O efeito Cobra

César Ferreira

César Ferreira

Economist – Teacher – Advisor “I look for the sparkl that drives life”

Durante a administração britânica da Índia, um governador de Nova Deli, confrontado com o problema do número de cobras que infestavam a cidade, decidiu pagar uma recompensa por cada cobra que fosse morta. No início, a política teve um impacto positivo e sentiu-se a diminuição do número de cobras que infestavam a cidade, no entanto, no país mais empreendedor do mundo esta política teve um aproveitamento inesperado.

Os indianos começaram a criar cobras para depois receberem uma recompensa por cada uma. Ao tomar conhecimento deste aproveitamento o governador tomou a decisão de terminar com o pagamento das recompensas pelas cobras mortas. Esta decisão fez com que os criadores de cobras, perdessem o seu cliente, o governo provincial de Nova Deli. As cobra ficaram sem valor comercial, e, nesse sentido os criadores de cobras tomaram a decisão de as soltar pois não iam continuar a alimentá-las e a criá-las se ninguém iria pagar por elas. O resultado foi que Nova Deli ficou infestada de cobras como nunca tinha estado.

O que aconteceu na Índia não foi um fenómeno isolado, os franceses tiveram um exemplo semelhante com os ratos, no tempo em que administraram o Vietname, nomeadamente, em Hanói. Mark Twain, na sua autobiografia, tem uma afirmação que podemos traduzir da seguinte forma, A melhor forma de aumentar os lobos na América, os coelhos na Austrália e as cobras na Índia, é que o governo pague uma recompensa pelos escalpes de cada um desses animais. Nessa altura todos os patriotas vão criá-los”

Esta história é contada para demonstrar que as políticas públicas, e, as decisões de gestão devem ser pensadas de modo a prever todos os cenários futuros. Mesmo uma decisão que é tomada no sentido de resolver um problema e que tem resultados iniciais positivos pode tornar-se desastrosa no futuro e inclusive agravar o problema inicial.

Tenho lido que alguns economistas consideram que a forma como os governos lidaram com os impactos económicos da pandemia criada pelo COVID-19 vai criar um efeito cobra.

O efeito cobra prediz que os apoios criados artificialmente para apoiar a manutenção do emprego vão criar uma crise económica e financeira mais grave no futuro próximo, que seria menor se não tivessem existido estes apoios, nomeadamente, os apoios diretos às famílias, as moratórias de crédito e os layoff’s que foram criados, por todo o mundo. Esta tese é o elemento central deste texto que ficará sempre inconclusivo pois o tempo de análise e avaliação poderá ser sempre discutível até que faça sentido e corrobore qualquer um dos pontos de vista.

Os que concordam com a tese do efeito de cobra podem sempre dizer que a crise que aí vem poderia ser menor se não tivessem existido os apoios, e, em sentido contrário os defensores das políticas podem argumentar que a crise seria muito maior se não tivessem existido.

O que é certo é que, neste momento, prevemos um futuro. Nos próximos seis meses vamos estar pior do que há seis meses atrás. Por isso no mês de fevereiro de 2021 vamos ter mais desemprego do que no mês de fevereiro de 2020. E com mais desemprego tudo o resto é afetado.

Os apoios à manutenção do emprego estão na fase fade out, os governos não têm capacidade financeira para assegurar o nível de apoios que estavam a dar nos últimos tempos. Vão deixar as empresas à sua sorte sem apoios e sem mercado. Um pouco por todo o mundo as economias vão apresentando resultados preocupantes. Em Espanha o PIB semestral caiu face, ao mesmo período do ano passado, 22,1%, França 19%, Itália 17,3%, Portugal 16,5%, Bélgica 14,5%.

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Para Portugal os principais mercados para as exportações portuguesas, de acordo com os dados de 2019 disponibilizados pelo INE e Pordata, são efetivamente a Espanha e a França os países com as quebras do PIB mais acentuadas dentro da zona EURO.

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Relativamente aos dados do Reino Unido ainda não temos previsões para o semestre, no primeiro trimestre caiu 2,2% a maior queda desde 1979. Os Estados Unidos têm uma economia particular, com uma dinâmica diferente da que se vive na União Europeia mas a queda é de 32,9%, uma queda histórica e sem precedentes na história económica americana.

Estes dados vão traduzir-se em desemprego que se irá prolongar no tempo por um prazo superior ao que se esperaria inicialmente, porque a queda na economia é global, e, numa economia aberta como a nossa, com necessidade de mercados externos para escoar a nossa produção, a quebra da atividade económica vai acabar com muitos empregos. Numa fase inicial o turismo e a restauração são os mais afetados mas no futuro todas as atividades vão ser atingidas.

O governo foge da palavra austeridade e acena como os milhares de milhões que vêm da UE, mas a austeridade já está cá, porque as pessoas que perderam o seu emprego já têm cortes nos seus rendimentos disponíveis, e, os milhões da UE não chegam a essas pessoas. As moratórias dos créditos aliviam, por enquanto, os orçamentos familiares mas no momento em que se reiniciarem os pagamentos das prestações vamos ter um aumento nos incumprimentos dos créditos e uma retração significativa no consumo interno e externo.

Para percebermos melhor o impacto das moratórias de crédito o Banco de Portugal apresentou um retrato geral das moratórias de crédito concedidas à data de 31 de maio.

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Os números são impressionantes, pois temos 688.515 contratos de crédito abrangidos, 475.215 famílias e 213.300 empresas. No momento em que terminarem as moratórias de crédito o rendimento disponível das famílias e das empresas vai ser gravemente reduzido

Os tempos que vivemos hoje são realmente diferentes, vivemos um novo normal, estamos a entrar em crise mas as famílias têm um rendimento disponível superior ao que tinham antes da crise, por isso, temos informações contraditórias, a quebra da produção é impressionante mas os mercados de capitais batem recordes. O Nasdaq atingiu hoje, dia 5 de agosto, o seu máximo histórico, que tem sido batido consecutivamente nas últimas semanas. As famílias e empresas têm liquidez, por causa dos apoios, e, principalmente pelas moratórias de crédito e de impostos, mas o desemprego aumenta a níveis recorde, um pouco por todo mundo. Esta é uma situação inovadora na gestão pública de crises e é essa gestão que está em causa.

Há coisas que não mudam as moratórias de crédito e dos impostos vão afetar a viabilidade da banca e o equilíbrio dos orçamentos governamentais, por isso, mais cedo ou mais tarde os apoios vão parar, e, aí chega a fatura para pagar, caso contrário destruímos o sistema financeiro e os orçamentos governamentais.

Sem um sistema financeiro eficiente e robusto e sem um Estado com recursos para intervir entramos num mundo conhecido que não trará nada de bom. Os regimes sem um sistema financeiro e sem Estados com recursos financeiros acabaram em regimes comunistas com as suas consequências, pobreza, limitação das liberdades e confisco da propriedade privada.

Em Portugal temos falhas na utilização de recursos públicos e não é preciso ser economista para perceber os problemas com a afetação de recursos a atividades produtivas. Nesse sentido, muitos dos milhões que vêm para auxiliar a crise, vão ser alocados a atividades que não geram rendimento nem potenciam a sua geração. Uma autoestrada sem movimento, um aeroporto sem passageiros, uma escola sem alunos ou um centro cultural sem cultura, não geram nem potenciam valor para o país.

Infelizmente muitos milhões que vieram para Portugal foram gastos sem um caderno de encargos de validação que verificasse se o investimento público tinha os resultados que foram anunciados na altura da sua aprovação, e, nenhum político ou decisor público foi julgado pela ineficácia ou ineficiência das suas decisões. São mediáticos os casos de corrupção, e bem, mas os outros, aqueles em que o dinheiro foi mal gasto, não têm quaisquer consequências pessoais ou políticas.

Em frente a uma tempestade Portugal enfrenta-a mais uma vez sem preparação para a marear. Vamos com emprego precário, sem poupança das famílias ou das empresas, altamente endividados, com um consumo interno débil e sem mercados para exportar.

Até ao início desta crise, março de 2020, o baixo nível do desemprego, o turismo e a procura global sustentaram a economia portuguesa, mesmo assim com desempenhos fracos comparados com os restante países da Europa.

No quadro abaixo, embora contenha muita informação, optei por não cortar qualquer dado para se poder perceber a dimensão e o desempenho da economia portuguesa. Os valores a verde representam os países que tiveram um melhor desempenho no período em análise. Verificamos que nos últimos 6 trimestres Portugal tem crescido menos do que a maioria dos países europeus. Em análise aos trimestres homólogos, em 60% das 190 variações trimestrais, o desempenho de Portugal é inferior aos restantes países europeus.

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E o que se poderia ter feito diferente? Esta é a questão que se põe. Normalmente, as questões mais complexas, têm situações mais simples. O ovo de Colombo repete-se. O confronto com a realidade é sempre melhor do que fugir para cenários míticos em que vacas voam e os unicórnios brincam com as crianças. As famílias e as empresas têm que rapidamente enfrentar a realidade e adaptar-se ao novo normal. Têm que procurar novas fontes de rendimento porque o turismo e o consumo interno, ao nível global, vai-se retrair. Por isso é preciso encontrar novos serviços, produtos e mercados. Os primeiros a adaptarem-se, ao novo normal, vão sobreviver. Foi assim que Darwin nos ensinou, e, é assim que a biologia e a economia funcionam.

As moratórias de crédito não deveriam abranger os juros, e, não deveriam prolongar-se por 12 meses. Desta forma preservava-se o sistema financeiro e os orçamentos governamentais. A bondade da medida vai ser prejudicada pelo seu prolongamento, e, por não assegurar os resultados operacionais da atividade financeira. O risco de incumprimento dos contratos de crédito é bastante elevado e vai agravar-se a cada mês nos próximos tempos. O Estado deveria criar um instrumento financeiro que assumisse, com regras, o risco do incumprimento do crédito de modo a salvaguardar o sistema financeiro.

Os apoios devem ser direcionados para as empresas que tenham planos estratégicos para o futuro. Financiar empresas para adiarem o encerramento e os despedimentos é deitar dinheiro fora. Empresas que não fossem viáveis antes da crise e apresentassem resultados negativos não deveriam ter acesso aos apoios. As empresas só deveriam ser apoiadas após uma criteriosa avaliação técnica e com garantias de devolução dos apoios, no caso de não atingir os resultados propostos para aprovação do financiamento.

O Rendimento Básico Universal RBU é uma medida essencial para preservar a dignidade das pessoas e será uma forma de reorganizar o Estado Social em Portugal. Os tempos que vivemos necessitam de respostas diferentes. Precisamos de manter um baixo nível de criminalidade, combater o trabalho infantil, a exploração laborar e manter um fluxo migratório positivo. O RBU é uma ferramenta essencial para assegurar estas questões.

Por fim, e provavelmente o mais importante, as apostas na educação, saúde e justiça são estruturais para a criação de uma sociedade robusta, capaz de sair mais forte dos tempos que aí vêm.

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César Ferreira
Economist – Teacher – Advisor “I look for the sparkl that drives life”