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OPINIÃO
Quem tem medo da Autonomia ?
Os Açores sempre foram a retaguarda de Portugal e os Açorianos voluntariosos soldados da Pátria. A Portugal nada devem em matéria de lealdade. Dispensam lições patrioteiras de “continuidade territorial” e devolvem-nas com a memória de que foi aqui que Portugal sempre se refugiou para assegurar a sua independência. Nos Açores a soberania da coroa Portuguesa defendeu-se dos Espanhóis. Aqui se jurou lealdade a D. António Prior do Crato, o Rei Independentista, e se rechaçou a invasão Espanhola na Batalha da Salga, em 1581. O episódio ficou registado na mítica sentença do Juiz Ciprião de Figueiredo que todos os Açorianos conhecem, mas tantos Portugueses ignoram o seu valor patriótico. Tal como a padeira Brites de Almeida, heroína de Aljubarrota, também a resistente Brianda Pereira, da Salga, se junta a uma longa linhagem popular de Portugalidade. Daí em diante a História de Portugal também se escreve com as glórias dos Açores e com os heróis da Açorianidade. O século XIX voltou a fazer dos Açores o epicentro de Portugal e do Liberalismo que marcou a modernidade. Nesse espírito nasce a primeira Autonomia com o Decreto de 2 de Março de 1895. No século XX a deriva totalitária do Verão quente de 75 colocou a soberania de Portugal em risco. Se, para uma minoria, era um sonho fazer de Portugal uma Cuba europeia com uma ditadura comunista que faria do País um estado satélite de Moscovo, para uma imensa maioria silenciosa isso seria uma traição à Pátria. É nesse caldo revolucionário que emerge o movimento Independentista dos Açores, recusando a cubanização do País e destas ilhas sempre leais a Portugal. Mais uma vez os Açores foram a reserva e o santuário de Portugal. Reposta a normalidade, o Poder Constituinte deu letra de lei à Autonomia. Meio milénio de lealdade a Portugal, mais de um século sobre o Decreto Autonómico, quase cinquenta anos de institucionalização das Regiões Autónomas e ainda há quem desconfie dos Açorianos! Será a nossa Autonomia um adquirido? A História não se pode fazer no presente, mas a atual crise, despoletada externamente pela ameaça do Sars-Cov-2, veio dar sentido e profundidade a uma pergunta que devia ser apenas retórica. A resposta é não. Não podemos dar a Autonomia por adquirida. Não sabemos o seu futuro, mas sabemos que já não pode ser a que era antes de 2020. Não podemos antever se irá retroceder ou se dará um passo evolutivo, mas os episódios recentes vieram expor uma desconfiança para com os Açorianos, vistos paternalmente como filhos menores da Pátria, e um desprezo pela Autonomia que julgávamos extinto. A desnecessária afirmação da “continuidade territorial” proferida pelo Presidente da República em uníssono com o Primeiro-Ministro foi um exercício gratuito de machismo alfa dominante que empurrou o Governo Regional para medidas políticas legítimas, tendo a noção da fragilidade da nossa “descontinuidade geográfica”. O Presidente do Governo Regional dos Açores não é um reminiscente Capitão Donatário das Ilhas a mando da metrópole. É mandatado pelos cidadãos eleitores, inscritos no recenseamento eleitoral no território regional, na escolha que fazem dos seus representantes à Assembleia Legislativa Regional, estando assim legitimado por conta dos resultados das eleições ao Parlamento Regional. Tem uma legitimação popular perante os Açorianos que representa, apesar da miopia centralista insistir num despotismo ministerial caduco e num presidencialismo populista retrógrado. Noutros tempos, que importa não esquecer, dizia Nemésio que só a “perfídia centralista outorga carta de colónia às ilhas”. Mas a culpa não é só de Belém e das chancelarias de São Bento. A culpa é também nossa quando transigimos placidamente com um representante da república sem legitimação democrática, nomeado apenas para vigiar aqueles que os Açorianos elegeram! É também nossa quando assistimos como saloios a paradas militares de desproporcionada exibição belicista, como a que encenou o Presidente da República no 10 de Junho de 2018, em Ponta Delgada, a mostrar o poder dissuasor da metralha aos ilhéus. Nesse dia, para que não sobrassem dúvidas, não faltou um desembarque musculado de fuzileiros da Marinha Portuguesa na praia das Milícias! Tudo símbolos possidentes de uma Portugalidade colonial persistente e com cumplicidades insulares. Porém, nesta crise recente, a maioria dos Açorianos recusou-se a alinhar pelo divisionismo, tendo a decência de se reservar a ajustar contas mais tarde, desde logo nas próximas eleições. Na hora certa, a uma maioria absoluta virá à memória o vexame de ver os Açores no banco dos réus, exibidos como bandidos para gáudio dos dignitários da República. Esquecem estes que as animosidades com a República não são apenas prejudiciais para os Açores, mas também para a própria República. Nestas ilhas não faltam serviços da República ao abandono a quem o Governo Regional e os Municípios dos Açores prestam socorro. Servem de exemplo as viaturas que a Região compra para a GNR ou as obras que os Municípios executam nas esquadras da PSP. No reverso do exemplo, a República de um território contínuo no papel, apesar de promessas empedernidas, é incapaz de pôr mãos à obra para o Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada, fazendo-nos presumir, como a Nemésio, que ainda “nos tratam como se andássemos de tanga.” Um acinte com a República prejudica todos e ameaça a Autonomia, seja em coisas simples, mas essenciais, como o subsídio de mobilidade para os residentes nos transportes aéreos, seja em última instância em machadadas na Lei das Finanças Regionais. Mas afinal, quem tem medo das Autonomias? Os eternos partidários do absolutismo centralista que Antero de Quental tão bem expôs nas suas causas da decadência dos povos peninsulares. Sem Regiões Autónomas e sem Municipalismo uns poucos seriam mais felizes, mas Portugal ficaria inquestionavelmente muito mais pobre. Nos Açores dignificamos Portugal, mesmo quando Portugal não dignifica os Açores. A Autonomia não é um equívoco, mas um processo contínuo com pergaminhos. Depois do desconfinamento, a bem de todos, venha o desanuviamento entre os poderes instituídos, pois todos temos a ganhar com uma cooperação institucional salutar que justificadamente se retrairá se a crispação se mantiver.
(João Nuno Almeida e Sousa)
in, Açoriano Oriental, 02 de Junho / 2020