA – intitula-se Guerra com a China: Considerando muito bem o impensável (War with China: Thinking Through the Unthinkable). Encomendado pelo US Army, os autores evocam o berro infame do seu estratega chefe da Guerra Fria, Herman Kahn – “pensar o impensável”. O livro de Kahn, Sobre a Guerra Termonuclear (On Thermonuclear War), elaborava um plano para uma guerra nuclear “vencível”.

    A visão apocalíptica de Kahn é partilhada pelo secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, um fanático evangélico que acredita no “êxtase do Fim” (“rapture of the End”). Ele talvez seja o mais perigoso dos homens vivos. “Eu era director da CIA”, gabava-se ele, “Nós mentimos, trapaceámos, roubámos. Era como se tivéssemos cursos de treino completos”. A obsessão de Pompeo é a China.

    A etapa final do extremismo de Pompeo raramente, se é que alguma vez, é discutida nos media anglo-americanos, onde os mitos e falsificações acerca da China são o cardápio corrente, bem como as mentiras sobre o Iraque. Um racismo virulento é o sub-texto desta propaganda. Classificados como “amarelo”, muito embora fossem brancos, os chineses são o único grupo étnico que foi banido por uma “lei de exclusão” de entrar nos Estados Unidos, por serem chineses. A cultura popular declarou-os sinistros, inconfiáveis, “dissimulados”, depravados, doentes, imorais.

    Uma revista australiana, The Bulletin, dedicou-se a promover o medo do “perigo amarelo” como se toda a Ásia estivesse prestes a cair sobre as colónias apenas de brancos pela força da gravidade.

    Como escreve o historiador Martin Powers, reconhecer a modernidade da China, a sua moralidade laica e as “contribuições ao ameaçado pensamento liberal confrontam a Europa, de modo a tornar-se necessário suprimir o papel da China no debate do Século das Luzes …. Durante séculos, a ameaça da China ao mito da superioridade ocidental tornou-a um alvo fácil como chamariz racial”.

    No Sydney Morning Herald, o incansável inimigo da China Peter Hartcher descreveu aqueles que espalham influência chinesa na Austrália como “ratos, moscas, mosquitos e pardais”. Hartcher, que cita favoravelmente o demagogo americano Steve Bannon, gosta de interpretar os “sonhos” da actual elite chinesa, dos quais ele aparentemente tem conhecimento privado. Estes são inspirados por nostalgias do “Mandato do Céu” de 2.000 anos atrás. Ad nauseam.

    Para combater este “mandato”, o governo australiano de Scott Morrison encomendou a um dos países mais seguros do mundo, cujo principal parceiro comercial é a China, mísseis americanos no valor de centenas de milhares de milhões de dólares que podem ser disparados contra a China.

    O gotejamento já é evidente. Num país historicamente marcado pelo racismo violento contra asiáticos, australianos de ascendência chinesa formaram um grupo vigilante para proteger os entregadores em motocicleta. Vídeostelefónicos mostram um entregador esmurrado na cara e um casal chinês abusado racialmente num supermercado. Entre Abril e Junho, houve quase 400 ataques racistas contra australianos de origem asiática.

    “Nós não somos seu inimigo”, disse-me um estratega de alto nível na China, “mas se vocês [no Ocidente] decidir que somos, devemos nos preparar sem demora”. O arsenal da China é pequeno em comparação com o dos Estados Unidos, mas está a crescer rapidamente, especialmente o desenvolvimento de mísseis marítimos concebidos para destruir frotas de navios.

    “Pela primeira vez”, escreveu Gregory Kulacki da Union of Concerned Scientists, a “China está a discutir colocar seus mísseis nucleares em alerta máximo de modo a que possam ser lançados rapidamente diante do aviso de um ataque… Isto seria uma mudança significativa e perigosa na política chinesa…”

    Em Washington, conheci Amitai Etzioni, ilustre professor de assuntos internacionais da Universidade George Washington, que escreveu que estava planeado um “ataque cego à China”, “com ataques que poderiam ser erroneamente percebidos [pelos chineses] como tentativas preventivas de excluir suas armas nucleares, encurralando-os assim num terrível dilema de utilizá-las ou perdê-las [que levaria] à guerra nuclear”.

    Em 2019, os EUA encenaram seu maior exercício militar único desde a Guerra Fria, grande parte dele em alto segredo. Uma armada de navios e bombardeiros de longo alcance ensaiou um “Air-Sea Battle Concept for China” (ASB) bloqueando vias marítimas no Estreito de Malaca e cortando o acesso da China ao petróleo, ao gás e a outras matérias-primas do Médio Oriente e da África.

    É o medo de um tal bloqueio que fez a China desenvolver a sua Iniciativa Belt and Road ao longo da antiga Rota da Seda para a Europa e construir urgentemente pistas de aterragem estratégicas em recifes e ilhotas disputadas nas Ilhas Spratly. [NR]

    Em Xangai, conheci Lijia Zhang, uma jornalista e romancista de Pequim, típica de uma nova classe de personalidades independentes. Seu livro mais vendido tem o título irónico de Socialismo é ótimo! (Socialism Is Great!) Tendo crescido na caótica e brutal Revolução Cultural, ela viajou e viveu nos EUA e na Europa. “Muitos americanos imaginam”, disse ela, “que o povo chinês vive uma vida miserável, reprimida e sem qualquer liberdade. A [ideia do] perigo amarelo nunca os abandonou… Eles não fazem ideia de que há cerca de 500 milhões de pessoas sendo retiradas da pobreza, e alguns diriam que são 600 milhões”.

    As conquistas épicas da China moderna, sua derrota da pobreza em massa e o orgulho e contentamento do seu povo (medido por pesquisadores americanos como a Pew) são voluntariamente desconhecidos ou mal compreendidos no Ocidente. Isto por si só é uma confirmação do lamentável estado do jornalismo ocidental e do abandono da reportagem honesta.

    O lado negro repressivo da China e do que gostamos de chamar o seu “autoritarismo” são a fachada que nos permitem ver quase exclusivamente. É como se fôssemos alimentados com histórias intermináveis do malvado super-vilão Dr. Fu Manchu. E é hora de perguntarmos porquê: antes que seja demasiado tarde para impedir a próxima Hiroshima.

    03/Agosto/2020

    [*] Jornalista e director de cinema, australiano. Ver www.johnpilger.com

    [NR] Acerca das Spratly ver O cerne da questão no Mar do Sul da China

    O original encontra-se em Consortium News

    Este artigo encontra-se em https://resistir.info/

  • CONVERSAS PANDÉMICAS, MÁRIO FREITAS

    Views: 0

    Conversas pandémicas XVII – Chegados aqui, para onde vamos…?

    1. Resultados preliminares da análise dos dados dos pacientes hospitalizados por COVID-19, na Alemanha.

    Após a análise preliminar dos dados nacionais de 10000 pessoas, tratadas em 920 hospitais alemães, e internadas por COVID-19, sabe-se desde já que 1 em cada 5 hospitalizados morreu.
    A mortalidade foi ainda maior nos pacientes sujeitos a ventilação mecânica: aqui a taxa de letalidade foi de 53%. Um total de 17% dos pacientes recebeu ventilação artificial.
    Os pacientes que não foram sujeitos a ventilação artificial tiveram chances, significativamente melhores, de sobrevivência. Apenas 16% dos doentes morreram, neste caso.

    O Instituto Científico AOK (WIdO), a Associação Interdisciplinar Alemã de Terapia Intensiva e Medicina de Emergência (DIVI) e a Universidade Técnica de Berlim publicaram estes números, na revista médica “The Lancet Respiratory Medicine”.

    Os pacientes internados por Covid-19 frequentemente apresentavam comorbilidades (outras doenças). Analisando os dados dos pacientes sujeitos a ventilação artificial, 62% sofriam de Hipertensão arterial, 39% de diabetes e 43% de arritmias cardíacas. 24% apresentavam insuficiência renal, 19% apresentavam doença pulmonar crónica e 13% eram obesos.

    Em geral, os homens morreram com maior frequência, do que as mulheres. A taxa de mortalidade dos homens foi de 25%, acima da das mulheres, cerca de 19%.

    Era de se esperar que os idosos, em particular, morressem significativamente mais. A análise mostrou que 27% dos pacientes, hospitalizados, entre os 70 e 79 anos, e 38% dos pacientes, hospitalizados, com 80 anos ou mais, morreram.

    A proporção de idosos ventilados foi bastante baixa. Apenas 12% dos pacientes ventilados tinham mais de 80 anos de idade. Nas pessoas de 60 a 69 anos e nas de 70 a 79 anos, foram de 24% e 25%, respectivamente. E, na grande faixa etária dos 18 aos 59 anos, apenas 15% pacientes tiveram que ser ventilados artificialmente.

    Todos estes dados ajudam-nos a lidar com uma possível segunda onda.

    2. Espantoso como tudo isto evolui muito rapidamente.

    No Estado de Victoria, na Austrália, face ao assumir do desastre, Melbourne impôs recolher, à noite.

    (Ver gráfico)

    3. Evolução do número de casos de COVID-19, em Portugal.

    Segundo o INSA, estima-se que até ao dia 1 de Agosto tenham ocorrido 52106 casos de COVID-19, em Portugal.
    O mesmo INSA diz-nos algo mais, de extrema relevância epidemiológica: desde o início da epidemia da COVID-19, o número médio de casos secundários resultantes de 1 caso infetado, medido em função do tempo (R(t)) variou entre 0,81 e 2,42. O valor de R(t) nacional apresenta uma trajetória decrescente, com valores inferiores a 1 desde 11.07.2020. Isto é, indiscutivelmente, um excelente indicador.

    [Muito se tem confundido este parâmetro com o R0.
    O número básico de reprodução é um indicador da transmissibilidade da infeção. Deve ser calculado na fase inicial da epidemia, ainda sem todas as medidas de contenção e atraso implementadas. Corresponde ao número médio de casos secundários a que cada caso dá origem, numa população completamente suscetível. Neste caso o R0 foi calculado com base na curva epidémica até ao dia 16.03.2020.
    O INSA diz-nos que a estimativa obtida para o R0 foi de 2,07, podendo o verdadeiro valor estar entre 1,96 a 2,18, com uma confiança de 95%.]

    O número médio de casos secundários resultantes de um caso infetado, medido em função do tempo (R(t)) deve ser calculado ao longo da epidemia, e mede a transmissão ao longo do tempo.

    Pode ser usado para medir a efetividade das medidas de contenção e atraso.

    Desde o início da epidemia de COVID-19, a estimativa do R(t) variou entre 0,81 e 2,42, observando- se uma tendência de decréscimo desde o dia 12.03.2020 (anúncio fecho das escolas), com quebras mais acentuadas em 16.03.2020 (fecho das escolas) e 18.03.2020 (anúncio do estado de emergência).

    Depois de 28 de abril o valor do R(t) voltou a aumentar ultrapassando o valor 1 a meio de maio.

    4. Mais dados do Relatório do INSA.

    Do mesmo relatório do INSA destaco alguns gráficos, importantes para percebermos a evolução desta epidemia em Portugal, até ao momento.

    A Distribuição etária, por semana, a nível Nacional

    (Ver gráfico)

    A Curva epidémica dos casos de infeção por SARS-CoV-2, corrigida para o atraso de notificação, em Portugal. (Verde escuro – casos observados com data de início de sintomas; verde claro – casos observados com data de início de sintomas imputada; cinzento – estimativa dos casos ocorridos mas ainda não reportados).

    (Ver gráfico)

    A Curva epidémica de casos de infeção por SARS-CoV-2, na região Autónoma dos Açores, com data de início de sintomas observada e imputada (tom cinzento).

    (Ver gráfico)

    A Curva diária dos doentes COVID-19 hospitalizados com COVID-19, em Portugal

    (Ver gráfico)

    A Curva diária dos doentes COVID-19 hospitalizados em UCI com COVID-19, em Portugal.

    (Ver gráfico)

    A Curva diária de óbitos com COVID-19, em Portugal.

    (Ver gráfico)

    A observação destes gráficos permite-nos perceber como chegamos aqui. A observação do que está a acontecer no Hemisfério sul permite-nos postular hipóteses para o que poderemos ter dentro de poucos meses, em Portugal.

    Mário Freitas
    Médico consultor (graduado) em Saúde Pública e Delegado de Saúde

    (Diário dos Açores de 07/08/2020)

    Image may contain: 1 person, beard and close-up, text that says "Mário Freitas*"
    No photo description available.
    No photo description available.
    No photo description available.
    Image may contain: text that says "Região Autónoma dos Açores 5.00 4.50 4.00 .50 3.00 2.50 2.00 1.50- 1.00- 00 0.50 0.00 10027020203 06/0 2010 0405 06/0 Data de início de sintomas 20107 03:08 1008"
    +4
  • ciência , o custo de um café que saiu caro

    Views: 0

    Um café que saiu caro

    Edição por António Moura dos Santos

    Será um euro um valor demasiado elevado a dar por uma bica? Como sempre, a resposta variará consoante os questionados (e as suas carteiras): para quem faz vida a beber cafés a 60 cêntimos pelos snack-bares deste país, sim; para quem mora na Suécia, não.

    O custo de um café em si não seria polémico — aliás, é, mas apenas quando sobe, só que isso são outros quinhentos —, se se estivesse a falar de apenas um. O que dá o mote a este texto, no entanto, é uma dose de cafeína um pouco maior: 25 mil cafés, portanto, 25 mil euros.

    Esse é o valor que António Rolo Duarte, estudante de doutoramento na Universidade de Cambridge, estipulou como necessário para conseguir pagar as propinas no prestigiado estabelecimento e sustentar a sua vida no Reino Unido enquanto conduz a sua investigação.

    Não estando na posse dessa maquia, o estudante criou então uma campanha de financiamento online sob o pretexto de que os portugueses poderiam contribuir com um euro para o seu plano de estudos, ou seja, o mesmo que pagar-lhe um singelo café (numa bomba de serviço, isto é).

    Até aqui, nada de particularmente polémico. O problema é que Rolo Duarte justificou o pedido com um aparente atraso na atribuição de bolsas por parte da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, a entidade responsável pela atribuição de financiamento à investigação científica em Portugal, sob tutela do ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

    Quer no vídeo de apresentação, quer no website que criou, o estudante queixa-se de que o financiamento fulcral para que possa manter-se a estudar no Reino Unido foi atrasado indefinidamente.

    No entanto, a FCT nega-o: apesar de ter havido uma prorrogação dos prazos de pedido de bolsa por um mês — o que, logicamente, atrasou a apresentação dos resultados por igual período de tempo — o prazo, para já, é 3 de setembro. Ou seja, a atribuição das bolsas pode vir a atrasar-se, mas tal ainda não aconteceu.

    Perante este cenário, nas redes sociais Rolo Duarte começou a ser acusado de fraude e de tentar enganar possíveis benefactores. O seu nome, de resto já tinha sido alvo de mediatismo antes. No ano passado, o estudante fez declarações polémicas no programa Prós & Contras da RTP quanto à pretensa falta de qualidade do ensino superior português, reafirmando-as depois mais tarde numa entrevista.

    Quanto a este episódio, Rolo Duarte nega as acusações e mantém a defesa da sua palavra e de que a FCT deixou-o numa posição incomportável. Entretanto, a sua campanha foi suspensa pelo website que a aloja, mas já voltou ao ativo.

    Como é fecundo nas polémicas à portuguesa, o tema está centrado numa só figura, mas concerne um problema bem maior, que pode e deve ser trazido para a discussão pública, arriscando-se a ser obnubilado pela controvérsia e esquecido na espuma dos dias. Neste caso, é a sempiterna precariedade dos investigadores portugueses, conforme explicou Bárbara Carvalho, presidente da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica, ao SAPO24.

    Em causa estão os concursos ao emprego científico em Portugal, cujos atrasos crónicos na revelação dos resultados e colocação de investigadores nas vagas disponíveis deixam os bolseiros, em si mesmo precários pela natureza dos seus rendimentos, à beira do precipício. Os produtores de conhecimento, que deviam ser acarinhados pelos seus contributos, vivem com um garrote por terem de respeitar um regime de exclusividade onde não têm direito a subsídio de desemprego ou proteção social

    Com a pandemia a tornar a sua situação ainda mais complicada, urge a criação de mecanismos para permitir o trabalho digno aos investigadores portugueses, nos quais também se inclui Rolo Duarte. Este, porém, ao contrário de muitos outros e apesar de toda a controvérsia, pode sorrir: as doações seguem em força e 267 pessoas já deram 7,642.00 euros à sua causa. Ainda faltam, no entanto, muitos cafés.

  • Israel Bombed Beirut | Covert Geopolitics

    Views: 0

    Here’s a confirmation that Israel did indeed bomb Beirut yesterday. But reading between the lines, it is very evident that the purpose of this article is to divert our attention to the same m…

    Source: Israel Bombed Beirut | Covert Geopolitics