“Seguramente doente”
O Governo dos Açores encomendou uma campanha promocional, com um excelente video, para incentivar os açorianos ao consumo de produtos e serviços regionais, denominada “Seguramente açoriano”.
É uma iniciativa louvável, que nem precisava de ser recordada, pois o consumo de produtos açorianos deveria estar sempre na prioridade de cada um de nós.
Agora, deveria criar uma outra campanha explicando aos açorianos doentes, as famílias mais frágeis por estas ilhas fora, sobre como vai reprogramar milhares de consultas e cirurgias que ficaram suspensas durante esta primeira fase da pandemia.
São impressionantes os relatos de muitos doentes a necessitarem de actos médicos e que ficaram abandonados à sua sorte.
Percebemos todos que o Serviço Regional de Saúde esteve focado, nestes meses, no combate ao novo coronavírus, mas a Secretaria da Saúde falhou ao não criar um plano rápido e eficaz de acompanhamento dos milhares de doentes a necessitar de muitos actos terapêuticos e da habitual actividade assistencial nos hospitais e centros de saúde.
Empresários, sindicatos, associações, federações e muitas outras instituições organizadas tiveram palco mediático e atenção governamental na reivindicação de apoios, pacotes, medidas e moratórias, mas os doentes das nossas ilhas não tiveram um porta-voz, como os líderes associativos, para justificarem as suas debilidades.
É inconcebível, mesmo agora em período de desconfinamento, que a Secretaria da Saúde ainda não tenha desenvolvido um plano de recuperação para atender rapidamente à situação emergente de muitos doentes, à semelhança do que já está em andamento no resto do país.
Ninguém compreende que em ilhas, há muito limpas do contágio, os doentes continuassem abandonados, sem um único contacto para reprogramar consultas e cirurgias, enquanto que se oferecia a dispensa de quarentena a alguns profissionais de outras actividades, que não os do sector da Saúde.
A negligência foi ao ponto de submeterem uma autêntica violência às grávidas do Pico e de S. Jorge, que atravessavam o canal para consultas no Hospital da Horta, obrigando-as a quarentena obrigatória no regresso, mas dispensando os assistentes de saúde que as acompanhavam!
Foi um dos piores momentos da Autoridade de Saúde, agravado pela declaração de que “não sabia que havia tantas grávidas do Pico para o Faial”…
Neste regresso à normalidade possível é urgente que o Governo Regional olhe com mais atenção para os doentes mais frágeis das ilhas onde não existem hospitais nem tão pouco deslocação de médicos especialistas, que certamente não estarão interessados em se sujeitar a quarentenas absurdas, quando já é possível controlar eficazmente as deslocações, com maior intensidade de testes.
Tudo isso é um pouco sombrio numa Secretaria Regional que nem tão pouco nos informa qual é a situação destes doentes, pois “apagou” por completo da página do velhinho SIGICA o número de consultas e cirurgias dos três hospitais, desconhecendo-se qual é a grandeza dos atrasos e suspensões desses actos médicos.
No país sabemos que esta fase da pandemia obrigou à redução de 320 mil consultas médicas em cuidados de saúde primários, 360 mil consultas de enfermagem e 9 mil cirurgias programadas, que agora vão ser restabelecidas com um plano de emergência, como se impõe numa situação destas.
Nos Açores não sabemos de nada, como também não sabemos porque não foi activado o “grande investimento da medicina moderna na região”, que é a telemedicina, mais um projecto falhado, pelos vistos, depois de tantos milhões investidos.
A Pediatria do HDES provou como as novas tecnologias são um instrumento essencial nestas situações de crise, ao promover mais de 200 teleconsultas durante esta pandemia. Porque não funcionou noutros serviços de saúde por estas ilhas fora?
Dentro do contexto epidemiológico específico de cada unidade hospitalar é preciso começar a fazer um levantamento sobre a capacidade de resposta para situações destas, para que, numa eventual segunda fase de pandemia, não sejamos outra vez apanhados desprevenidos.
Façam os pacotes de medidas e moratórias que a economia exige, mas não se esqueçam dos doentes e das populações mais frágeis desta região, que também merecem um “pacote” de atenção redobrada.
Se nós, saudáveis, já nos assustamos tanto, imagine-se os que não têm saúde.
Haja saúde!
Osvaldo Cabral
(Diário dos Açores 24-05-2020)